Isolados em alto-mar: trabalhadores, a bordo!

Resumo:


  • O dano existencial pode ser configurado quando a duração do trabalho, de forma reiterada e ilegal, suprime o tempo de disponibilidade pessoal, familiar e social do trabalhador em limites gravemente acima dos permitidos pela ordem jurídica.

  • A condição de isolamento dos trabalhadores em alto-mar, por si só, não enseja reparação por dano existencial a menos que seja acompanhada de provas de prejuízos ao convívio social e familiar decorrentes de jornadas de trabalho extenuantes.

  • O Tribunal Superior do Trabalho entende que a exigência de cumprimento de jornada extensa não caracteriza dano existencial sem demonstração de prejuízo às relações pessoais e sociais ou à execução de projetos de vida pessoal do empregado.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Quando o isolamento permite a configuração do dano existencial?

O uso do tempo e a seara trabalhista são dois elementos que, inevitavelmente, caminham de mãos dadas. Segundo Marx, em “O Capital: Crítica da Economia Política”, a jornada de trabalho precisa ter limite mínimo e máximo, pois, durante o dia, o trabalhador possui outras necessidades além de obter os seus meios de subsistência, como o descanso e a alimentação, para recuperação da força física vital; e a manutenção das relações sociais, para conservação de vínculos essenciais (MARX, 2013, p. 391).

Nessa perspectiva, o psicólogo norte-americano, David McClelland (1961, p. 391-394), elabora, dentro do campo das teorias de conteúdo da motivação, a teoria das necessidades socialmente adquiridas, explicitando que os seres humanos são movidos por três necessidades, a de realização pessoal, a de poder e influência, e a de associação ou filiação, que reflete o desejo de manter relacionamentos próximos e amigáveis em sociedade.

Os trabalhadores em alto-mar, a exemplo dos embarcados em plataformas petrolíferas e em cruzeiros marítimos, vivem condição peculiar em relação à maioria dos trabalhadores; estão isolados, por período determinado, em seus respectivos ambientes de trabalho, ainda que estejam em momentos de descanso, fora de sua jornada de trabalho, mantendo relações restritas e à distância com familiares e amigos, pelos meios tecnológicos possíveis.

À vista disso, Mauricio Godinho Delgado (2019, p. 782), conceitua o dano existencial como a lesão à pessoa humana através da supressão do tempo útil, razoável e proporcional de disponibilidade pessoal, familiar e social, resultante da exacerbada e ilegal duração do trabalho no contrato empregatício, em limites gravemente acima dos permitidos pela ordem jurídica vigente, no tocante à prestação de horas extras, de forma reiterada, contínua e por longo período.

Importante destacar que, para o direito brasileiro, é considerada jornada excessiva aquela que prorroga para além da duração ordinária, a duração extraordinária do tempo de efetivo serviço e à disposição do empregador, de modo diverso ao previsto em lei ou em norma coletiva (GARCIA, 2018, p. 777-813).

Dessa maneira, torna-se evidente que o isolamento dos trabalhadores em alto-mar, característica inerente ao ambiente das funções exercidas, conhecida previamente por todos, por si só, não geraria direito à reparação do dano existencial, nos termos do art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, e art. 186 do Código Civil, sob pena de violação ao princípio da boa-fé objetiva, especificamente o venire contra factum proprium.

Isso porque, durante a relação jurídica mantida entre empregado e empregador, devem ser reunidas condições suficientes para ensejar mutuamente um estado de legítima confiança no negócio celebrado, através da previsibilidade do comportamento alheio, estando ausente qualquer posição que contradiga o comportamento assumido anteriormente pelo titular do direito (FARIAS, 2019, p. 184-216).

Contudo, é possível eventual condenação à reparação por dano existencial, visando proteger, de modo final, a dignidade da pessoa humana, especialmente a integridade física e psíquica do trabalhador em alto mar, desde que o acervo probatório contido nos autos processuais, demonstre, além do exercício de uma jornada de trabalho extenuante, o efetivo prejuízo ao convívio social e familiar do empregado, e não o isolamento periódico per si.

Nesse sentido, entendimento que vem sendo firmado pelo Tribunal Superior do Trabalho:

"[...] II - AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELO RECLAMANTE. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DAS LEIS Nº 13.015/2014 E Nº 13.467/2017 - DANO EXISTENCIAL. JORNADA DE TRABALHO EXCESSIVA. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. MATÉRIA FÁTICA. Esta Corte Superior tem se manifestado no sentido de que a exigência de cumprimento de jornada extensa, com a prestação de muitas horas extras, por si só, não caracteriza dano existencial. Isso porque o dano existencial provém de uma conduta do empregador que resulta na violação de qualquer um dos direitos fundamentais do trabalhador, causando um impedimento de o empregado executar o projeto de vida pessoal ou usufruir de suas relações pessoais e sociais fora do ambiente laboral. No presente caso, não ficou consignado no acórdão regional nenhuma informação no sentido de que a exigência de trabalho extraordinário tenha afetado o convívio social ou impedido a execução dos projetos pessoais do reclamante. Agravo de instrumento de que se conhece e a que se nega provimento. [...]" (ARR-11673-30.2016.5.09.0009, 2ª Turma, Relator Ministro Sergio Pinto Martins, DEJT 17/02/2023). (grifado)

Em verdade, estar isolado no ambiente de trabalho 24h por dia, facilita a violação às normas previstas no ordenamento jurídico trabalhista, por criar contexto favorável para práticas ilegais, considerando a falsa percepção de que o trabalhador estará sempre à disposição para a execução das atividades, possibilitando a configuração do dano existencial.

No entanto, a ideia deve ser desconstruída corporativamente entre os colaboradores e líderes de todos os níveis hierárquicos, a fim de que se mantenha um ambiente laboral saudável, resguardada o direito à manutenção das relações sociais e à execução dos projetos de vida, ainda que em ambientes de isolamento periódicos como o alto-mar.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 07 nov. 2023. 

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 07 nov. 2023.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019.

FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direto civil: contratos. 9 ed. ver. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

GARCIA, Gustavo Felipe Barbosa. Manual de direito do trabalho. 11 ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. Disponível em: <https://www.gepec.ufscar.br/publicacoes/livros-e-colecoes/marx-e-engels/o-capital-livro-1.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2023.

McCLELLAND, D. C. The Achieving society. New Jersey: Van Nostrand, 1961. Disponível em: <https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=mdp.39015003646802&seq=8>. Acesso em: 07 nov. 2023.

Sobre a autora
Lhaysla Manuelle Matos Oliveira

Lhaysla Manuelle Matos Oliveira. Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Ex-estagiária da Superintendência da Polícia Federal em Sergipe e estagiária do Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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