Desafios à efetivação da prestação jurisdicional: análise dos efeitos jurídicos da ilegitimidade ativa da associação nas ações possessórias de comunidades tradicionais

06/11/2023 às 15:00
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RESUMO

O direito ao acesso à justiça, previsto na Carta Magna, em seu art. 5º, XXXV, consiste na chmada inafastabilidade da jurisdição, ou seja, não afasta da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito. Ocorre que esse direito quando não é garantido no feito por razões de formalismos processuais enseja a violação de outros direitos e garantias fundamentais, como no caso de extinção do processo por suposta ilegitimidade da Associação para figurar no polo ativo de ações possessórias envolvendo comunidades tradicionais. A problemática desse estudo é justamente identificar quais os efeitos jurídicos dessa extinção processual para os povos e comunidades tradicionais. Os objetivos consistem na análise da legitimidade da Associação para representar os interesses da coletividade beneficada pelo ajuizamento da ação e identificar os desafios à efetivação da prestação jurisidcional quando não observada essa legitimidade ad causam. Para isso, utilizou-se a pesquisa qualitativa e quantitativa e como método de coleta de dados a pesquisa bibliográficas em meio físico e eletrônico, em obras individuais e coletivas, além da pesquisa em acervo legislativo e documental. Como resultados, chegou-se a conclusão de que a Associação possui legitimidade para representar os interesses de comunidades tradicionais em demandas possessórias e que a inobservancia desse entendimento enseja a violação de direitos fundamentais coletivos e princípios constitucionais, como o patrimonio histórico e cultural e a razoável duração do processo, a cooperação e a proporcionalidade.

PALAVRAS-CHAVE: Acesso à justiça; Associação; legitimidade.

ABSTRACT

The right to access to justice, provided for in the Magna Carta, in its art. 5th, XXXV, consists of the so-called non-defeasibility of jurisdiction, that is, it does not exclude injury or threat to rights from the Judiciary's assessment. It turns out that this right, when not guaranteed in the course for reasons of procedural formalism, leads to the violation of other fundamental rights and guarantees, as in the case of termination of the process due to the Association's supposed illegitimacy to be in the active pole of possessory actions involving traditional communities. The problem of this study is precisely to identify the legal effects of this procedural extinction for traditional peoples and communities. The objectives consist of analyzing the legitimacy of the Association to represent the interests of the community benefiting from the filing of the action and identifying the challenges to the implementation of jurisdictional provision when this ad causa legitimacy is not observed. For this, qualitative and quantitative research was used and as a data collection method, bibliographical research in physical and electronic media, in individual and collective works, in addition to research in legislative and documentary collections. As a result, the conclusion was reached that the Association has legitimacy to represent the interests of traditional communities in possessory demands and that failure to comply with this understanding leads to the violation of collective fundamental rights and constitutional principles, such as historical and cultural heritage and reasonable duration of the process and cooperation and proportionality.

KEY-WORDS: Access to justice; Association; legitimacy.

  1. INTRODUÇÃO

Decerto que o direito fundamental ao acesso à justiça está tutelado tanto na Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, XXXV, como direito fundamental, como em diplomas normativos internacionais, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, através do Decerto n. 678, em seu art. 8º, sendo, portanto, considerado como direito humano.

Contudo, a prestação jurisdicional nem sempre é assegurada materialmente às comunidades tradicionais, como no caso da extinção de processos coletivos sem resolução do mérito sob o fundamento de ilegitimidade ativa da associação em tutelar interesse de terceiros, a exemplo do caso do Quilombo de Lago do Coco, assistido pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Maranhão.

Assim, a partir de agora, demonstrar-se-á a legitimidade da Associação para figurar no polo ativo de lides possessórias envolvendo comunidades tradicionais e de que modo o entendimento judicial em sentido contrário enseja a violação de direitos fundamentais e princípios constitucionais dessas coletividades.

  1. DA LEGITIMIDADE AD CAUSAM DA ASSOCIAÇÃO EM AÇÕES POSSESSÓRIAS

Um dos pressupostos para o desenolvimento regular do processo e que consiste em uma das condições da ação é a legitimidade para figurar no polo ativo ou passivo de determinada lide, conforme se depreende do art. 17, do Código de Processo Civil.

Assim, a petição inicial deve ser indeferida, pelo juízo, quando a parte for manifestamente ilegitima, nos moldes do art. 330, II, do CPC.

Em casos de conflito coletivos, é possível que a Associação (pessoa jurídica representante da coletividade) figure no polo ativo da ação judicial.

Esse é, inclusive, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

No Resp n. 1.993.506-MT, a Relatora, Minista Nancy Andrighi, firmou entendimento que, em ações ordinárias, as partes processuais devem ser titulares da relação jurídica de direito material, salvo quando devidamente autorizadas para pleitear, em juízo, direito alheio, com fulcro nos art. 18, do CPC.

Em tal dispositivo, enquadra-se a legitimidade das associações para repreentar os interesses dos associados quando expressamente autorizada por estes, através de ata assemblear, como se extrai, segundo a relatora, do art. 5°, XXI, da CRFB/88.

Assim, nesses casos, a Associação atua como representante processual, já que vai a juízo pleitear em nome e no interesses dos associados, devendo, para tanto, apresentar autorização expressa dos filiados.

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Caso a referida autorização não seja juntada quando da prorpositura da ação, o juiz deve oportunizar a parte a correção do vício, não devendo, portanto, extinguir de imediado o feito, nos termos do art. 76, do CPC e em observância aos princípios da cooperação porcessual e razoabilidade.

Por fim, consoante o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, há casos em que a associação não precisa juntar a ata com a autorização dos associados. Nessa situação, trata-se de atuação como substituta processual, ou seja, quando o direito pleiteado não é apenas dos representados, mas também difuso (de titularidade indeterminada).

Como se verá a partir de agora, no caso do Quilombo Lago do Coco, a decisão ora guerreada atinge não apenas direito possessório que, como representante de seus associados, a Associação busca tutelar, mas também que pode discutir como substituta processual, considerando que a resolução da lide transcende a questão dos direitos coletivos, abrangendo também direitos difusos, já que a área objeto do conflito compreende Território Quilombola que necessita ser preservado como patrimônio histórico e cultural na nação brasileira (art. 23, III e art. 216, §§1º e 5º da CF).

  1. ANÁLISE DOS EFEITOS JURÍDICOS OCASIONADOS DO ENTENDIMENTO JUDICIAL DE ILEGITIMIDADE ATIVA DA ASSOCIAÇÃO EM DEMANDAS POSSESSÓRIAS

Conforme o Sistema de Atendimento, Geração e Acompanhamento Processual da Defensoria Pública do Estado do Maranhão – SAGAP, no ano de 2017, foi instaurada a tutela coletiva n. 12/2017 com o objetivo de atender a demanda fundiária da Comunidade Quilombola de Lago do Coco.

Em diligência, o NDH/DPEMA ajuizou, na data de 29 de janeiro de 2019, ação de reintegração de posse com pedido de liminar n. 67-02.2019.8.10.0080 em face dos esbulhadores, na Comarca de Cantanhede/MA.

Porém, no primeiro pronunciamento, o juízo, sem determinar incialmente a emenda da inicial, extinguiu o processo sem resolução do mérito sob o fundamento de que a Associação Remanescente de Quilombo Lago do Coco não seria parte legítima para defender, em nome próprio, direito possessório alheio. Por consequência, o juízo da Comarca de Cantanhede/MA extinguiu o processo sem resolução do mérito.

Em razão da grave demanda possessória, o Defensor Público signatário ajuizou imediatamente nova ação de reintegração de posse com pedido de liminar n. 0800366- 43.2019.8.10.0080. Contudo, dessa vez, representando os 45 (quarenta e cinco) integrantes do Território Quilombola de Lago do Coco.

Como efeitos jurídicos, foram identificados os seguintes: o cerceamento do direito ao acesso à justiça, haja vista que, no caso do Quilombo de Lago do Coco, a lesão ao direito invocado não foi apreciada pelo Poder Judiciário por um aspecto meramente processual, sem que, inclusive, fosse possibilitada a emenda da inicial pela parte autora; a inobservância do princípio da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CRFB/88), considerando a extinção do feito e a necessidade de ajuizamento de nova ação; a inobservância do princípio da razoabilidade e da cooperação (arts. 6º e 8º, do NCPC) entre os sujeitos do processo (incluindo o magistrado), que considerou ilegítima a Associação para figurar no polo ativo, apesar de que esta não estava defendendo direito de terceiros, mas sim seu próprio direito, já que, ao final do processo de regularização fundiária, a titular da propriedade e da posse do referido Território será a Associação, nos termos do art. 68, do ADCT; a tumultuação do processo judicial em razão da exigência desarrazoada em figurar no polo ativo guarde número de pessoas ao invés da Associação; a violação do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos difusos, como a preservação do patrimônio histórico e cultural, tendo em vista o retardo na apreciação do pleito liminar.

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  1. CONCLUSÃO

Como observado ao longo desse estudo, a Associação possui legitimidade para figurar no polo ativo de ações possessórias representando comunidades tradciionais. Contudo, nem sempre esse é o entendimento judicial.

Há casos, como o do Quilombo Lago do Coco, de extinção imedidata do processo por ausência de legitimidade da Associação.

Tal entendimento representa verdadeiro embaraço à efetividade do direito ao acesso à justiça por essas comunidades, além de ocasionar a violação de outros direitos fundamentais, como a vida e o ptrimonio histórico e cultural, considerando que, nesses Territórios, há artefatos e monumentos que representam o processo de formação daquela comunidade e do próprio povo brasileiro, além de violar princípios constitucionais, como a razoável duração do processo, a proporcionalidade e a razoabilidade.

  1. REFERÊNCIAS UTILIZADAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível :

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: fevereiro, 2023.

BRASIL..Decreto n. 678, de 06 de novembro de 1992. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm>. Acesso em: fevereiro, 2022.

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: fevereiro, 2023.

DPEMA. Sistema de Atendimento, Geração e Acompanhamento Processual da Defensoria Pública do Estado do Maranhão - SAGAP. Disponível em:< https://defensoria.ma.def.br/SAGAP/>. Acesso em: fevereiro, 2023.

Sobre a autora
Mylena Prado Privado

Assessora jurídica da 2 Defensoria de Direitos Humanos da DPEMA. Pós-graduada em Direitos Difusos e Coletivos pelo CEI. Pós-graduanda em Direito Público pela Faculdade Aldemar Rosado. Egressa da Universidade CEUMA. Idealizadora do @nasciparaserdefensora.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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