I - A arbitrária pretensão de formatar a realidade
A vida em sociedade traz muitas vantagens aos indivíduos, mas gera o permanente desafio de conviver com quem pensa diferente. Precisamos aceitar que nossas opiniões não devem sempre preponderar e que só a mescla contínua entre ideias distintas é capaz de produzir os valores adequados à maioria.
Esses valores, e as normas deles decorrentes, evoluem constantemente em razão de sua interação com os fatos. Quanto mais livres e bem-informadas são as sociedades mais intensa será essa interação e, consequentemente, maior o seu progresso.
A única forma de filtrar ideias inadequadas e identificar descrições errôneas da realidade é a troca livre, ampla e democrática de opiniões e informações entre todos os membros da sociedade. Muitas cabeças sempre pensam melhor que poucas e são mais capazes de reconhecer a plausibilidade e a veracidade das informações que recebem.
O amplo acesso aos fatos também evita que alguns poucos concentrem o excessivo, e tendencialmente abusivo, poder de decidir o que a sociedade merece saber, de que forma e em que contexto.
O que parece a simples realidade nada mais do que o entendimento de quem a vê, pois a leitura dos fatos é filtrada por nossos valores. O que chamamos de verdade é a descrição prevalente dos fatos ou a opinião mais aceita sobre eles. Isso vale tanto para eventos históricos, cuja interpretação está sempre em mutação, quanto para a ciência ou até mesmo para as relações sociais.
A “ilusão da verdade”1, nada mais é do que uma mentira decorrente da exclusão de outras visões sobre os fatos. É impossível circunscrever compulsoriamente a verdade sem gerar simultaneamente uma mentira por omissão.
A liberdade de decisão que caracteriza as sociedades democráticas evoluídas somente será efetiva se decorrer do somatório de duas liberdades fundamentais:
a - liberdade de acesso aos fatos, que depende da transparência e da ausência de restrições quanto à divulgação;
b - liberdade de análise dos fatos, o que depende do amplo acesso às opiniões sobre eles.
É impossível separar a divulgação da opinião, porque aquela é essencial a essa e, principalmente, por não existir descrição neutra dos fatos, já que não existem seres humanos neutros.
É simplista listar mentiras já divulgadas em algum momento para justificar o controle da verdade. Só sabemos que as informações são, ou parecem ser falsas, porque tivemos acesso a todas as versões dos fatos.
Todas as constituições e convenções de direitos humanos garantem direitos à informação, à livre manifestação, e algumas à transparência na gestão pública, mas nenhuma se propõe a garantir o direito à verdade.
Não o fazem porque o direito à verdade representaria uma redução dos direitos à informação e livre manifestação, uma vez que a única forma de estabelecer uma verdade é vedar as manifestações discordantes.
Os artigos 19, da Declaração Universal de Direitos do Homem, aprovada pela ONU2 em 1948, 19, item 2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos3, e 13, da Convenção Americana de Direitos do Homem4 - Pacto de San José, ratificados pelo Brasil em 1992, possuem status supralegal5 e garantem o amplo e irrestrito acesso a informações por todos os indivíduos, dispondo:
Artigo 19° - Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.
Art. 19. 2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.
Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:
a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. Grifamos todos
A leitura dessas normas evidencia que a criação de uma lei que restrinja, de qualquer forma, os direitos à livre divulgação de informações e de opiniões colidirá com os tratados sobre direitos humanos já ratificados pelo Brasil. No mesmo sentido deles, o art. 5°, inciso IX, da Constituição Federal, garante a liberdade de expressão e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
A mesma visão interventiva, pretensamente voltada a proteger a sociedade, costuma ser usada para justificar o tabelamento de preços. Essa medida é sempre prejudicial à economia, pois ignora que a subida dos preços é uma decorrência direta e objetiva da redução da oferta ou do aumento de demanda. Não há maldade a ser criticada quando os preços aumentam, assim como não há bondade a ser elogiada quando diminuem.
O preço dos bens é decorrente do somatório de decisões subjetivas individuais tomadas pelos consumidores. Dele decorre uma consequência objetiva, que é o valor cobrando em cada situação de venda, que varia em razão dos custos e da demanda, pois não existe um preço teoricamente correto para todos os agentes econômicos.
O tabelamento é um engessamento da realidade voltado a produzir uma verdade artificial e insustentável. Sua consequência direta é agregar insegurança à cadeia econômica e desestimular os investimentos produtivos, que gerariam uma futura redução de preços.
A dificuldade em prever os rumos da economia não decorre do despreparo dos economistas, mas da inviabilidade de estabelecer previamente quais são os fatos adequados à análise. A razão é simples, não existe uma verdade econômica singular e objetiva, mesmo quando os fatos econômicos são traduzidos em números e gráficos.
II – O PL de controle de notícias falsas e as consequências do estrangulamento da liberdade
O desagrado de uma parcela dos políticos com a ampla circulação de informações e críticas nas redes sociais, associado ao incômodo dos principais meios de comunicação com a concorrência dessas redes, gerou o PL n° 2.630/2020.
Esse projeto se propõe a garantir “Liberdade, Responsabilidade e Transparência” na internet, mas suas regras conflitam diretamente com a promessa de liberdade. É aplicável às redes sociais com mais de dois milhões de usuários (quase todas), denominadas “provedores de aplicação”.
A ementa já deixa claro que o objetivo do projeto é estabelecer a “responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação”, que é assim conceituada pelo seu art. 4°, inciso II:
II - desinformação: conteúdo, em parte ou no todo, inequivocamente falso ou enganoso, passível de verificação, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado, com potencial de causar danos individuais ou coletivos, ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia. Grifamos
A leitura do dispositivo evidencia que toda notícia pode ser considerada desinformação, bastando que não reproduza um padrão que venha a ser estabelecido como correto ou que tenha sido veiculada fora de um contexto que o leitor considere adequado.
Além de inconstitucional e colidente com os tratados sobre direitos humanos assinados pelo Brasil, o projeto é incoerente e discriminatório por não incluir a mídia nas regras de controle da verdade. É inegável seu grande potencial de difusão de “desinformação”, pois penetra em todos os setores da sociedade muito mais do que os perfis das redes sociais, que raramente ultrapassam cem mil seguidores.
Outro aspecto que chama atenção e demonstra a insinceridade do PL de Controle da Verdade é a total omissão em relação ao chamado discurso de ódio6, justificativa habitualmente veiculada por seus defensores.
A aprovação do PL n° 2.360/2020 trará duas graves consequências:
a - a transferência do direito coletivo de livre manifestação para as empresas gestoras das redes sociais, quase todas estrangeiras, o que atenta contra a nossa soberania. Elas decidirão, pressionadas pela ameaça de sanções, o que pode ou não ser publicado;
b - a inevitável censura prévia sobre alguns assuntos e perfis para evitar a aplicação de pesadas multas, suspensão e até o encerramento de atividades no país, como previsto nos arts.9°7 e 28, do PL.
O projeto parte da premissa que a população brasileira é constituída por indivíduos incapazes de avaliar as informações que recebem e, por isso, devem ter seu acesso a elas restringido por quem tem essa capacidade. Raciocínio semelhante prevaleceu no período do regime militar iniciado em 1964, que nos privou do direito a eleger presidentes e governadores por duas décadas.
O direito constitucional e inalienável ao voto tem como pressuposto lógico o amplo acesso às informações necessárias ao seu exercício. A censura, a pretexto de proteção contra a desinformação, o esvazia materialmente.
Em sentido diametralmente oposto ao do PL da Censura, a União Europeia regulou as redes sociais por meio do Digital Services Act - DSA8, aprovado em outubro de 2022. Essa norma rege a divulgação de informações por meio digital para os vinte e sete países da União Europeia e está focada na transparência, não na fiscalização da veracidade do conteúdo9.
Exatamente para garantir a ampla divulgação de informações e a ausência de censura, o art. 8, do DAS, afasta qualquer obrigação de controle de informações. O título do artigo é “Inexistência de obrigações gerais de vigilância ou de apuramento ativo dos factos”. Assim dispõe:
Art. 8°. Não será imposta a esses prestadores qualquer obrigação geral de controlar as informações que os prestadores de serviços intermediários transmitem ou armazenam, nem de procurar ativamente factos ou circunstâncias que indiquem ilicitudes.
Em complemento, os arts. 4° a 6°, do DAS, inseridos no mesmo Capítulo II que regula a “Responsabilidade dos Prestadores de Serviços Intermediários”, estabelecem que o provedor de acesso não será responsabilizado pelo conteúdo postado pelos usuários, desde que respeite dez requisitos:
1 - Não esteja na origem da transmissão;
2 - Não selecione o destinatário da transmissão;
3 - Não selecione nem modifique as informações objeto da transmissão
4 - Não interfira com a utilização legítima da tecnologia, tal como amplamente reconhecida e utilizada pelo sector, aproveitando-a para obter dados sobre a utilização das informações;
5 - Atue com diligência para suprimir ou bloquear o acesso às informações que armazenou, logo que tome conhecimento efetivo de que as informações foram suprimidas da rede na fonte de transmissão inicial, de que o acesso às mesmas foi bloqueado, ou de que uma autoridade judiciária ou administrativa ordenou essa supressão ou desativação de acesso.
6 - Não modifique as informações;
7 - Respeite as condições de acesso às informações;
8 - Respeite as regras relativas à atualização das informações, indicadas de forma amplamente reconhecida e utilizada pelo sector;
9 - Não tenha conhecimento efetivo da atividade ou conteúdo ilegal e, no que se refere a uma ação de indemnização por perdas e danos, não tenha conhecimento de factos ou de circunstâncias que evidenciem a ilegalidade da atividade ou do conteúdo; e
10 - A partir do momento em que tenha conhecimento da ilicitude, atue com diligência no sentido de suprimir ou desativar o acesso aos conteúdos ilegais.
Outra grave consequência da aprovação do PL da Censura será o silenciamento dos parlamentares, federais, estaduais e municipais, que se comunicam com a população por meio das redes sociais. Inevitavelmente, cada parlamentar apresenta as notícias de uma forma e descrevendo um contexto diferente, em razão do perfil de cada partido e de seus eleitores. Não se trata de distorção nem de desinformação, mas sim do pleno exercício da democracia pluralista.
A restrição de postagem nas redes sociais reduzirá em muito o direito qualificado dos parlamentares à livre manifestação sem responsabilização. Foi conquistado ao fim de ditaduras por meio das nossas democráticas Constituições de 1946 e 1988, que o estabeleceram em seus arts. 44 e 53.10
É evidente que nenhum direito é absoluto e que todos interagem permanentemente, mas isso não quer dizer que possam ser descartados ou sofrer graves restrições. O direito à vida, que é o mais importante, pode ser validamente sacrificado para proteger, em legítima defesa, os direitos à liberdade sexual, à integridade física ou até mesmo ao patrimônio. Contudo, essa possibilidade em nada o diminui e nem justifica reduções do direito.
As recentes exclusões de perfis, prisões de jornalistas e desmonetizações determinadas pelo Judiciário, sem qualquer base legal, constituem uma pequena amostra do que ocorrerá com o direito fundamental à liberdade quando for legalizada a censura a pretexto de proteger a verdade.
Os maiores interessados na censura são os que tem muito a esconder ou a perder com a livre concorrência. “Diga-me que fake news queres proibir e te direi quem és”11.
Expressão cunhada por Fernando Schüler em seu excelente artigo sobre a matéria – link - https://veja.abril.com.br/coluna/fernando-schuler/a-ilusao-da-verdade/?fbclid=IwAR3cBHFqZbybofBWiMM5pZyuE7FUU7FwxQ-tkIcobJycQtOjtleCbFVz8y8︎
https://www.ohchr.org/en/human-rights/universal-declaration/translations/portuguese?LangID=por︎
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm︎
https://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm︎
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10167333︎
A criminalização do discurso de ódio, que prega o cometimento de crimes violentos, seria importante para pacificar o ambiente virtual. Segue um link com sugestão sobre o assunto - https://www.conjur.com.br/2021-abr-09/weiss-proposta-crimes-odio-internet︎
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Art. 9º Aos provedores de aplicação de que trata esta Lei, cabe a tomada de medidas necessárias para proteger a sociedade contra a disseminação de desinformação por meio de seus serviços, informando-as conforme o disposto nos artigos 6º e 7º desta Lei.︎
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=OJ:L:2022:277:FULL︎
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https://www.cnnbrasil.com.br/politica/lei-europeia-que-inspira-pl-das-fake-news-foca-na-transparencia-nao-no-conteudo-entenda/#:~:text=Lifestyle-,Lei%20europeia%20que%20inspira%20PL%20das%20Fake%20News,transpar%C3%AAncia%2C%20n%C3%A3o%20no%20conte%C3%BAdo%3B%20entenda&text=O%20projeto%20de%20lei%202630,de%20busca%20e%20redes%20sociais.
Os dispositivos mencionados estão nos índices L277/45 e 46.︎
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CF de 1946 - Art. 44. Os deputados e os senadores são invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos.
CF de 1988 - Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos︎
O autor do artigo com esse título é Fabiano Lana, que discorreu com maestria sobre o tema. Link - https://www.estadao.com.br/politica/lula-jair-bolsonaro-diga-me-que-fake-news-quer-proibir-que-vou-te-dizer-quem-es/︎