A Teoria da Imputação Objetiva como relativização do direito à vida nos casos de suicídio assistido

06/11/2023 às 15:19
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Resumo

O presente artigo tem por finalidade levar ao debate acadêmico e jurídico a eventual possibilidade de relativização do direito à vida nos casos de suicídio assistido diante da aplicabilidade da teoria da imputação objetiva desenvolvida por Claus Roxin, o que retiraria a responsabilidade penal do autor do fato. A partir disso, em primeiro momento, debruçou-se sobre a teoria da imputação objetiva e sua inserção dentro da teoria geral do direito penal, suas consequências jurídicas, bem como sua evolução no cenário jurisprudencial. Posteriormente, o direito à vida e sua possiblidade e relativização e, em seguida, trabalhou-se a respeito do suicídio assistido, suas formas de aplicação e as consequências penais de sua prática. Por fim, buscou-se a ligação, eminentemente jurídica, da teoria da imputação objetiva no rompimento do nexo causal nos casos de suicídio assistido, tornando atípica tal prática e, portanto, isenta de responsabilidade penal.

Palavras-chave: Teoria da Imputação Objetiva. Direito à vida. Suicídio assistido. Rompimento do nexo causal. Atipicidade.

Abstract

The purpose of this article is to bring to academic and legal debate the possible possibility of relativizing the right to life in cases of assisted suicide given the applicability of the theory of objective imputation developed by Claus Roxin, which would remove the criminal responsibility of the author of the act. From this, firstly, it focused on the theory of objective imputation and its insertion within the general theory of criminal law, its legal consequences, as well as its evolution in the jurisprudential scenario. Subsequently, we worked on assisted suicide, its forms of application and the criminal consequences of its practice. Finally, we sought the eminently legal connection of the theory of objective imputation in breaking the causal link in cases of assisted suicide, making such a practice atypical and, therefore, exempt from criminal liability.

Keywords: Objective Imputation Theory. Right to life. Assisted suicide. Breaking the causal link. Atypicality.

Introdução

A Teoria da Imputação Objetiva na vertente desenvolvida por Claus Roxin vem ganhando espaço na seara acadêmica e jurisprudencial. Tal teoria surgiu, em primeiro momento, como uma forma de limitar a teoria da equivalência dos antecedentes causais, adota, em regra, pelo ordenamento jurídico brasileiro para delimitar o nexo causal presente no fato típico dentro conceito analítico de crime.

Seus requisitos e pressupostos ganham contornos interessantes ao limitar a existência do nexo causal entre a conduta praticada e o resultado obtido, o que poderia advir rompimentos que, por consequência, tornaria atípica determinadas condutas tidas como crimes.

Uma dessas condutas possíveis seria o suicídio assistido que, diversamente da eutanásia, é quando a morte resulta de uma ação do próprio paciente, ainda que seja ele orientado, auxiliado ou apenas observados por terceiros. Já na eutanásia a morte ocorre diretamente em virtude de uma ação ou omissão de um terceiro (SÁ, 2002, p. 151).

A responsabilidade criminal pode variar a depender do dolo do agente, assim como o resultado obtido. Essas variáveis poderiam restarem isentas de punição, visto o suposto rompimento do nexo causal ao se incrementar os requisitos presentes na Teoria da Imputação Objetiva desenvolvida por Roxin.

Nesse sentido, haveria uma saída jurídico-penal para o caminho da legalização do suicídio assistido, o que poderia legitimar sua prática. Para isso, seria necessário um maior embate jurisprudencial nos Tribunais pátrios para que se chegasse a uma certa segurança jurídica, tornando pacífico sua aplicação, sendo, posteriormente, necessário uma regulamentação detalhada pelos órgãos de saúde, a fim de apresentar seus requisitos e os procedimentos necessários para tornar seguro e transparente a prática do suicídio assistido.

Por fim, a metodologia empregada nesse trabalho foi o método dedutivo, com revisão bibliográfica de artigos, revistas, doutrina, jurisprudência e a legislação pátria.

1. A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA DE ACORDO COM CLAUS ROXIN

Claus Roxin foi o responsável por desenvolver a moderna teoria da imputação objetiva, em 1970, através de sua obra Reflexões sobre a problemática da imputação no direito penal.

A imputação objetiva refletirá a escola funcionalista ao qual o autor está vinculado. Primeiramente, para Roxin, a imputação objetiva é do resultado, dessa maneira, comportará três requisitos de imputação cumulativos, ou seja, os três precisam estar presentes para que haja a imputação do resultado (GRECO, 2017): a diminuição do risco, a criação de um risco juridicamente relevante, aumento do risco permitido e esfera de proteção da norma como critério de imputação.

Logo, ao se referir à imputação objetiva do resultado, essa análise é feita no tipo objetivo, ou seja, analisa-se a imputação objetiva do resultado antes mesmo do dolo ou culpa. Verifica-se se há conduta, se há nexo causal (quando o crime for material) faz-se, portanto, a análise da imputação objetiva do resultado, para apenas depois verificar o tipo subjetivo (dolo).

Existem algumas hipóteses de exclusão da imputação, uma interpretação contrário sensu desses três requisitos:

A) Ausência de risco proibido

Podemos citar como exemplo em relação à ausência de risco proibido, a hipótese de um médico que intervém no sentido de postergar a morte do paciente, no plano da Conditio Sine Qua Non, a conduta do médico seria causadora do resultado, embora, posteriormente, fosse excluído esse regresso ao infinito pelo dolo e pela culpa. Entretanto, o objetivo da imputação objetiva é antecipar essa análise para o próprio tipo objetivo, desonerando o dolo dessa responsabilidade de realizar a chamada imputação psíquica. Logo, embora a atuação do médico para postergar a morte fosse uma causa, observa-se que não há uma imputação objetiva do resultado, visto que, não há a criação um incremento de um risco proibido, muito pelo contrário, o médico está atuando dentro de um risco permitido (GRECO, 2017).

Também em relação à ausência do risco proibido, o doutrinador Luís Greco (2007) traz como exemplo a cumplicidade por ações neutras, que são aquelas condutas que, de alguma forma, colaboraram com a prática de um crime, porém são atividades rotineiras, ordinárias. O autor entende que a cumplicidade por ações neutras excluiria, em sua grande maioria dos casos, a responsabilidade, não para o autor, no entanto, para o partícipe.

B) Ausência da realização do risco em um resultado

Embora, eventualmente, possa ocorrer a criação de um risco não permitido, caso este não se realize no resultado, haveria uma exclusão da imputação. Portanto, a ausência de realização do risco no resultado é uma causa de exclusão da imputação.

O exemplo trazido por Roxin é o chamado caso dos pelos de cabra, trata-se de um caso verídico. Determinado fabricante havia feito a importação de pelos de cabra para confecção de pincéis e o fornecedor desses pelos descrevia, dentro do processo de produção, a necessidade de um processo de descontaminação daqueles pelos para que os trabalhadores envolvidos na produção do pincel não fossem contaminados. Entretanto, o fabricante, no intuito de economizar, deixou de fazer o processo de descontaminação, seus trabalhadores contraíram uma doença e alguns operários acabaram morrendo. O fato chegou aos tribunais, discutindo-se a responsabilidade do dono da fábrica. Todavia, restou comprovado que, mesmo tendo o dono da fábrica criado ou incrementado um risco não permitido, esse risco não teria se realizado no resultado, pois, o processo de descontaminação não era hábil, efetivamente, a expurgar, por completo, o agente patológico. Desse modo, com base no juízo de prognose do homem prudente, ainda que o fabricante tivesse feito o processo aconselhado pelo fornecedor, ele não teria evitado o resultado morte (ROXIN, 1993).

C) Ausência do resultado na esfera dos fins protetivos da norma

Embora o indivíduo possa ter criado ou incrementado um risco proibido, tendo esse risco se realizado no resultado, caso este não esteja dentro dos fins protetivos da norma (alcance do tipo), não haverá imputação do resultado (GRECO, 2017).

Assim, ante ao exposto, percebe-se que Roxin se baseia na ideia de risco, devendo, para que se possa falar em imputação do resultado, que este tenha gerado um risco inevitável, passando, assim, a ser merecedor de sanção penal.

1.1. A criação ou o aumento de um risco

A análise dos requisitos trazidos por Claus Roxin é de extrema importância, tendo em vista ser o ponto principal e mais trabalhado pelo respeitado autor alemão. Vejamos, inicialmente, o requisito da criação ou aumento de um risco.

Tal requisito baseia-se não ideia central do funcionalismo teleológico desenvolvido por Roxin, ou seja, a ideia de proteção ao bem jurídico, buscando preceitos e fundamentos na ideia de intervenção mínima do direito penal, ou seja, a intervenção de tal ramo do direito público só se faz necessário para coibir ações perigosas e que coloquem em risco o bem jurídico tutelado pela norma penal (MASSON, 2017).

Em resumo, se a conduta do agente não é capaz de criar ou aumentar um risco juridicamente relevante, ou se o resultado por ele pretendido não decorrer exclusivamente de sua conduta, tal resultado, caso ocorra, deve ser atribuído ao acaso, não merecedor de sanção penal (GRECO, 2017).

O exemplo clássico, citado pela maioria da doutrina e extraído da própria obra de Claus Roxin, seria na hipótese do sobrinho que, desejando a morte do tio, lhe compra uma passagem de avião para que este realize uma viagem, caso o avião caia e o resultado morte se concretize, não haveria margem para a imputação do resultado, tendo em vista que o simples fato de viajar de avião não gera real possibilidade de dano (MASSON, 2017).

Ainda para Roxin, tal requisito é a versão simplificada do princípio ou incremento do risco, desenvolvido na década de 60. Tal princípio preceitua que se a conduta de determinado agente não houve, de alguma forma, aumentado, a este não deverá lhe ser atribuído o resultado (GRECO, 2017).

Assim sendo, conforme o exposto, tal requisito é fundamental para que seja imputado o resultado ao agente, não deixando margem para incidência da norma penal nos demais casos, quando a sua conduta não gera um risco ao bem jurídico protegido pela norma penal.

1.2. Diminuição do risco

O requisito da diminuição do risco trabalhado por Roxin é, de certa forma, o mais claro e evidente. No entanto, é de grande importância sua análise, pois pode haver uma mudança na consequência trazida quando de sua aplicação, conforme se verá a seguir.

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Exemplificando tal requisito, a doutrina traz a seguinte situação: suponha que A percebe que uma pedra foi arremessada em direção da cabeça de B, tendo A empurrado B a fim de que a pedra não atingisse sua cabeça, tendo B sofrido lese escoriações em razão do empurrão. Percebe-se que a conduta de A não gerou o aumento de um risco, tendo, pelo contrário, diminuído o risco do resultado futuramente produzido (ROXIN, 2006).

Percebe-se que para a teoria finalista, a conduta de A configuraria uma causa de justificação, mais precisamente em estado de necessidade de terceiro, em razão da situação de perigo que acometia B. No entanto, ao se aplicar a teoria da imputação objetiva, tal situação acarretaria a atipicidade da conduta de A, tendo em vista a diminuição de um risco, ocasionando, assim, o rompimento do nexo de causalidade.

Portanto, não se deve imputar o resultado ao agente que, com sua conduta, diminuiu o risco previsivelmente mais grave, devendo ser reconhecida a atipicidade de tal ação.

1.3. Esfera de proteção da norma como critério de imputação

Por último, temos o requisito da esfera de proteção da norma como critério de imputação, tido como o mais complexo dentre os demais requisitos.

Tal requisito visa atrelar a imputação objetiva à hipótese de violação ao sentido protetivo do tipo incriminador, somente havendo responsabilidade quando a conduta afrontar a finalidade protetiva da norma (GRECO, 2017).

Ainda quanto ao requisito ora trabalhado, existência de causa em que há aumento do risco, não se deve imputar o fato ao agente causador do referido risco. Exemplificando, Roxin (1993) traz a seguinte situação em que alguém atropela e mata certa pessoa, havendo a mãe da vítima morrido de parada cardíaca em razão da notícia, senão vejamos:

Deve castigar A por lesão negligente causada na pessoa da mãe da vítima do acidente? (...) O que verdadeiramente importa para a solução do caso é perceber se há que limitar o fim protetor dos próprios preceitos que impeçam as consequências diretamente lesivas de bens jurídicos ou se pretendemos alarga-lo de modo a evitar danos secundários desencadeados por aquelas (...) Para o direito penal, parece-me político-criminalmente correta a limitação da esfera de proteção da norma aos danos diretos.

Conclui-se que, ante ao exposto, os danos tardios relacionados à lesão anterior causada ao bem jurídico não deve existir imputação, não havendo, portanto, relação de causalidade entre a conduta e o resultado.

2. O SUICÍDIO ASSISTIDO E SUAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS

Inicialmente, destaca-se que, no direito brasileiro vigente, não há menção expressa, seja no Código Penal, seja em leis esparsas, ao termo suicídio assistido ou, até mesmo, da eutanásia e suas implicações jurídicas.

Todavia, a doutrina é unânime ao afirmar que a prática da eutanásia constitui homicídio privilegiado, previsto no artigo 121, parágrafo 1º, do Código Penal. Tal prática, segundo o ordenamento jurídico pátrio constitui homicídio privilegiado por relevante valor moral, sendo aquele utilizado como forma de atender a um interesse particular, aprovado pela moralidade prática e considerado nobre e altruísta (MASSON, 2017).

Ressalte-se o que dispõe a exposição de motivos da parte especial do Código Penal:

39. Ao lado do homicídio com pena especialmente agravada, cuida o projeto do homicídio com pena especialmente atenuada, isto é, o homicídio praticado "por motivo de relevante valor social, ou moral", ou "sob o domínio de emoção violenta, logo em seguida a injusta provocação da vítima". Por "motivo de relevante valor social ou moral", o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso do homicídio eutanásico), a indignação contra um traidor da pátria, etc.

Note-se que a tratamento expresso neste item dado à eutanásia, relacionando-a à prática de homicídio privilegiado por relevante valor moral.

Quanto ao suicídio assistido, o Código Penal, em seu art. 122, tipifica o crime de Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, com a seguinte redação:

Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça: (Redação dada pela Lei nº 13.968, de 2019)

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.968, de 2019)

Nesse sentido, para o Código Penal Brasileiro a instigação ao suicídio, consiste no desenvolver em alguém a ideia de matar-se; o agente desenvolve a ideia já alimentada por quem deseja dar cabo à vida. Distinguindo-se do induzimento ao suicídio, pois nesta hipótese o agente cria a mesma ideia em outrem. Trata-se de crime de punibilidade condicionada. A sanção somente será aplicada se o suicídio se consumar ou se da respectiva tentativa decorrer lesão corporal grave.

A depender das circunstâncias do caso concreto, é possível a configuração do instituto da omissão penalmente relevante prevista art. 13, §2º, do Código Penal. Segundo tal dispositivo:

“A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.”

Desta forma, a depender do contexto fático, a responsabilidade penal do autor pode enquadrar-se no delito de homicídio doloso, na hipótese em que presentes os requisitos de aplicação do dispositivo legal acima mencionado.

Imaginemos a situação em que um médico, profissional que tem por lei obrigação de cuidado, venha a permitir a prática de suicídio assistido de um de seus pacientes em estado terminal, ao omitir-se em evitar que este desligue, por sua própria conta, os aparelhos necessários para a manutenção de sua vida, poderia configurar o delito de homicídio doloso diante da omissão penalmente relevante.

Portanto, ante o exposto, as consequências jurídico-penal do suicídio assistido pode variar de acordo com a figura do agente, o verbo do tipo praticado, além das circunstâncias do caso concreto, podendo ora acarretar a tipificação dos delitos de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, homicídio consumado ou tentado.

3. O DIREITO À VIDA E A SUA RELATIVIZAÇÃO

O direito à vida vai além do mero direito a estar vivo. Essa seria uma noção anterior ao filtro da dignidade da pessoa humana. Hoje, trabalha-se com uma noção de vida digna. A vida digna ampliou as proteções ao indivíduo, abrangendo a integridade física, a integridade psíquica, a integridade moral e a intimidade.

Evoluindo ainda mais na discussão sobre a vida digna, a melhor doutrina, atualmente, discute o ponto da morte digna. Dentro desse tema, tratar-se-á da questão do testamento vital ou testamento biológico.

O testamento vital (testamento biológico) é um instrumento através do qual se viabiliza um ser humano a viver a própria morte. A premissa é que se trate de uma doença incurável, em estágio terminal, e uma manifestação válida de vontade do doente quando ainda contava com a sua plena saúde mental. Essa manifestação anterior, quando o sujeito estava plenamente saudável, será utilizada quando ele estiver no estágio terminal da doença incurável.

Por exemplo, o sujeito que descobre uma doença incurável, em estágio terminal, e que, antes de ser totalmente acometido pela doença dispõe sua vontade de não se submeter a determinados tratamentos, que considera degradantes, com a prolongação do sofrimento. A pessoa não deseja passar por isso e nem quer que sua família também tenha seu sofrimento prolongado.

O Brasil ainda não adota esse instituto em relação a doentes terminais. Há a Resolução 1995 de 2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que está sendo impugnada por Ação Civil Pública no MPF e há o projeto de lei 524 de 2009 que está parado no Senado. Além disso, há a Res. 1850 do CFM e o anteprojeto do novo Código Penal que discutem o tema.

Convém mencionar os efeitos reflexos que uma doença grave e incurável transmite, como, por exemplo, o sofrimento da família do enfermo, o alto custo da manutenção dos tratamentos, bem como, em países não desenvolvidos, a escassez de vagas em hospitais destinados a outros doentes acometidos por enfermidades menos graves, com capacidade de cura, mas que acabam morrendo em virtude de tal realidade.

Porém, tal análise deve ser sopesada à luz a indisponibilidade do direito à vida, bem como da sua não violação pela incompetência estatal em cumprir seus deveres.

A vida é considerada o bem jurídico de maior relevância dentro do direito penal, portanto, a prática da eutanásia ou do suicídio assistido, em qualquer caso, violaria claramente tal direito.

No entanto, é de ser relevado que à luz do ordenamento jurídico brasileiro, tal direito se encontra cada vez mais relativizado. Como exemplo, podemos destacar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, através do HC nº 124306/RJ, reconhecendo que a interrupção da gravidez no primeiro trimestre de gestação provocada pela própria gestante ou com o seu consentimento não é crime, senão vejamos a ementa do julgado:

Ementa: DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

Apesar de ser uma decisão isolada, demonstra a tendência que, futuramente, o direito à vida seja cada vez mais relativizado em casos excepcionais.

Em relação a legitimidade da prática do suicídio assistido, o que deve ser ponderado, dentre outros valores imprescindíveis ao ser humanos, é que de um lado nota-se o direito à vida e sua relevância no ordenamento jurídico pátrio, de outro o direito à liberdade como escolher morrer dignamente.

4. A AUSÊNCIA DE INCREMENTO NO RISCO EM CASOS DE DOENÇAS TERMINAIS

Conforme indagações expostas em linhas anteriores, a prática do suicídio assistido em doentes terminais pode ensejar a aplicação da teoria da imputação objetiva no resultado de Roxin, tendo em vista a ausência de incremento no risco, bem como a inexistência de um risco juridicamente relevante gerado a partir da conduta do agente.

A partir da análise dos requisitos apresentados nos tópicos acima, percebe-se que a criação ou aumento de um risco juridicamente relevante é essencial para que haja imputação, pois, de qualquer forma, o resultado teria ocorrido.

Fazendo um paralelo com a prática do suicídio assistido em doentes terminais, percebe-se que, utilizando o processo hipotético de eliminação desenvolvido por Thyren, retirando-se a conduta do agente que induz ou instiga a pratica do suicídio assistido em um enfermo terminal, não traz mudanças significativas no resultado, ante a sua previsibilidade objetiva e clara.

Como por exemplo, podemos citar o caso de um enfermo grave, portador de um câncer de pulmão em estado terminal, possuindo pelos médicos somente alguns dias de vida, tendo-o já aceitado e querido o quanto antes a chegada da morte até para amenizar seu sofrimento e de sua família.

A conduta dos médicos em permitir a retirara dos aparelhos respiratórios pelo próprio enfermo, por si só, não evitaria resultado morte, ou seja, a morte teria acontecido da mesma maneira, portanto, ausente estaria a criação do risco juridicamente proibido e imprevisível na conduta dos profissionais.

Ressalte-se que o Superior Tribunal de Justiça, na análise do Habeas Corpus nº 46525, através do Ministro Arnaldo Esteves Lima, aplicou a teoria da imputação objetiva a um caso concreto, alegando a ausência de previsibilidade de nexo de causalidade e da criação de um risco não permitido, trancando a ação penal. Nesse contexto, vejamos trecho do julgado abaixo:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO. MORTE POR AFOGAMENTO NA PISCINA. COMISSÃO DE FORMATURA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ACUSAÇÃO GENÉRICA. AUSÊNCIA DE PREVISIBILIDADE, DE NEXO DE CAUSALIDADE E DA CRIAÇÃO DE UM RISCO NÃO PERMITIDO. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA. 1. Afirmar na denúncia que "a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito" não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, "A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas". 2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individualização das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva, não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina. 3. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da ingestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação em risco, excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal. 4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, porquanto é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa. 5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o princípio da confiança, as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência de previsibilidade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta. 6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido, em relação a todos os denunciados, por força do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal (STJ, HC 46.525-MT, Quinta Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves, j. 20.03.06).

Na prática do suicídio assistido em doentes terminais inexiste a real possibilidade de dano na conduta do agente, bem como a ausência de criação de risco, pois mesmo que se retire a conduta do agente, o resultado teria ocorrido.

Considerações Finais

O presente artigo teve como objetivo discutir a possibilidade da prática do suicídio assistido em doentes terminais ser considerada conduta atípica à luz da aplicação da teoria da imputação objetiva, sendo mais uma possibilidade de relativização do direito à vida.

No tópico trabalhou-se com a teoria da imputação objetiva na vertente trabalhada por Claus Roxin dentro de seu funcionalismo teleológico, abordando-se seus requisitos e finalidades. Fez-se um paralelo com as teorias existentes no Código Penal para delimitar o nexo de causalidade, como a teoria da equivalência dos antecedentes causais

No tópico seguinte abordou-se o direito à vida e a possibilidade de sua relativização, trabalhando exemplos doutrinários e jurisprudenciais.

Por derradeiro, o último tópico tratou sobre a problemática a qual reveste-se o presente trabalho, fazendo um paralelo entre a teoria da imputação objetiva e a pratica do suicídio, buscando tornar atípica a sua prática em doentes terminais, trazendo institutos do direito penal.

Por fim, chegou-se à conclusão da possibilidade de tornar atípica a prática do suicídio assistido em doentes terminais, ante a ausência de incremento de um risco juridicamente relevante causada pela conduta do agente, aplicando-se, assim, a teoria da imputação objetiva, sendo, desta forma, mais uma hipótese de relativização do direito à vida.

Referências

SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito – Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

MASSON, Cleber. Direito Penal – Vol. 1 – 11.ª ed – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, Vol 01, 19º Ed. - Niterói, RJ: Impetus, 2017.

GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

ROXIN, Claus, Problemas fundamentais de direito penal. 2ª ed. – Vega, 1993

____________. Estudos de direito penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

Sobre o autor
Diego Rocha de Vasconcelos

Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Professor de Direito Processual Civil na FAGEO – Faculdade Georgina.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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