Capa da publicação Projeto de Lei 5167/09: o retrocesso da dignidade dos lgbtqiapn+
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Projeto de Lei 5167/09: o retrocesso da dignidade dos lgbtqiapn+

Leia nesta página:

Ser negro no Brasil é um problema. Ser gay e negro, pior ainda: duplamente segregado. Essa é a realidade brasileira aos "diferentes".

Tanto a "cor da pele", ou a "condição étnica", e a "condição da sexualidade", sempre foram tabus no ordenamento jurídico brasileiro. Paulatinamente, o Direito brasileiro evoluiu, no sentido de desapartar Estado da religião. A autonomia individual sempre foi direcionada pelo mando do Estado através dos dogmas e tabus da tradição judaico-cristã. 

Leciona Reale:

Constitui um dos mais belos problemas da Filosofia e da Teoria Geral do Direito o da colocação da equidade nos domínios da Ciência Jurídica, inclusive para saber-se se há efetivamente “normas de equidade” como uma categoria autônoma.

A primeira grande mente que dedicou a devida atenção a esse problema foi Aristóteles. Já encontramos considerações imperfeitas nas obras dos pensadores pré-aristotélicos, mas é indiscutivelmente com Aristóteles que o problema adquire expressão precisa, que se tornou clássica.

Para o autor da Ética a Nicômaco, a equidade é uma forma de justiça, ou melhor, é a justiça mesma em um de seus momentos, no momento decisivo de sua aplicação ao caso concreto. A equidade para Aristóteles é a justiça do caso concreto, enquanto adaptada, “ajustada” à particularidade de cada fato ocorrente. Enquanto a justiça em si é medida abstrata, suscetível de aplicação a todas as hipóteses a que se refere, a equidade já é a justiça no seu dinâmico ajustamento ao caso.

Foi por esse motivo que Aristóteles a comparava à “régua de Lesbos”. Esta expressão é de grande precisão. A régua de Lesbos era a régua especial de que se serviam os operários para medir certos blocos de granito, por ser feita de metal flexível que lhe permitia ajustar-se às irregularidades do objeto. A justiça é uma proporção genérica e abstrata, ao passo que a equidade é específica e concreta, como a “régua de Lesbos” flexível, que não mede apenas aquilo que é normal, mas, também, as variações e curvaturas inevitáveis de experiência humana.

Essa noção de equidade, segundo a ideia aristotélica, implica uma compreensão melhor da ideia de igualdade. A justiça é, em última análise, uma expressão ética do princípio de igualdade. Se há a ideia de liberdade como uma das fundamentais do Direito, existe, também, completando-a, a de igualdade. Ser justo é julgar as coisas segundo o princípio de igualdade.

(...)

Cumpre, outrossim, examinar outros tipos de relação social que se referem às obrigações dos indivíduos para com o todo. Não existem apenas direitos e deveres dos homens entre si, porquanto também se põem direitos e deveres dos homens para com a coletividade.

Qual a medida de contribuição de cada um ao todo? Há, ainda, o problema inverso, o da exigibilidade do todo ou, por outras palavras, o problema da correspondência entre o todo e as partes, a coletividade e seus membros.

São dois aspectos distintos e complementares. De um lado, há que se verificar o que cada um deve ao todo, e, concomitantemente, o que o todo deve a cada um.

(...)

Diante de certos casos, mister é que a justiça se ajuste à vida. Este ajustar-se à vida, como momento do dinamismo da justiça, é que se chama equidade, cujo conceito os romanos inseriram na noção de Direito, dizendo: jus est ars aequi et boni. É o princípio da igualdade ajustada à especificidade do caso que legitima as normas de equidade.

Na sua essência, a equidade é a justiça bem aplicada, ou seja, prudentemente aplicada ao caso. A equidade, no fundo, é, repetimos, o momento dinâmico da concreção da justiça em suas múltiplas formas. Daí, inspirando-se nessa definição romana do que jus est ars aequi et boni, ter um jurista italiano proposto a expressão “equobuono” para mostrar a indissolubilidade dos dois aspectos essenciais à plena compreensão do Direito.

A razão do destaque que demos às normas de equidade resulta, também, do nosso Direito positivo, porquanto rezava o art. 114 do Código de Processo Civil de 1939 que, “quando autorizado a decidir por equidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador”. Já o Código de 1973 se limita a determinar que o juiz só pode decidir por equidade “nos casos previstos em lei” (art. 127).

Há casos, portanto, em que a própria lei positiva confere ao juiz o direito de julgar por equidade, o qual, na prática, se impõe mais do que pretende o formalismo legal...

A "letra fria da lei" não cabe mais no ordenamento jurídico pátrio. Ora, quem cria norma possui motivos, contudo, a intenção de criar norma tem de muito o pensar sobre como deve ser as relações humanas.

Para quem teve oportunidade de assistir:

1)  Projeto que proíbe união poliafetiva em debate na Câmara – Previdência Social – 08/11/2023

2) Exigência de separação judicial não é requisito para divórcio - 08/11/23

O Direito não é imutável. O Direito representa os anseios sociais. Se antes as dívidas eram resolvidas pela escravidão, como ocorreu na Grécia a.C. — quem era inadimplente teria o seu corpo tomado pelo credor —, atualmente elas são resolvidas pelo pagamento. Temos a obrigação pessoal — o devedor responde pelo seu patrimônio ao credor — e a obrigação real — recai sobre algum bem do devedor. Tanto credor quanto dever há um vínculo obrigacional. O ordenamento jurídico, como deve ser, se aperfeiçoa; seja pela produção interna de normas, inicialmente pelo poder Legislativo, ou por decisões jurisprudências dos tribunais regionais (súmulas não vinculantes). Quando há necessite de reexame, o Supremo Tribunal Federal (STF), quando em questão de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de normas — regras de condutas ou regulamentos —, cria e divulga "súmulas vinculantes" para garantir aos órgãos do Poder Judiciário e à administração pública a conformidade constitucional. 

Podemos verificar "conformidade constitucional": 

  • Tema 60 - Possibilidade de prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro; e

  • STF decide que exigência de separação judicial não é requisito para divórcio;

E como o STF decidiu? Anseios pessoais dos magistrados e magistradas? Se assim pensarmos, a "insegurança jurídica". Para os não familiarizados com o Direito, a "insegurança jurídica" soa como um enigma, um conjunto de palavras incompreensíveis. A "insegurança jurídica" é, em primeira análise, a "letra da lei" (juspositivismo). Historicamente, a Carta Magna, de 1215, garantiu limites ao arbítrio do rei (Rei João sem-terra). Logo, "segurança jurídica" é o que está escrito. Porém, "o que está escrito" deriva da compreensão existencial humana sobre "como viver" — muito bem explicado na obra de Miguel Reale sobre Conceito de Cultura (Capítulo III - Natureza e Cultura).

Veremos, abaixo, conceitos e valores culturais dissonantes ente si:

Dario, o rei da Pérsia antiga, ficou intrigado com a variedade de culturas que ele encontrou em suas viagens. Ele descobriu, por exemplo, que os galatianos, que viviam na Índia, comiam os corpos de seus pais mortos. Os gregos, naturalmente, não faziam isso – eles praticavam a cremação e viam o funeral da pira como a maneira natural e adequada de dispor dos mortos.  Dario pensava que uma visão sofisticada poderia prezar as diferenças entre as culturas. Um dia, para ensinar a sua lição, ele convocou alguns gregos que estavam em sua corte e lhes perguntou o que seria necessário para eles comerem os corpos de seus pais mortos. Eles ficaram chocados, como Dario sabia que eles ficariam, e responderam que nenhuma quantidade de dinheiro poderia persuadi-los a fazer tal coisa. Então, Dario chamou alguns galatianos e, enquanto os gregos ouviam, perguntou-lhes o que seria necessário para eles queimarem os corpos de seus pais mortos. Os galatianos ficaram horrorizados e disseram a Dario para não falar de tais coisas. ( RACHELS, James. Os elementos da filosofia moral [recurso eletrônico] / James Rachels, Stuart Rachels ; tradução e revisão técnica:Delamar José Volpato Dutra. – 7. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : AMGH, 2013)

Como pessoa morta é inconcebível no Brasil, desde o "Descobrimento do Brasil", pelos portugueses. Cremar passou a ser aceito no seio social brasileiro, mas nem sempre foi assim. Havia um tabu em relação ao ato de cremar. Com a  Instrução Ad resurgendum cum Christoa propósito da sepultura dos defuntose da conservação das cinzas da cremação, a cremação não é mais tabu.

No Brasil, a cremação foi permitida pelo Decreto Federal nº 73.587, de 19 de novembro de 1974:

Decreto Federal nº 73.587, de 19 de novembro de 1974

Regulamenta a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os serviços funerários e a cremação.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando das atribuições que lhe confere o artigo 81, inciso VI, da Constituição,

DECRETA:

Art. 1º O disposto na Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, aplica-se aos serviços funerários e à cremação em todo o território nacional.

Art. 2º A cremação será feita em crematórios devidamente autorizados pelo órgão competente do Ministério da Saúde.

Art. 3º A cremação só poderá ser realizada mediante autorização expressa do falecido, ou de seus herdeiros ou sucessores, ou, na falta destes, do cônjuge ou companheiro.

Parágrafo único. Na hipótese de ausência do cônjuge ou companheiro, a autorização poderá ser dada por ascendente ou descendente em linha reta, até o segundo grau.

Art. 4º A autorização para a cremação deverá ser feita por escrito, em documento público ou particular.

Art. 5º A cremação não poderá ser realizada sem a presença de um representante do órgão competente do Ministério da Saúde, ou de seu delegado.

Art. 6º A cremação será feita em forno crematório, de acordo com as normas técnicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde.

Art. 7º As cinzas resultantes da cremação serão entregues aos interessados, que poderão guardá-las, espalhá-las em lugar de sua preferência ou enterrá-las.

Art. 8º As despesas com a cremação correrão por conta dos interessados.

Art. 9º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 19 de novembro de 1974; 182º da Independência e 97º da República.

ERNESTO GEISEL

Ministro da Justiça

LUIZ EDUARDO BRAUN

Ministro da Saúde

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Agora, questão de rompimento de casamento:

Os esquimós viviam em pequenos assentamentos, separados por grandes distâncias, e seus costumes se tornaram muito diferentes dos nossos. (...) As mulheres, porém, eram livres para romper esses arranjos simplesmente deixando seus maridos e tomando novos parceiros – livremente, quer dizer, contanto que seus ex-maridos não escolhessem causar muitos problemas. Tudo somado, o costume esquimó do casamento era uma prática volátil que tem pouca semelhança com nossos costumes. (RACHELS, James. Obra citada) [grifo do autor]

No Brasil, recentemente, o RE 1167478. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) tratou da separação judicial:

Julgado mérito de tema com repercussão geral

TRIBUNAL PLENO

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 1.053 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário. Por maioria, fixou o entendimento de que, após a promulgação da Emenda Constitucional 66/2010, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico brasileiro, vencidos, quanto à parte final, os Ministros André Mendonça, Nunes Marques e Alexandre de Moraes. Por fim, foi fixada a seguinte tese: "Após a promulgação da EC nº 66/2010, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas que já estão separadas, por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF)". Tudo nos termos do voto do Relator. Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário, 8.11.2023.

Os ministros Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso (Presidente do STF) — recomendo assistir o vídeo disponibilizado neste artigo — tornaram claro, e assim deve ser, a objetificação do gênero feminino. A ministra Cármen Lúcia, brilhantemente, expôs como o gênero feminino ainda é tratado quanto à dignidade. No final, o ministro Luís Roberto Barroso exprimiu como o Estado brasileiro, por questão de ideologia religiosa, de tradição judaico-cristã, conceituou o gênero feminino. Notem. Ao me referir à tradição judaico-cristã, como ideologia a adequar o comportamento do gênero feminino, não se pode alegar "intolerância religiosa". Se assim for possível proceder, contra-argumentos jamais serão possíveis. E o Direito é mais do que normas; é o estudo das relações interpessoais entre os próprios cidadãos e das relações do Estado como os cidadãos.

Trilhei caminhos diversos sobre Estado e a dignidade humana. O Projeto de Lei 5167/09, sim, é retrocesso para dignidade dos LGBTQIAPN+. Daniel Pereira, um escravo sentenciado pelo crime de sodomia (1740 - 1752). Não se condenará, como ocorreu com Daniel, sentença igual. Contudo, o Projeto de Lei 5167/09 é uma sentença, velada, quanto à dignidade dos LGBTQIAPN+, a liberdade individual.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). RE 1167478. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5562994

Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO JUDICIAL E LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA.  Disponível em: https://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito / Miguel Reale. — 27. ed. — São Paulo: Saraiva, 2002.

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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