A Reforma de Sentença pela Segunda Instância

09/11/2023 às 18:06

Resumo:


  • O direito de recorrer a uma instância superior é um princípio fundamental nos sistemas jurídicos democráticos, permitindo que erros, omissões ou injustiças na sentença de primeira instância possam ser corrigidos.

  • Na esfera criminal, a reforma de uma sentença que absolveu o réu deve ser tratada com cautela, considerando que o juiz de primeira instância teve contato direto com as provas e testemunhas, e que a liberdade do indivíduo é um valor supremo.

  • Uma decisão condenatória deve se basear em provas concretas e cabais, e a dúvida beneficia o réu; a revisão de uma absolvição pela segunda instância demanda prudência para evitar erros judiciários.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Reforma de Sentença pela Segunda Instância

Sumário. Nos pleitos judiciais, à parte sucumbente assiste o direito de recorrer, o que de ordinário faz o réu nos processos criminais. Mas, se da sentença que o absolveu apela a Justiça Pública, pugnando-lhe pela reforma, então o Tribunal costuma cingir-se de cautelas especiais: pois não raro na emenda é que está o erro.

I. Isto de não se conformar o indivíduo com uma decisão que lhe seja desfavorável é próprio da condição humana; ensinou-lhe esta, com efeito, já na primeira infância, que ficar vencido, ou desonrado, tudo é um!

Perante os fatos da vida, a resignação ao infortúnio, quando ainda era possível reagir (e talvez superá-lo), argui uma como tibieza e pusilanimidade, qualidades incompatíveis com o homem de brio. Donde a máxima de sabedoria, que se aprende com o leite materno: Viver é lutar.1

Isso bem entendeu e pregou, forte em Kant, o profundo Rudolf von Ihering, em seu livro famoso: Aquele que se deixa rastejar “como um verme nunca deverá queixar-se de que foi calcado aos pés”.2

Nas disputas judiciais passa o mesmo: a parte sucumbente, sobretudo quando se tem na conta de vítima de injustiça, não perdoa a tempo nem a sacrifício para repará-la. É o que sucede as mais das vezes.

O que fia da Justiça a solução de suas pendências nem sempre adverte, no entanto, que, na esfera judicial, não basta alegar o direito, é mister comprová-lo sem falta. Ainda: antes da sentença, ninguém tem razão!

Mas, a dar-se o caso que, havendo-se embora desempenhado regularmente do ônus da prova, o litigante venha a decair da causa, poderá apelar da decisão para a superior instância.

Na Justiça Criminal essa praxe é observada sem quebra: o réu apela por força, que não lhe sofre o ânimo trazer na fronte o estigma de condenado!

Daqui o existir o duplo grau de jurisdição, pedra de toque da ordem jurídica nos regimes democráticos.

Conquanto não falte voz em contrário,3 os dados da experiência vulgar autorizam a afirmação de que, ainda quando obrem com sumo desvelo, também os juízes estão sujeitos a erros. Numa palavra: todos conjugamos o verbo errar!

Tratando-se porém de erro do juiz em seu ofício, não há senão atender ao prudente alvitre de Rui: “Melhor será que a sentença não erre. Mas, se cair em erro, o pior é que se não corrija” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 46).

A razão por que se instituiu a via recursal deu-a pontualmente o mesmo excelso jurista, em texto que merece reproduzido assim pelo teor como pela forma: “O bom-senso humano, em todos os tempos, tem reconhecido não ser lícito abandonar a sorte da lei comum e dos direitos por ela assegurados às contingências do julgamento por um só tribunal. Daí a concepção das instâncias, dos recursos e, especialmente, das apelações, destinadas a corrigirem, mediante segundo exame do caso em cada lide, os vícios, omissões e nulidades do processo, os erros, abusos e injustiças da sentença” (Rui Barbosa, Obras Completas, vol. XLV, t. IV, p. 169).

O uso de recorrer já o reputava Ulpiano remédio salutar, “que se criou para emendar a iniquidade e reparar a imperícia dos julgadores (ibidem).

II. Apelar da sentença não significa, “a priori”, que ela encerre vício ou defeito, apenas que assiste ao apelante o direito de vê-la apreciada pela superior instância.

Por outro lado, não há presumir que, por isso mesmo que dela apelara a parte, deva-a forçosamente reformar o Tribunal.

No que respeita ao processo criminal, a cautela do juiz (e talvez melhor disséramos escrúpulo) muito sobe de ponto, pois tem entre mãos não menos que a liberdade, bem supremo, sem o qual a própria vida parece não merecia os cuidados que lhe costumamos dispensar.

Apertando mais o argumento: é lance de bom aviso considerar com prudência (e até mesmo com reserva) pedido de reforma de decisão que, na primeira instância, absolveu o réu. Mais de uma razão o justifica e recomenda. O juiz da causa, se absolveu o réu, presume-se — ordinariamente falando — que era o mais apto a fazê-lo: próximo do fato, conhecia-lhe melhor as circunstâncias; ao demais, inquiriu as testemunhas, interrogou o acusado (e, destarte, surpreendeu-lhe as reações anímicas e informou-se dos traços mais vivos de seu caráter); foi ele, por fim, o que ordenou a realização das diligências necessárias à instrução do processo.

Tal sentença — expressão da verdade sabida e provada, aferida conforme os ditames da consciência do magistrado e com observância dos preceitos da lei — tem, porque assim o digamos, selo de justiça e padrão de veracidade, que a tornam maior de todo o erro.

A assinatura do juiz na decisão que absolveu o réu será, portanto, um novo argumento de sua inocência, bastante a abalar, por temerário, o esforço de modificá-la.

A prática de decidir com demasiado rigor e render culto irrestrito aos ápices da lei nunca mereceu aos espíritos retos e generosos aprovação e louvor, como consta da veneranda parêmia: “Summum jus, summa injuria”.4

À derradeira, os que julgam, notadamente os que se arrogam a função de palmatória do mundo, não lhes esqueça aquilo de um exímio e lúcido escritor: “Muitas vezes, na emenda é que está o erro”!5 Ou, mais ao nosso intento, a discreta lição de Mário Guimarães, em livro a todos os respeitos notável: “A ciência do Direito é tão difícil e tão falível o entendimento humano, que bem pode acontecer que o juiz de segunda instância, supondo estar com a razão, seja quem, na verdade, labore em erro”.6

III. Adotou esse critério de ponderação e razoabilidade o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, ao confirmar, pelo acórdão adiante reproduzido em sua inteireza, sentença que absolvera certo réu da acusação de roubo.

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL

DÉCIMA QUINTA CÂMARA

Apelação Criminal nº 1.257.229/9

Comarca: São Paulo

Apelante: Ministério Público

Apelado: JCSS

Voto nº 3156

Relator

– O princípio geral de que toda a decisão condenatória deve assentar em prova plena e cabal (não só da materialidade do fato criminoso, senão também da autoria e culpabilidade do agente) manda afastar da cabeça do réu o gládio da Justiça, nos casos de dúvida invencível.

– Muita cautela devem ter os órgãos do Poder Judiciário ao reexaminar processo em que, na Primeira Instância, foi o réu absolvido. É que, mais próximo da causa e em contacto direto com o réu e testemunhas, como que inspiram o Juiz notáveis e puros influxos da Verdade. Donde a geral concepção de que, a assinatura do Juiz em sentença absolutória deve interpretar-se por um novo e venerável testemunho a favor da inocência do réu.

– Mais de um caso têm recenseado os anais forenses de decisões que, louvando-se em meros indícios, foram motivo e ocasião de deploráveis erros judiciários.

1. Inconformado com a r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito da 10a. Vara Criminal da Comarca da Capital, absolvendo JCSS da imputação de infrator do art. 157, § 2º, ns. I e II, do Código Penal, interpôs recurso para este Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la, o ilustre representante do Ministério Público.

Nas razões de recurso, afirma que o eminente Julgador não se houvera com o costumeiro acerto ao absolver o réu, pois que o não autorizavam as provas dos autos; pelo que, espera que a colenda Câmara lhe proveja o recurso para condená-lo nos termos da denúncia (fls. 151/154).

A nobre Defesa apresentou contrarrazões de recurso, nas quais repeliu a pretensão da Promotoria de Justiça e propugnou a manutenção da r. sentença de Primeiro Grau (fls. 157/163).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em sólido e ponderado parecer do Dr. Plínio Antonio de Britto Gentil, opina pelo provimento da apelação (fls. 170/172).

É o relatório.

2. O órgão do Ministério Público deu denúncia contra o réu porque, no dia 5 de maio de 2000, pelas 13h, na Rua Ilha de São Francisco, nesta Capital, obrando em concurso e identidade de propósitos com os adolescentes Francisco de Assis Leite Filho e Reinaldo Alves da Silva, subtraíra para si, mediante grave ameaça exercida com o emprego de arma de fogo contra Sinval Gomes da Silva, a motocicleta Honda/CBR-450, placa BRW-8322.

Reza a peça de intróito da ação penal que o réu transportara os adolescentes em seu veículo até às proximidades do local dos fatos, onde desceram e dirigiram-se à vítima. Reinaldo, arma em punho, anunciou-lhe tratar-se de assalto. Após subjugar a vítima, os adolescentes subiram na motocicleta e evadiram-se, enquanto o réu os aguardava nas proximidades, dentro do automóvel, dando-lhes cobertura.

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Consumado o roubo, os adolescentes e o réu foram detidos em flagrante delito, dentro do mencionado carro.

Instaurada a persecução criminal, tramitou o processo na forma da lei; a r. sentença de fls. 147/149 absolveu o réu, sob o fundamento da insuficiência de prova.

O combativo Dr. Promotor de Justiça, no entanto, dissentindo do desfecho da causa, manifestou recurso para esta augusta Corte de Justiça.

3. A despeito dos bons esforços e talentos do ilustre representante do Ministério Público, tenho que a r. sentença de Primeiro Grau merece mantida, por isso mesmo que proferida segundo a prova dos autos e as regras do Direito e da Justiça.

Na real verdade, suposto veementes os indícios da responsabilidade criminal do réu, falecem elementos de certeza de que tenha concorrido para a prática da infração penal.

Interrogado em Juízo, negou o réu a imputação (fl. 61 v.).

A vítima Sinval Gomes da Silva, inquirida na instrução criminal, declarou não reconhecia o réu, ainda que discorresse do roubo com todas as circunstâncias (fl. 93).

A testemunha Silvana, essa narrou ter visto os menores a apontar arma para a vítima e exigir-lhe a entrega da motocicleta. Ajuntou que não viu o réu (fl. 94).

As testemunhas ouvidas em obséquio da Defesa emolduraram o caráter do réu, dando-o por “bom menino e trabalhador” (fls. 130/131).

Dos policiais que o detiveram nenhum foi ouvido em Juízo. Nenhuma testemunha, ao demais, indigitou com segurança o réu como o terceiro que, à direção de um veículo do tipo Fusca, estava a dar cobertura aos malfeitores.

Destarte, ainda que o réu, na quadra do inquérito policial, sem razão conhecida, tivesse caído em profundo silêncio e os adolescentes o incriminassem no auto de prisão em flagrante, não oferece o conjunto de provas a certeza indispensável à edição de decreto condenatório.

De feito, ninguém o viu transportar os autores do roubo à casa da vítima; ninguém o reconheceu como o motorista que lhes deu fuga.

Assim, embora fortes indícios possam prendê-lo à prática ilícita, falece elemento cabal de convicção de que o réu, deveras, tenha delinquido, isto é, tenha aderido, com sua vontade, à ação dos menores infratores.

4. O princípio geral de que toda a decisão condenatória deve assentar em prova plena e cabal (não só da materialidade do fato criminoso senão também da autoria e culpabilidade do agente) manda afastar da cabeça do réu o gládio da Justiça, nos casos de dúvida invencível.

Isto mesmo proclamam nossos Tribunais:

“Não basta para a concretização de uma sentença condenatória a simples soma de indícios, por mais veementes que sejam em desfavor do acusado. Ainda mais quando tais indícios foram devidamente contrariados por ampla prova em sentido contrário, restando sérias dúvidas que, em matéria penal, equivalem à ausência de provas” (Rev. Tribs., vol. 436, p. 346).

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

À derradeira, muita cautela devem ter os órgãos do Poder Judiciário ao reexaminar processo em que, na Primeira Instância, foi o réu absolvido. É que, mais próximo da causa e em contacto direto com o réu e testemunhas, como que inspiram o Juiz notáveis e puros influxos da Verdade.

Donde a geral concepção de que, a assinatura do Juiz em sentença absolutória deve interpretar-se por um novo e venerável testemunho a favor da inocência do réu.

Mais de um caso têm recenseado os anais forenses de decisões que, louvando-se em meros indícios, foram motivo e ocasião de deploráveis erros judiciários.

A decisão apelada, destarte, sem embargo do fulgor da argumentação deduzida no apelo, não aberrou da lógica do razoável, que é a que deve professar o Magistrado; mantenho-a, por isso, pelos bons e jurídicos fundamentos que lhe deu o distinto e culto Magistrado Dr. Sérgio Godoy Rodrigues de Aguiar.

5. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

São Paulo, 27 de julho de 2001

Carlos Biasotti

Relator

Notas


  1. Em elegante ritmo, cantou Gonçalves Dias:

    “Viver é lutar.

    A vida é combate

    que os fracos abate,

    que os fortes, os bravos,

    só pode exaltar” (apud Fausto Barreto e Carlos de Laet, Antologia Nacional, 41a. ed., p. 366).

  2. A Luta pelo Direito, 16a. ed., p. IX; trad. João Vasconcelos; Editora Forense.

  3. Posto se referisse, em especial, à “res judicata” (coisa julgada), que encerra uma presunção de verdade, escreveu Giffard: “Os juízes, por definição, não podem enganar-se” (apud Valdemar César Silveira, Dicionário de Direito Romano, 1957, vol. II, p. 588). É todavia a opinião de Mílton Campos a que responde melhor ao caso: “Errar é humano, e seria crueldade exigir do juiz que acertasse sempre. O erro é um pressuposto da organização judiciária que, por isso mesmo, instituiu sobre a instância do julgamento a instância da revisão” (apud João Martins de Oliveira, Revisão Criminal, 1a. ed., p. 63).

  4. Justiça excessiva torna-se injustiça (Cícero, “De Officiis, I, 10, 33).

  5. Matias Aires, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, 1752, p. 188.

  6. O Juiz e a Função Jurisdicional, 1958, p. 364; Editora Forense. Verdadeiro vade-mécum do juiz, granjeou este livro tal nomeada entre os que fazem profissão da vida forense, que se lhe pode aplicar, à guisa de elogio, a expressão original e feliz que D. Francisco Manuel de Melo cunhou para caso análogo: “Livro de cabeceira e sovaco” (cf. Clementino Fraga, in Revista de Língua Portuguesa, nº 15, p. 17).

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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