SIMULAÇÃO E ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA
Resumo: A cada vez que se tenta regular o mercado imobiliário, como se viu na discussão em torno da ideia de não aplicação do CDC para regular incidência de alienação fiduciária em garantia (TEMA 1.095 STJ) surgem vozes dissonantes com incidência de novas teses desafiadores que geram ações replicadas aos milhares – demandas isomórficas como se tem no direito processual italiano – o que replica nesta questão em especial em que se tenta desqualificar contratos de alienação sob o palio de simulação de financiamentos.
JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA, ADVOGADO MAGISTRADO APOSENTADO E PROFESSOR DA FAJ DO GRUPO UNIEDUK DE UNITÁ FACULDADE - COORDENADOR NACIONAL DOS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL, DIREITO IMOBILIÁRIO E DIREITO CONTRATUAL DA ESCOLA SUPERIOR DE DIREITO – ESD PROORDEM CAMPINAS E DA PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MÉDICO DA VIDA MARKETING FORMAÇÃO EM SAÚDE. EMBAIXADOR DO DIREITO À SAÚDE DA AGETS – LIDE.
Há que se ter o tema em discussão porque tem se popularizados decisões em que alguns juízes têm entendido que, quando o próprio loteador ou construtor financiam o bem que vendem, com cláusula de alienação fiduciária sobre o bem vendido, estaria a ocorrer simulação tornando a compra e venda muito onerosa para o consumidor.
Surge daí a necessidade de se colocar alguns pingos nos is em relação a este tema. Num juízo a priori deve-se evitar a tentação de se entender contratos com cláusulas deste tipo, como negócios jurídicos que venham a ser disciplinados pelo CDC, eis que, justamente, o julgamento do Tema Repetitivo 1.095 STJ aponta em sentido diverso, e malgrado juízes tenham (e devem mesmo ter eis que isso é da essência da democracia – liberdade para decidir de acordo com seu livre convencimento motivado) não parece ser medida de boa prudência julgar processos fora do raio de entendimento interpretativo repetitivo das Cortes Superiores.
Isso porque, como sabido, o julgamento em sentido contrário, sem indicação de um fator diferencial (discrimem adequado como apontam autores como Celso Antônio Bandeira de Mello – em seu magistral O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade) ou sem fundamento em alguma ideia de overruling, apenas se presta a vulnerar de modo inadequado o princípio da segurança jurídica.
A segurança jurídica não está acima da Lei Maior, devendo buscar-se a adequação das decisões judiciais aos mandamentos constitucionais, a fim de se proteger os pilares que sustentam o regime democrático, mas, malgrado a coisa julgada não possa ser encarada como um valor absoluto, pois às vezes deriva de decisões teratológicas ou encontra fundamento em falhas ou fraudes grosseiras (STF. Revista Consultor Jurídico, Anuário da Justiça Brasil, 2011: O Poder da última palavra. São Paulo: Conjur Editorial, p. 51) ainda assim a mesma implica em valor a ser assegurado.
Isso porque não se pode esquecer de que a norma contida no artigo 5º, inciso XXXVI CF garante a segurança jurídica em torno da questão decidida de modo repetitivo pelas Cortes Superiores. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, em mais de uma oportunidade1, vem reconhecendo, até mesmo, a existência de uma garantia constitucional implícita, que seria o princípio da segurança jurídica (há mesmo quem aponte a necessidade de que os Tribunais validem a justified trust que se confia ao Poder Judiciário), por trás da preservação da coisa julgada.
Ou seja, já mais do pacificado que a legislação específica da alienação fiduciária se sobreponha ao CDC pelo princípio da especialidade, não sendo possível nem mesmo a incidência do conhecido Diálogo das Fontes de Erik Jaime no direito alemão, corrente entre nós, em casos que envolvam essa matéria – ao menos até que, por exemplo, ocorram overrulings ou o STF estabeleça eventualmente algum leadem case para dispor de modo diverso a partir de alguma ponderação.
Não há, portanto, a priori concluir por abusividade das regras legais da Lei de Alienação de 1.997 em casos como tal – o que leva, no entanto, a que os contratantes busquem o fomento de outras teses ou ideias dentro do direito civil – fora do âmbito do CDC, como medidas tendentes à discussão das cláusulas em contratos de alienação.
Há que se ponderar, no entanto no sentido de que, a priori, a regra geral seja a de um pacta sunt servanda – ou seja, a incidência do princípio da força obrigatória dos contratos – havendo liberdade para contratar e liberdade de contratação – malgrado mesmo fora do âmbito das relações de consumo situações como a boa-fé objetiva devam imperar – não há como presumir que as incorporadoras, loteadoras e empresas afins estejam sempre de má-fé (ao contrário, resta como princípio geral de direito que a boa-fé se presuma e a má-fé se comprove).
Surge a partir disso, a discussão que se entabula neste artigo, a respeito da ideia, então, de que as cláusulas de alienação fiduciária pressuponham que exista risco ao capital de quem empreste o dinheiro para o empreendimento – logo, se a própria vendedora vier a facilitar o pagamento não haveria como estabelecer a cláusula de garantia mediante alienação fiduciária.
Embora na origem romana a alienação fiduciária esteja ligada à ideia de fidúcia (confiança) – sendo fiduciante quem confia e fiduciário aquele em que se quer que se confie – o que daria uma extensão muito maior ao instituto – o fato é que o direito pátrio, embora na origem legislativa do tema, restringisse o emprego do instituto aos agentes financeiros – fato é que a lei atual de 1.997 que prevalece em tais ajustes, permite que aqueles fora do mercado financeiro instituam a alienação (em verdade, malgrado se estabeleça por contrato e escritura nos bens móveis de maior valor – não deixa de ser considerada como um direito real de garantia).
Que se entenda bem, no entanto que o fato de não ser agente financeiro permite o estabelecimento do direito real de garantia em análise (alienação fiduciária), mas a cobrança de juros além do possível para quem não seja agente do sistema financeiro (Súmulas 121 e 596 STF) ainda implica em ilegalidade a luz da Lei da Usura (essa não se aplica aos agentes do mercado financeiro – portanto quem não dele não faça parte pode instituir alienação mas NÃO PODERÁ COBRAR JUROS ALÉM DO DOBRO DA TAXA LEGAL – como permite o DL 22.696 de 1.933 ainda em vigor no sistema jurídico contratual – são questões que não se confundem).
O fato, portanto, de que quem não seja agente financeiro possa estabelecer alienação resta expressamente previsto em lei – o que afastaria, de pronto, a ideia de atos simulados em relação a tanto – a Lei 9.514 de 1.997 com as modificações da Lei 14.711 de 2.023 é expressa quanto a isso:
Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023): § 1o A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena: (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 11.481, de 2007) .....
Ainda assim remanescem as alegações no sentido de que, malgrado não seja proibido, mesmo assim os vendedores de lotes, quando não se tem intermediações de agentes financeiros, por não haver risco ao capital de terceiros, implicariam em simulações de estabelecimento de cláusulas de alienação fiduciária, no entanto, com o maior respeito em relação a quem pense assim, em verdade, a jurisprudência não tem aceitado tal ideia.
Como sabido, a simulação é espécie de vício de validade de um ato jurídico – sendo certo que a mesma ocorreria quando se alega haver praticado ato jurídico que não ocorreu (na modalidade de dissimulação se alega haver praticado ato diverso) e isso é causa de nulidade absoluta de um ato jurídico (nos termos da norma contida no advento do artigo 167 CC e seu parágrafo único).
Há que se tomar alguns cuidados eis que a simulação não se confunde com outras figuras próximas como o dolo e a reserva mental.
Ora num exame dos elementos do suporte fático de uma simulação – sua fattispecie estaria relacionada com algo a se esconder para fins de se enganar alguém (até existe aí um certo quê de necessidade de atuação com uma reserva mental) e não se pode esquecer que, nos termos dos artigos 148 e150 CC, somente se anula o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveitar disso não tivesse ciência, ou seja, mesmo que não se pretenda alegar simulação – mas a figura análoga com vicio mais brando, que seria o ato doloso – não pode se beneficiar quem atue em situação de dolo bilateral (no caso da incidência do Código Civil, o dolo seria mais brando eis que geraria anulação e não nulidade absoluta – o que se reforça pelo fato de que o STJ padronizou o entendimento de que, nesses casos – quando houver alienação fiduciária, não se aplicaria o CDC). Nesse caso alternativo de dolo bilateral, inclusive:
Apelação APL 137116520078260604 SP 0013711-65.2007.8.26.0604 (TJ-SP) 11/08/2011•Tribunal de Justiça de São Paulo Ementa: Rito sumário - Pedido contraposto com valor superior ao estabelecido pelo art. 275, I do Código de Processo Civil - Inadmissibilidade Extinção sem julgamento de mérito. Prestação de serviço - Mandato de representação para execução de despacho aduaneiro - Prática de falsidade ideológica pela mandatária, para mitigar a carga tributária da mandante - Dolo bilateral - Aplicação do art. 150 do Código Civil - Pleito de remuneração deduzido pela mandatária desacolhido - Improcedência da ação de cobrança - Recurso provido em parte para esse fim. (grifo nosso).
Exigindo o conhecimento do dolo de terceiro para uma anulação, de se destacar:
TJ-DF - Apelação Cível APL 24956020058070005 DF 0002495-60.2005.807.0005 (TJ-DF) Data de publicação: 25/05/2009 EMENTA DOLO POR PARTE DO ALIENANTE. INTENÇÃO DE PREJUDICAR. ARTIFÍCIOS FRAUDULENTOS. MOTIVO DETERMINANTE DO NEGÓCIO JURÍDICO. RECURSO IMPROVIDO. 1. NA AÇÃO DE CONHECIMENTO VISANDO À DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL, PROPOSTA PELO REAL PROPRIETÁRIO DO BEM E PREJUDICADO PELO NEGÓCIO JURÍDICO FRAUDULENTO, TEM O COMPRADOR DE BOA-FÉ LEGITIMIDADE AD CAUSAM PARA COMPOR O PÓLO PASSIVO DA LIDE, PORQUANTO É P ARTE NO CONTRATO CUJA NULIDADE SE PRETENDE VER DECLARADA. 2. O ARTIGO 145 , DO CÓDIGO CIVIL , DISPÕE QUE "SÃO OS NEGÓCIOS JURÍDICOS ANULÁVEIS POR DOLO, QUANDO ESTE FOR A SUA CAUSA". O REFERIDO DEFEITO SE APRESENTA NA MÁ-FÉ, MEDIANTE ARGUMENTOS E ARTIFÍCIOS MALICIOSOS CAPAZES DE INCUTIR NO ÂNIMO DE UM DOS CONTRATANTES A PRÁTICA DE ATO QUE, SEM ESSE ARDIL, NÃO SERIA CONCRETIZADO. 3. RECONHECE-SE A PRESENÇADE VÍCIO DE CONSENTIMENTO RESULTANTE DE DOLO DE TERCEIRO NO NEGÓCIO JURÍDICO, QUANDO FICA DEMONSTRADO QUE O AGENTE FOI INDUZIDO À CELEBRAÇÃO DE TAL ATO NEGOCIAL, MEDIANTE ARDIS PERPETRADOS POR OUTREM, QUE NÃO ERAM DESCONHECIDOS PELA OUTRA PARTE CONTRATANTE. 4. SE A PROVA DOS AUTOS É CONCLUSIVA A RESPEITO DO DOLO DO VENDEDOR, O QUAL VICIOU A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO COMPRADOR DE BOA-FÉ, IMPÕE-SE A PROCEDÊNCIA DO PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO VICIADO, EIS QUE A P ARTE AUTORA COMPROVOU OS FATOS CONSTITUTIVOS DO SEU DIREITO - ART. 333 , I , DO CPC . 5. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
Como regra geral quem atua com dolo não pode ser beneficiado (vale aqui a conhecida parêmia latino nemo auditur turpitudinem suans proprians allegans – a ninguém será dado alegar a própria torpeza em juízo, em tradução literal e livre).
Nesse sentido o teor do Enunciado nº 578 das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal: “ENUNCIADO Nº 578: Sendo a simulação causa de nulidade do negócio jurídico, sua alegação prescinde de ação própria”.
Em verdade, o que pareceria estar ocorrendo, sob a perspectiva do quanto narrado pela parte autora (portanto, em situação in status assertiones), sem prova alguma, no entanto, seria a prática do assim chamado ato dissimulado. Observe-se, em relação a tanto, o quanto destacado por Michele Tessmman Laideins a respeito do tema:
Negócio dissimulado é aquele que efetivamente se quer, mas que não aparece (oculto). EXEMPLOS DE ATOS ....... k O comerciante que, requerida a sua falência, emite títulos em favor de amigos com data anterior ao pedido para gerar créditos que lhe serão repassados, quando recebidos; In http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/simula%C3%A7%C3%A3o-dos-atos-jur%C3%ADdicos.
Mais ainda, a simulação há que ser entendida como a ato que envolve apenas as partes, não se projetando em relação a terceiros que não podem ser prejudicados pelo seu reconhecimento. Mais ainda, a simulação pressupõe a existência de provas de sua ocorrência (sempre se lembrando que não pode haver prejuízos para terceiros). Sobre a questão, dizendo muito em pouco, o seguinte entendimento jurisprudencial:
TJ-MG - Apelação Cível AC 10236070109996001 MG (TJ-MG) Data de publicação: 19/08/2013 Ementa: DIREITO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA. NULIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO SIMULADO. CESSÃO DE DIREITOS DECORRENTES DE PERMISSÃO DE USO DE BEM PÚBLICO. BILATERALIDADE ILÍCITA EM PREJUÍZO DE TERCEIRO. NÃO COMPROVAÇÃO. SIMULAÇÃO ABSOLUTA OU RELATIVA NÃO EVIDENCIADA. OUTRA CAUSA INVALIDANTE. INEXISTÊNCIA. PEDIDO IMPROCEDENTE. 1. O estudo do instituto da simulação nos revela que nesta espécie de vício comportamental não existe uma vítima dentro do negócio. Há uma bilateralidade ilícita, em prejuízo de terceiro, que não faz parte da avença. O negócio tem aparência normal, mas em verdade ou máscara outro (simulação relativa), ou não pretende atingir o efeito que juridicamente deveria produzir (simulação absoluta). 2. Não se inferindo das circunstâncias dos autos prova de que o negócio questionado - cessão de direitos decorrentes de permissão de uso de bem público -, tenha sido projetado para não surtir quaisquer efeitos (simulação absoluta) ou que tenha sido produzido com o escopo de mascarar outro, de efeitos proibidos (simulação relativa), nem qualquer outra causa invalidante, o caso é de improcedência do pedido.
Para o Professor Silvio de Salvo Venosa, a fraude nada mais é do que o uso de meio enganoso ou ardiloso com o intuito de contornar a lei ou um contrato, seja ele preexistente ou futuro. (VENOSA, Sílvio de Salvo, Direito civil: parte geral, 11 ª edição, página 213 (Atlas, 2011). Nesta linha, De Plácido e Silva ainda enfatiza a necessidade de intenção danosa externa à relação das partes fraudadoras (SILVA, De Plácido, Vocabulário jurídico, 32ª edição, p. 645 (Forense, 2016).
Quanto à relação da fraude com fator externo, Washington Monteiro de Barros ensina que é absolutamente necessário, para a caracterização da fraude, que um terceiro seja efetivamente lesado pelo ato fraudulento (MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil 1, 42ª edição página 245 (Saraiva, 2009).
Quanto a isso de se ver, por exemplo, se a construtora financiou ela própria ou se um agente financeiro participou no contrato – isso irá dar um toque de natureza de relação jurídica que determinaria até mesmo o reconhecimento de litisconsórcio necessário (artigo 114 CPC) em casos como tal – eis que não se poderia desconstituir o contrato com a construtora e ainda pretender que o contrato de financiamento continue ativo – situação a que não se tem dado a atenção devida, sobretudo em Juizados Especiais.
Pelo óbvio que somente este terceiro prejudicado pode alegar o vício e não os envolvidos – do contrário haveria óbvia violação da socialidade a que alude o advento da norma contida no artigo 5º LINDB. Mesmo quando não há intermediação bancária e a própria construtora estaria facilitando o pagamento constituindo cláusula constituti em seu favor – seria o caso de apontar que o comprador já foi beneficiado com o elastério para pagar e se compreendeu isso não se poderia beneficiar da torpeza em querer se livrar do contrato justamente por conta de se lhe ter facilitado o pagamento.
E há que se ter em mente que isso se discuta em sede de questão de reserva mental. E José Augusto Delgado e Luiz Manoel Gomes Júnior pontuam no sentido de que se deve considerar que “a declaração de vontade é composta por dois elementos: a) um interno (é a intenção assentada no íntimo da pessoa, a vontade real); b) o outro externo (é a manifestação dessa vontade)”, sendo que tais elementos devem estar em harmonia, exprimindo segurança e a realidade desejada por aquele que se vincula ao negócio jurídico.
Na ausência da citada harmonia, concluem que podem ser observadas três hipóteses nos negócios jurídicos: a) simulação; b) reserva mental; c) declarações sem conteúdo, não sérias, sem expressão de credibilidade (por exemplo, neste último caso, a brincadeira de uma criança, por exemplo, como aponta Roberto de Ruggiero, na doutrina civilista italiana).
Cabe ressaltar que a reserva mental nos contratos bilaterais não se confunde com a simulação. Como bem assevera Fabio Ulhoa Coelho, se tanto uma parte como a outra, ao expedirem suas declarações, fazem reserva mental de suas reais intenções, não convergem necessariamente as intenções reservadas. Cada uma pode ter uma intenção oculta diferente. Mesmo quando conhecidas as reservas mentais das respectivas declaratórias, isso não faz surgir uma intenção simulada comum às partes.
No direito brasileiro, há que se destacar que a questão se acha tratada no artigo 110 Código Civil que expressamente aponta no sentido de que: “Artigo 110 CC: A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”.
De acordo com Roberto de Ruggiero, observa-se a reserva mental quando o declarante quer intimar e conscientemente, coisa diversa da declarada, na maioria das vezes intencionando induzir em erro o destinatário da declaração.
No mesmo sentido, Vicente Ráo (O Direito e a vida dos Direitos) define a reserva mental como “uma particular espécie de vontade não declarada, por não querer, o agente, declará-la. É uma vontade que o agente intencionalmente oculta assim procedendo para sua declaração ser entendida pela outra parte, ou pelo destinatário (como seria pelo comum dos homens) tal qual exteriormente se apresenta, embora ele, declarante, vise alcançar não os efeitos de sua declaração efetivamente produzida, mas os que possam resultar de sua reserva”.
Nelson Nery Junior, em sua obra Ato Jurídico e Reserva Mental defende que “para a conceituação da reserva sob o ponto de vista estritamente jurídico, não se pode levar em consideração divergências que não possam trazer alguma consequência para o direito. Assim, à mentira pura e simples, que não traduza nenhum reflexo no âmbito do direito, não se pode dar importância para o fim de conceituar a reserva mental” e continua no sentido de que: “O declarante que se reserva mentalmente não quer aquilo que se encontra declarado. Este não querer, produto da mente do reservante, deve ter o escopo de enganar o declaratário, porque, do contrário, seria mentira pura e simples, e não entraria no conceito de reserva mental, segundo a nossa proposição”.
Nessa medida, se há uma compra e venda e o valor da venda faltante ao devedor for objeto de financiamento não ocorre ato simulado, mas dois contratos diversos, ou um complexo de inominado - o que não é vedado por lei (artigo 425 CC).
Não se tem contrato inexistente ou diverso do que se alegou haver. E a própria Lei 9514/97 (vale aqui invocar que o tema repetitivo 1.095 STJ não afasta sua incidência frente ao CDC) estabelece que não há necessidade do fiduciante ser entidade de crédito para estabelecer alienação. Tanto assim que tem havido reversão da tese da simulação, nestes casos, pelas Câmaras de Direito Privado TJSP em casos como tal.
Discussão diferente, no entanto, como aventado acima, diz respeito a se essas entidades podem, ou não aplicar as mesmas taxas de entes bancários em tais contratos. Mas essa análise fica para o próximo artigo.
A respeito, as considerações tecidas pelo Ministro Celso de Mello, em julgamento realizado pelo Pretório Excelso em 26.03.2.010: “Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram- se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público, em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado” ... Aponta-se ainda a “Proteção da Confiança”, segundo a qual “a fluência de longo período de tempo culmina por consolidar justas expectativas no espírito do administrado (cidadão) e, também, por incutir, nele, a confiança da plena regularidade dos atos estatais praticados, não se justificando – ante a aparência de direito que legitimamente resulta de tais circunstâncias – a ruptura abrupta da situação de estabilidade em que se mantinham, até então, as relações de direito público entre o agente estatal, de um lado, e o Poder Público, de outro”.︎