RESUMO
A revolução digital e a crescente disseminação de aplicativos de transporte, como a Uber, têm reformulado significativamente o mercado de trabalho, dando origem a novas formas de emprego. No contexto atual, a Uber sustenta que seus motoristas são prestadores de serviços autônomos, não funcionários, o que os exclui dos benefícios trabalhistas tradicionalmente concedidos a empregados. A determinação do vínculo empregatício é um ponto central dessa análise. A presente pesquisa tem como objetivo analisar as características da relação entre a Uber e seus motoristas, como a flexibilidade no trabalho, a propriedade dos meios de produção e o controle sobre o trabalho realizado. Esses fatores são confrontados com a legislação trabalhista e a jurisprudência vigente, explorando como diferentes jurisdições no Brasil têm interpretado essa relação. Além disso, o artigo destaca a insegurança jurídica que permeia essa questão. A falta de consenso entre tribunais e autoridades reguladoras tem gerado controvérsias e litígios, deixando motoristas e empresas em um estado de incerteza legal. Isso prejudica não apenas os motoristas, que podem perder direitos trabalhistas fundamentais, mas também as empresas de aplicativos e a economia em geral. A necessidade de regulamentação é um aspecto crucial abordado no artigo. A ausência de uma regulamentação adequada tem resultado em desafios substanciais para garantir a proteção dos direitos dos motoristas, a segurança dos passageiros e a equidade no mercado de transporte. A conclusão destaca a importância de equilibrar a flexibilidade proporcionada pelas plataformas de aplicativos com a proteção dos direitos trabalhistas, visando a um futuro onde o trabalho por meio de aplicativos possa ser uma opção viável e justa para todos os envolvidos.
Palavras chaves: Uber. Aplicativo. Vínculo Empregatício. Insegurança. Regulamentação.
ABSTRACT
The digital revolution and the growing spread of transport apps, such as Uber, have significantly reshaped the job market, giving rise to new forms of employment. In the current context, Uber maintains that its drivers are independent contractors, not employees, which excludes them from labor benefits traditionally granted to employees. Determining the employment relationship is a central point of this analysis. This research aims to analyze the characteristics of the relationship between Uber and its drivers, such as work flexibility, ownership of the means of production and control over the work performed. These factors are compared with current labor legislation and jurisprudence, exploring how different jurisdictions in Brazil have interpreted this relationship. Furthermore, the article highlights the legal uncertainty that permeates this issue. The lack of consensus between courts and regulatory authorities has generated controversies and litigation, leaving drivers and companies in a state of legal uncertainty. This harms not only drivers, who may lose fundamental labor rights, but also app companies and the economy in general. The need for regulation is a crucial aspect addressed in the article. The absence of adequate regulation has resulted in substantial challenges in ensuring the protection of drivers' rights, passenger safety and equity in the transport market. The conclusion highlights the importance of balancing the flexibility provided by application platforms with the protection of labor rights, aiming for a future where working through applications can be a viable and fair option for everyone involved.
Keywords: Uber. Application. Employment Bond. Insecurity. Regulation.
1 INTRODUÇÃO
No século XXI, a ascensão da economia digital e a proliferação de aplicativos móveis têm transformado profundamente a maneira como a sociedade se desloca e, de forma concomitante, como as pessoas buscam e encontram oportunidades de trabalho. Entre as inovações mais impactantes nesse cenário, destacam-se os serviços de transporte baseados em aplicativos, com a Uber à vanguarda. Essa transformação não se limita ao âmbito da tecnologia; ela invade as esferas do direito, da economia e da sociedade em geral.
O surgimento e o rápido crescimento das plataformas de transporte, como a Uber, têm desafiado as definições tradicionais de trabalho e emprego. O cerne da questão reside na natureza do vínculo entre motoristas e a empresa, uma vez que esses profissionais operam como autônomos, mas dependem significativamente das diretrizes e tecnologias fornecidas pela plataforma. Em um contexto de trabalho por meio de aplicativos como a Uber, como definir adequadamente o vínculo empregatício, considerando a autonomia dos motoristas, as exigências da plataforma, trazendo segurança jurídica e a necessidade de garantir direitos trabalhistas?".
Devido às características específicas do trabalho na plataforma Uber, como a autonomia dos motoristas e a flexibilidade de horários, o vínculo empregatício seja questionável. Essa relação ambígua torna a aplicação tradicional das leis trabalhistas inadequada para definir o vínculo empregatício. Portanto, a insegurança jurídica resultante dessa ambiguidade sugere a necessidade premente de uma regulamentação específica que leve em consideração as características singulares desse modelo de trabalho, garantindo ao mesmo tempo os direitos trabalhistas e a proteção dos motoristas, bem como a sustentabilidade das empresas de aplicativos.
O objetivo geral da presente pesquisa é estudar sobre a Uber e o trabalho por meio de aplicativos, considerando o vínculo empregatício, suas inseguranças jurídicas e a necessidade de regulamentação trabalhistas.
A justificativa para esta pesquisa reside na importância de abordar a questão do trabalho por meio de aplicativos, como a Uber, em um cenário em constante evolução tecnológica e econômica. A falta de clareza quanto ao vínculo empregatício tem gerado controvérsias legais, impactando a vida dos motoristas e a dinâmica das empresas de aplicativos. Além disso, a insegurança jurídica pode levar a conflitos desnecessários e prejudicar os direitos trabalhistas dos envolvidos.
Nesse sentido, o tipo de pesquisa ocorrerá por pesquisa bibliográfica, através de entendimentos de outros autores, os quais possuem explicações sobre o mesmo fim de estudo. Será redigida com base na pesquisa qualitativa, não se utilizando métodos estatísticos e sim da interpretação dos resultados colhidos para que se possa chegar à conclusão sobre a presente pesquisa.
Portanto, este estudo busca contribuir para uma análise mais aprofundada dessa problemática e, assim, fornecer subsídios para o debate sobre a regulamentação adequada do trabalho por meio de aplicativos, visando à proteção dos direitos dos trabalhadores e à promoção de relações laborais justas e transparentes.
2 O TRABALHO POR MEIO DE APLICATIVOS
A partir da incorporação e do desenvolvimento de novas tecnologias na sociedade, as formas de realização do trabalho e as relações jurídicas entre o empregado e o empregador foram impactadas. Ao longo do avanço do sistema capitalista de produção, a redução na força de trabalho humano se deve, também, à aplicação de tecnologias ligadas à informação, com a disseminação da internet para o compartilhamento de dados, interligando trabalhadores e organizações, bem como empresas a seus consumidores (GAIA, 2018).
As tecnologias disponíveis possibilitaram que bens de consumo ociosos constituíssem novos negócios, tornando-se fonte de renda para trabalhadores e uma nova alternativa de lucro empresarial. Nesse sentido, um dos marcos dessa reestruturação produtiva são as plataformas de trabalho digitais. As empresas-aplicativo são responsáveis pela mediação do encontro entre prestadores de serviços e consumidores, cobrando determinada porcentagem do serviço prestado por promover esse encontro. Neste modelo de empresa, os trabalhadores não possuem contratos formais, e, sendo corporações registradas no setor de tecnologia, é de sua responsabilidade apenas prover a infraestrutura digital necessária para a promoção do encontro e execução do serviço (KALIL, 2019; AMORIM E MODA, 2021; ABÍLIO, 2017).
Além do interesse capitalista, o desenvolvimento de atividades ligadas à tecnologia é estimulado pela busca da sociedade em obter alternativas para facilitar a rotina diária das pessoas. Com isso, a realização de serviços tradicionais, como o transporte de passageiros, é impulsionada pelos aplicativos (GAIA, 2018).
Baseado nisso, o modelo de negócio da empresa Uber, entre as plataformas amplamente utilizadas neste mercado de trabalho em aplicativos, consiste no transporte individual de passageiros ou objetos, por meio do aplicativo, de forma prática e rápida, otimizando o tempo dos usuários. Como mencionado anteriormente, não há vínculo empregatício nesta relação de trabalho, por isso, são estabelecidos pela empresa, termos e condições para nortear a prestação de serviços. Nesses termos, estão inclusos termos adicionais, alterações ou finalização do contrato, negando ao motorista o acesso à plataforma (ALMEIDA; BARROS, 2021).
O fenômeno da uberização das relações de trabalho é conceituado pela Academia Brasileira de Letras (2020) como:
Termo usado para indicar a transição para o modelo de negócio sob demanda caracterizado pela relação informal de trabalho, que funciona por meio de um aplicativo (plataforma de economia colaborativa), criado e gerenciado por uma empresa de tecnologia que conecta os fornecedores de serviços diretamente aos clientes, a custos baixos e alta eficiência [...].
No que se refere às condições de trabalho, Fielbaum e Tirachini (2020) discutem os fatores que influenciam positivamente e negativamente na satisfação dos motoristas de aplicativo. A flexibilidade de horários para a jornada de trabalho, tratar-se de uma possibilidade de renda extra e, na teoria, não ter dependência econômica total do serviço de compartilhamento são considerados benefícios para os trabalhadores. Os aspectos negativos consistem em enfrentar situações de risco durante o trabalho; nível de remuneração; falta de transparência da estimativa de receita e ausência de regulamentação do trabalho, já que ainda não há uma lei que forneça aos motoristas direitos e deveres trabalhistas básicos.
2.2 Rotina exaustiva do próprio patrão
O advento das plataformas de transporte por meio de aplicativos, como é o caso da Uber, ocasionou uma transformação substancial na elaboração e execução do trabalho.
Os motoristas parceiros que operam nessas plataformas digitais frequentemente encontram-se em uma posição singular, na qual assumem simultaneamente os papéis de trabalhadores e empregadores de si próprios, esse contexto estimula indagações pertinentes acerca da natureza do trabalho contemporâneo, da autonomia dos trabalhadores e dos desafios inerentes àqueles que buscam seu sustento dentro deste modelo de negócio.
Nessa circunstância, a rotina exaustiva enfrentada pelo motorista parceiro transparece a sua rendição a uma carga de trabalho esgotante, ressalta-se que, essa jornada de trabalho ocorre sem que o motorista parceiro usufrua dos benefícios e das garantias tradicionalmente associadas aos empregos convencionais.
No segundo capítulo da obra "Sociedade do Cansaço" (Han, 2015, p. 14), explana uma transformação de paradigma em que a sociedade do século XXI não é mais distinguida como uma sociedade disciplinar, mas sim como uma sociedade de desempenho. Os indivíduos que a integram não são mais referidos como "sujeitos da obediência", mas sim como sujeitos de desempenho e produção, imputando-se o papel de empresários de si mesmos.
Um ponto relevante na rotina dos motoristas parceiros que atuam na Uber, diferentemente dos empregos convencionais caracterizados por horários fixos, é a constante exigência de disponibilidade enquanto estiver logado na plataforma. Embora a plataforma dê ao motorista a opção de pausar as solicitações de viagens para usar o sanitário, abastecer o carro, ou mesmo voltar para casa, o motorista parceiro desfruta da flexibilidade para determinar quando deseja realizar suas atividades laborais (UBER, 2023).
Com o intuito de garantir uma renda satisfatória, essa flexibilidade pode traduzir-se em uma pressão para ficar permanentemente disponível em média de 12 a 15 horas por dia, pois o motorista se sente compelido a permanecer online durante longos períodos aguardando viagem, mesmo em momentos em que ele preferia descansar ou dedicar-se a atividades familiares.
A sensação de estar constantemente à disposição do aplicativo pode desencadear nele uma percepção de exaustão crônica e dificuldades na delimitação de fronteiras nítidas entre as esferas de trabalho e vida pessoal. A rotina excessiva que um motorista parceiro exerce tem um impacto importante em sua saúde, tanto física quanto mental.
O estresse contínuo decorrente da pressão para alcançar metas, juntamente com a falta de pausas regulares, pode levá-lo a enfrentar desafios de saúde, como transtornos de ansiedade, episódios depressivos e síndromes de esgotamento. A urgência de cumprir objetivos financeiros e a constante obrigação de estar disponível para atender as corridas resultam em noites de sono perdidas e níveis elevados de ansiedade, uma vez que a falta de segurança em caso de doença ou necessidade de benefícios previdenciários se torna uma preocupação constante.
Nesse sentido, Byung-Chul Han diz que o excesso de trabalho e desempenho na sociedade contemporânea se metamorfoseia em auto exploração, aparentemente alinhada com a sensação de liberdade. Nesse cenário, aquele que explora se torna, ao mesmo tempo, objeto de exploração, obscurecendo a fronteira entre o agressor e a vítima. Os transtornos psicológicos prevalentes na sociedade do desempenho podem ser interpretados como manifestações patológicas dessa liberdade contraditória (HAN,2015, p. 16,17).
Em síntese, torna-se indiscutível a urgência de repensar a estruturação do trabalho nas plataformas de aplicativos, não apenas pela flexibilidade inerente, mas de modo que a definição de limites essenciais preserve o bem-estar do motorista parceiro.
3 A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO DE EMPREGO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES
A natureza jurídica da relação de emprego é um tema fundamental no direito do trabalho, pois determina os direitos e obrigações das partes envolvidas. A caracterização da relação de emprego baseia-se em uma série de elementos que definem o vínculo entre o empregado e o empregador.
Assim, independentemente da natureza jurídica da relação entre as entidades envolvidas, sempre que essa relação inclua um ato de trabalho humano, seja ele material ou intelectual, trata-se de relações de trabalho (DELGADO, 2019).
Por se tratar de uma situação real que possui relevância e produz efeitos no meio jurídico, a relação de trabalho é uma relação jurídica que pode envolver dois ou mais sujeitos de direito. Tanto a relação de trabalho como a de emprego são modalidades de relação jurídica, sendo a sua estrutura constituída de sujeitos, objeto, causa e garantia (sanção). E esta relação jurídica se manifesta por meio dos direitos subjetivos e dos direitos potestativos.
Em contrapartida, o vínculo empregatício por sua vez, pode ser classificada como uma das espécies de relação de trabalho, que engloba diversas outras modalidades, como o trabalho casual, ocasional, eventual, autônomo, voluntário, institucional, de estágio, entre outras.
De acordo com Delgado (2019, p. 334), é explícito a importância da relação de emprego em detrimento das demais relações de trabalho, nesse sentido aponta:
Não obstante esse caráter de mera espécie do gênero a que se filia, a relação de emprego tem a particularidade de também se constituir, do ponto de vista econômicosocial, na modalidade mais relevante de pactuação de prestação de trabalho existente nos últimos duzentos anos, desde a instauração do sistema econômico contemporâneo, o capitalismo. Essa relevância socioeconômica e a singularidade de sua dinâmica jurídica conduziram a que se estruturasse em torno da relação de emprego um dos segmentos mais significativos do universo jurídico atual — o Direito do Trabalho.
Diante da expansão do mercado de trabalho e das novas formas de produção e exploração surgidas no século passado, a relação de trabalho destaca-se no plano socioeconômico e jurídico, pois pode limitar o poder capitalista encontrando formas de limitar o poder do capitalismo buscando maior proteção à classe trabalhadora. Deve, portanto, ser analisado numa perspectiva específica de acordo com a sua relevância para a integração do direito do trabalho.
No tópico á seguir será apresentado os requisitos da relação de emprego, que são: pessoa física, não eventualidade, subordinação, onerosidade, pessoalidade e alteridade.
3.1 Avaliação do trabalhador uberizado frente aos requisitos caracterizadores da relação de emprego
Um dos principais argumentos contra a uberização é a falta de preenchimento dos requisitos estabelecidos pelo artigo 3º da CLT, especialmente o da subordinação, que será analisado detalhadamente a seguir. Neste cenário, é importante compreender os impactos sociais e legais dessa forma emergente de organização do trabalho.
A relação de emprego é identificada por um aspecto contratual, convencionado com base na vontade das partes, por meio do contrato de trabalho. Essa é uma aliança laboral que segue suas próprias normas e regulamentos. Em um contexto particular, a combinação dos cinco elementos fático-jurídicos é o que dá origem à relação de emprego e permite a identificação do empregado.
O artigo 3º da CLT estabelece que “considera-se empregada toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário” (BRASIL, 1943).
De acordo com as palavras de Delgado (2019, p. 387), a distinção entre um indivíduo que exerce atividade como autônomo e um trabalhador empregado está fundamentada na noção de subordinação, como ele explica:
[...] Noutras palavras, o trabalhador autônomo distingue-se do empregado, quer em face da ausência da subordinação ao tomador dos serviços no contexto da prestação do trabalho, quer em face de também, em acréscimo, pode faltar em seu vínculo com o tomador o elemento da pessoalidade. A diferenciação central entre as figuras situa-se, porém, repita-se, na subordinação. Fundamentalmente, o trabalho autônomo é aquele que se realiza sem subordinação do trabalhador ao tomador dos serviços. Autonomia é conceito antitético ao de subordinação. Enquanto esta traduz a circunstância juridicamente assentada de que o trabalhador acolhe a direção empresarial no tocante ao modo de concretização cotidiana de seus serviços, a autonomia traduz a noção de que o próprio prestador é que estabelece e concretiza, cotidianamente, a forma de realização dos serviços que pactuou prestar. Na subordinação, a direção central do modo cotidiano de prestação de serviços transfere-se ao tomador; na autonomia, a direção central do modo cotidiano de prestação de serviços preserva-se com o prestador de trabalho.
Na perspectiva da doutrina jurídica, desempenha-se um papel fundamental na interpretação e aplicação das leis trabalhistas em diversos países. Ela fornece orientações valiosas sobre como os tribunais e legisladores devem considerar os elementos que definem uma relação de emprego.
O trabalho por pessoa física no âmbito do Direito do Trabalho é centrado na prestação de serviços por indivíduos naturais, protegendo bens jurídicos e éticos relevantes para esses sujeitos. A pessoa física sempre é o trabalhador, enquanto a pessoa jurídica pode atuar como empregador. No entanto, a utilização simulatória da pessoa jurídica para esconder uma relação de emprego específica é ilegal e sujeita a punições, conforme estabelecido pelo artigo 9º da CLT. Esse elemento fático-jurídico é crucial para determinar a existência de uma relação empregatícia (Delgado 2016, p. 303).
Dessa forma o trabalho prestado por pessoa física, mesmo quando o contrato é celebrado com uma pessoa jurídica, a execução efetiva dos serviços é realizada por pessoas físicas, o que comprova, portanto, a indispensabilidade da força de trabalho humana para a caracterização do vínculo empregatício. Nesse aspecto, o trabalhador de aplicativos preenche o requisito em questão, uma vez que para utilizar o serviço do aplicativo como seu meio de subsistência, o que o leva a exercer fisicamente dirigindo de forma habitual, para suprir suas necessidades básicas se submetendo, inclusive, a jornadas exaustivas para atingir essa finalidade.
A pessoalidade é um elemento essencial na configuração da relação de emprego e deve ser analisada em conjunto com a prestação de serviços por uma pessoa física. Para que a relação seja considerada de emprego, é fundamental que o trabalho prestado pela pessoa física seja infungível, ou seja, não possa ser substituído por outra pessoa ao longo da prestação dos serviços acordados. A substituição do trabalhador pode ocorrer com o consentimento do empregador, desde que não seja frequente e constante, o que poderia descaracterizar a pessoalidade (Delgado 2016, p. 443).
Logo, o princípio da pessoalidade envolve a ideia de que o trabalhador não pode delegar suas responsabilidades a terceiros sem a permissão do empregador, e procuraremos entender como essa restrição se aplica aos motoristas parceiros e às exigências das plataformas de aplicativos. No que diz respeito a esse requisito, o trabalhador de aplicativos também o preenche, uma vez que realiza o cadastro na plataforma de forma individual, apresentando dados pessoais e bancários, além de ser colocado diante de uma avaliação pessoal através da nota dada pelo cliente. Sendo assim, ele precisa prestar o serviço com pessoalidade.
O elemento da não eventualidade é fundamental para a configuração da relação de emprego no Direito do Trabalho. Ele diz respeito à necessidade de que o trabalho prestado tenha um caráter de permanência, mesmo que por um período determinado, não se enquadrando como trabalho esporádico. A legislação trabalhista incentiva a continuidade da relação de emprego, sendo as exceções contratos de trabalho temporários com prazo delimitado. O trabalhador eventual não se confunde com o sazonal ou adventício, já que sua atividade pode ser descontínua, mas não necessariamente de curta duração e sempre está integrada à dinâmica do empreendimento do tomador de serviços (Delgado 2016, p. 443).
No que diz respeito à não eventualidade, está se refere à continuidade e regularidade do trabalho. Analisaremos como os motoristas parceiros que optam por trabalhar de forma regular se encaixam nesse critério e como as flutuações na demanda afetam essa condição. A fixação jurídica do empregado para com a empresa se identifica quando o empregador controla a força de trabalho do subordinado, estabelecendo um acordo através do contrato de trabalho. O trabalhador das plataformas digitais também preenche esse requisito, uma vez que utiliza esse tipo de serviço como seu meio de subsistência, o que o leva a exercer de forma habitual para suprir suas necessidades básicas.
A onerosidade é um componente essencial da relação de emprego, que se baseia em uma troca econômica entre o trabalhador e o empregador. Isso se traduz no pagamento de salário pelo empregador em contrapartida ao trabalho fornecido pelo empregado. A relação de trabalho é bilateral e envolve uma série de obrigações econômicas mensuráveis entre as partes. Para avaliar a onerosidade em uma relação específica, é necessário considerar a perspectiva do prestador de serviços, pois é a partir dela que esse elemento se configura como um componente fático-jurídico da relação de emprego. A análise desse elemento envolve tanto uma abordagem objetiva quanto subjetiva. (Delgado 2016, p. 378).
Em relação à onerosidade, esta diz respeito à contrapartida financeira pelo trabalho realizado, os motoristas parceiros são remunerados, e essa remuneração atende aos critérios de onerosidade.
Assim o contrato de trabalho possui a característica de ser bilateral, sinalagmático e oneroso, o que significa que estabelece obrigações recíprocas entre os contratantes. Nesse sentido, a obrigação principal do empregado é a realização da atividade para a qual foi contratado, enquanto a do empregador é remunerar esse empregado pelos serviços prestados a ele. Portanto, o caráter oneroso do contrato é definido pela intenção de remuneração por parte do prestador do serviço. Mesmo que ocorra atraso no pagamento, seja por mora ou inadimplemento do empregador, isso não descaracteriza a onerosidade, pois a expectativa do empregado sempre foi receber pelos serviços prestados. Quanto a este requisito, as pessoas que trabalham através das plataformas digitais claramente o preenchem, já que dependem desses serviços como fonte de sustento, o que, por si só, demonstra a intenção de lucro por parte de quem presta o serviço.
A subordinação, entre os cinco elementos que compõem a relação de emprego, destaca-se como o mais relevante na configuração desse tipo legal de vínculo. Ela distingue a relação de emprego de outras formas históricas de relação de produção, como a servidão e a escravidão, bem como das diversas modalidades de trabalho autônomo no mundo contemporâneo. A subordinação é o elemento que reflete o poder de direção do empregador sobre o trabalhador, orientando a maneira como o trabalho é executado. Essa característica é tão fundamental que alguns juristas chegaram a argumentar que a natureza do contrato de trabalho era determinada pela subordinação, independentemente da natureza da atividade realizada.
A subordinação é avaliada de três maneiras principais: a subordinação clássica, que envolve a intensidade das ordens diretas do empregador; a subordinação objetiva, que se baseia na integração do trabalhador nos objetivos da empresa; e a subordinação estrutural, que se relaciona com a inserção do trabalhador na dinâmica operacional da empresa. Essas dimensões múltiplas da subordinação permitem que o Direito do Trabalho se adapte às mudanças na natureza do trabalho, garantindo a proteção dos direitos trabalhistas em diferentes contextos, como o trabalho remoto (Delgado 2016, p. 310).
Dessa maneira, a subordinação jurídica, na qual o trabalhador está sujeito às ordens e diretrizes do empregador, é investigada quanto à sua aplicação na relação entre motoristas parceiros e plataformas de aplicativos, bem como como as decisões judiciais têm abordado essa questão.
Quanto ao público objeto da presente análise, que é a pessoa que labora através das plataformas digitais, o requisito encontra-se preenchido, pois ao realizar seu cadastro, essa pessoa tem sua força de trabalho explorada pela empresa à qual se vincula e não assume os riscos do sucesso ou do fracasso da mesma.
Esses cinco requisitos são fundamentais para avaliar se a relação entre motoristas parceiros e plataformas de aplicativos como a Uber pode ser considerada um vínculo empregatício. A partir da perspectiva da doutrina jurídica, examinaremos como esses requisitos têm sido aplicados em casos legais e como eles moldam a compreensão do trabalho no contexto das plataformas de aplicativos.
4 DA SENTENÇA POSITIVA QUANTO AO RECONHECIMENTO DE VÍNCULO ENTRE O MOTORISTA E O APLICATIVO DA UBER
Primeiramente, é notável que, na relação entre motoristas e empresas de transporte como a Uber, existe uma disparidade evidente, onde a parte mais poderosa estabelece as regras, enquanto a parte mais vulnerável é compelida a segui-las, sem um equilíbrio real de poder. Essa dinâmica assemelha-se ao contexto do Direito do Trabalho, devido à presença de um ator vulnerável e à exploração da força de trabalho por meio da prestação de serviços àqueles que detêm o monopólio da relação.
Nesse contexto, é relevante mencionar a sentença proferida pelo Magistrado Márcio Toledo Gonçalves do Tribunal Regional do Trabalho de Belo Horizonte no processo de número 0011359-34.2016.5.03.0112. Essa sentença foi utilizada como base para aplicar os princípios do Direito do Trabalho à análise de um caso específico que evidencia a possibilidade de estabelecimento de um vínculo entre um aplicativo e um prestador de serviços. Embora a decisão de primeira instância tenha sido posteriormente reformada pela Nona Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, o objetivo principal é demonstrar que, por meio da interpretação da doutrina trabalhista, é possível buscar proteção para o trabalhador.
Para determinar se o Direito do Trabalho é aplicável a essa relação em particular, é necessário invocar o princípio fundamental desse ramo do direito, que é o princípio da primazia da realidade. Esse princípio permite a avaliação de todos os elementos que caracterizam um vínculo de emprego, conforme enfatizado pelo Magistrado Márcio Toledo em sua sentença.
O exame acerca da existência ou não de relação de emprego, como ordinariamente ocorre, deve nortear-se pelo Princípio da primazia da realidade sobre a forma, de modo que a análise de eventual existência de vínculo de emprego entre a ré e seus motoristas passa, preambularmente, pela apreciação da presença ou ausência dos elementos fático-jurídicos da relação de emprego. Segundo a CLT, empregado é "toda pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário" (art. 3º da CLT). (TOLEDO, 2017, p. 11).
Pode-se inferir do trecho da sentença mencionada que a consolidação de um vínculo empregatício resulta da convergência dos elementos factuais e jurídicos, a saber: subordinação, habitualidade, onerosidade, pessoalidade e a atuação de uma pessoa física. Assim, o foco do direito não recai no que foi acordado e documentado, mas sim na forma como a relação se desenrola na prática.
O processo em questão tratou do pedido de reconhecimento de vínculo entre o reclamante, Rodrigo Leonardo Silva Ferreira, e a empresa reclamada, Uber do Brasil Tecnologia Ltda. A decisão ganhou considerável notoriedade, uma vez que o tema impacta diretamente a sociedade, dado que o aplicativo Uber é a principal fonte de renda para milhares de brasileiros que enfrentam os desafios da grave crise econômica que teve início em 2016.
Portanto, os elementos factuais e jurídicos mencionados serão aplicados a esse caso específico - a sentença que reconheceu o vínculo entre o motorista e a Uber - com o propósito de demonstrar a viabilidade de conferir proteção legal ao motorista mediante a aplicação do Direito do Trabalho, por meio do reconhecimento do vínculo empregatício.
Dessa maneira, é possível observar a presença da subordinação, conforme ressaltado pelo Magistrado:
Na hipótese dos autos, sob qualquer dos ângulos que se examine o quadro fático da relação travada pelas partes e, sem qualquer dúvida, a subordinação, em sua matriz clássica, se faz presente. O autor estava submisso a ordens sobre o modo de desenvolver a prestação dos serviços e a controles contínuos. Além disso, estava sujeito à aplicação de sanções disciplinares caso incidisse em comportamentos que a ré julgasse inadequados ou praticasse infrações das regras por ela estipuladas. Quanto ao modo de produção e realização dos serviços, restou comprovado que a reclamada realizava verdadeiro treinamento de pessoal. Esclareceu o Sr. Charles Soares Figueiredo (id 34c8e7b): "(...) que nessa oportunidade passaram por orientações de como tratar o cliente, como abrir a porta, como tratar o cliente, como ter água e bala dentro do carro, que são obrigatórios, que teriam que manter a água gelada e estarem sempre se terno e gravata, guarda-chuva no porta malas; que o uso de terno e gravata era só para Uber Black, que também foi passado que o ar condicionado sempre deveria estar ligado, o carro limpo e lavado e o motorista sempre bem apresentado (...)." (TOLEDO, 2016, p. 21).
O motorista está sujeito à orientação da Uber, que se manifesta na forma de recomendações. Um exemplo disso é a sugestão de disponibilizar água ou balas no veículo para o consumo dos passageiros, o que decorre das políticas da empresa, incluindo a avaliação do comportamento do motorista em relação a essas recomendações.
Dentro da relação de emprego, podem ser identificados os elementos factuais e jurídicos da pessoa física e da pessoalidade, como explicado por TOLEDO:
Nesse diapasão, o depoimento da testemunha Sr. Charles Soares Figueiredo (id 34c8e7b) é absolutamente revelador quanto à presença desse pressuposto ao demonstrar que a reclamada exige prévio cadastro pessoal de cada um dos pretensos motoristas, ocasião em que devem ser enviados diversos documentos pessoais necessários para aprovação em seu quadro, tais como certificado de habilitação para exercer a função de condutor remunerado, atestados de bons antecedentes e certidões "nada consta". Informou o depoente que à época de sua contratação foi, inclusive, submetido à entrevista pessoal. Corroborando estas declarações, chama atenção o depoimento do Sr. Saadi Alves de Aquino nos autos do IC 001417.2016.01.000/6 (id eecf75b). O declarante, na condição de coordenador de operações, acompanhava a contratação dos motoristas na cidade do Rio de Janeiro, processo que consistia em apresentação de documentos, testes psicológicos e análise de antecedentes por empresa terceirizada. Como se vê, a reclamada escolhia minunciosamente quem poderia integrar ou não os seus quadros. Resta claro, portanto, o caráter intuitu personae da relação jurídica travada pelas partes, principalmente porque não é permitido ao motorista ceder sua conta do aplicativo para que outra pessoa não cadastrada e previamente autorizada realize as viagens. Esta proibição de se fazer substituir também pode ser confirmada por uma simples consulta ao sítio eletrônico da Uber. Com amparo no Princípio da conexão, transcreve-se trecho dos termos de segurança estabelecidos pela demandada: (...)"Os termos e condições da Uber não permitem o compartilhamento das contas dos motoristas parceiros. O uso da sua conta por outro motorista se constitui como um sério problema de segurança. Se soubermos que um motorista não corresponde ao perfil do motorista parceiro exibido pelo aplicativo do passageiro, a conta será suspensa imediatamente e ficará pendente para investigação." ( D i s p o n í v e l e m : .Acesso em: 07 de fevereiro de 2017) (...)(TOLEDO, 2016, p. 13).
O elemento da pessoa física se faz presente, uma vez que a inscrição no serviço não é aberta a pessoas jurídicas. Além disso, a pessoalidade é um aspecto inerente a essa relação, já que se trata de um vínculo intuitu personae. Isso é evidenciado pelo fato de que, no momento do registro, a empresa requer uma foto do motorista, que é posteriormente disponibilizada aos usuários para que possam identificá-lo. Dessa forma, nenhum outro motorista pode utilizar o mesmo cadastro.
No contexto do emprego, também se verifica a presença do elemento fático-jurídico da habitualidade, conforme esclarecido pelo juiz.
Eventualidade que não caracteriza o trabalho do autor. Os motoristas cadastrados no aplicativo da ré atendem à demanda intermitente pelos serviços de transporte. Tanto é que, os demonstrativos de pagamento (id 3937e7b) colacionados com a peça de ingresso confirmam que o autor se ativou de forma habitual entre março de 2015 a abril de 2016. De igual modo, o conjunto probatório fornece elementos de convicção quanto à exigência, ainda que muitas vezes velada, de que os motoristas estejam em atividade de forma sistêmica. Em depoimento ao Ministério Público do Trabalho da 1ª Região, o Sr. Saadi Alves de Aquino, ex-coordenador de operações da ré, nos autos do IC 001417.2016.01.000/6 (id eecf75b), declarou que: "(...) se o motorista ficar mais de um mês sem pegar qualquer se fosse à empresa e anifestasse interesse; que eram enviados e-mails, como o casos dos sticks acima citados, para que o motorista "ficasse com medo" e voltasse a se ativar na plataforma; que como gestor tinha por meta incentivar os motoristas a estarem ativos (...)." Indagada a respeito, a testemunha Sr. Charles Soares Figueiredo, nessa mesma toada, declarou (id 34c8e7b): "(...) que recebeu um email que não se lembra a data dizendo que se não fizesse pelo menos uma viagem no prazo de uma semana, seria excluído da plataforma, mas não houve exclusão (...)." Como se vê, a não-eventualidade não só caracteriza a natureza do trabalho realizado no contexto da atividade normal desempenhada pela ré, como também era exigida dos motoristas. A presença deste elemento fático-jurídico na relação jurídica travada entre as partes fica ainda mais evidente sob o prisma da teoria dos fins do empreendimento que consagra não ser eventual o trabalhador chamado a desenvolver seus misteres para os fins normais da empresa (TOLEDO, 2017).
Portanto, é claro que a prestação de serviços não era esporádica, uma vez que a própria empresa demonstra ter implementado incentivos para evitar que os motoristas interrompessem seu trabalho.
Outro ponto a ser considerado é o requisito da onerosidade presente no contrato. Isso se manifesta no pagamento e na administração dos valores repassados ao motorista pelos serviços prestados, conforme mencionado no trecho da sentença de Toledo.
Os autos evidência que a ré conduzia, de forma exclusiva, toda a política de pagamento do serviço prestado, seja em relação ao preço cobrado por quilometragem rodada e tempo de viagem, seja quanto às formas de pagamento ou às promoções e descontos para usuários. Não era dada ao motorista a menor possibilidade de gerência do negócio, situação que não ocorreria caso fosse o obreiro o responsável por remunerar a ré. Segundo porque a reclamada não somente remunerava os motoristas pelo transporte realizado, como também oferecia prêmios quando alcançadas condições previamente estipuladas. Neste sentido é o depoimento do Sr. Saadi Alves de Aquino, ex-coordenador de operações da ré, nos autos do IC 001417.2016.01.000/6 (ideecf75b): "(...) que próximo ao Carnaval, por exemplo, o motorista ativado que completasse 50 viagens em 3 meses ganharia R$ 1.000,00 (mil reais); (...) que no dia do protesto do taxista, no início de 2016, a empresa investigada já sabia que faltariam motoristas na cidade então programou uma promoção especial para o motorista que consiste em cumprir alguns requisitos, por exemplo, ficar online 8 ou mais horas, completar 10 ou mais viagens e ter uma média de nota acima de 4,7 e, então, o motorista ganharia 50% a mais de todas as viagens completadas nesse período e com esse padrão. (TOLEDO, 2016, p.14).
Um elemento frequentemente subestimado na literatura trabalhista, embora reconhecido pelo direito civil no contexto dos contratos, é a questão da vontade das partes, ou animus contrahendi. No caso dos contratos de trabalho, é essencial observar que eles não afastam os princípios do Código Civil.
O animus contrahendi é mais um requisito para a formação da relação de emprego. Trata-se de um requisito pouco explorado pelo direito do trabalho, porque os direitos trabalhistas são irrenunciáveis e independem da vontade das partes para que passem a valer. Acontece que há casos em que a vontade das partes pode fazer uma grande diferença na relação, como se dá nos serviços voluntários (Lei n. 9.608/98) e religiosos, em que a pedra de toque é justamente o desejo de ser solidário ou professar a fé (GRANCONATO, 2017, p 07).
Em última análise, não há margem para dúvidas de que o contrato estabelecido pela Uber exibe características inerentes a uma relação de emprego. Ambas as partes envolvidas manifestam sua vontade de manter essa relação, com o motorista se autodeclarando como empregado e a Uber como empregadora. Além disso, o contrato preenche os requisitos delineados tanto pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) quanto pela doutrina, como discutido na sentença proferida pelo Magistrado Márcio Toledo Gonçalves.
4.1 DIVERGÊNCIAS NA JURISPRUDÊNCIA NACIONAL EM RELAÇÃO AO RECONHECIMENTO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO
Nesse contexto, o vínculo empregatício entre um motorista e a Uber Brasil foi reconhecido pela Terceira Turma do TST em 11 de abril de 2022, conforme consta no acórdão publicado. O Relator do caso foi o Ministro Maurício Godinho Delgado, e a decisão foi proferida em sede de Recurso de Revista. O motorista, no caso analisado, atuava de acordo com os padrões estabelecidos pela empresa, trabalhando cerca de 13 horas diárias e 78 semanais, com monitoramento constante por meio do aplicativo.
Após apenas dois meses de serviço, teve seu cadastro cancelado de forma imotivada.
Além disso, a argumentação do ministro se baseou no artigo 6º, parágrafo único, da CLT, que equipara os meios telemáticos e informatizados de controle e supervisão aos meios exercidos por pessoas físicas, reforçando a presença do requisito da subordinação no caso.
O ministro acredita que o acompanhamento tecnológico, ou "subordinação algorítmica," possivelmente supere outras configurações de emprego tradicionais.
Segue a ementa do recurso analisado:
RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI 13.467/2017 . UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA.NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO MANTIDA ENTRE OS TRABALHADORES PRESTADORES DE SERVIÇOS E EMPRESAS QUE ORGANIZAM, OFERTAM E EFETIVAM A GESTÃO DE PLATAFORMAS DIGITAIS DE DISPONIBILIZAÇÃO DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE AO PÚBLICO, NO CASO, O TRANSPORTE DE PESSOAS E MERCADORIAS.
NOVAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DA FORÇA DE
TRABALHO HUMANA NO SISTEMA CAPITALISTA E NA LÓGICA DO MERCADO ECONÔMICO. ESSENCIALIDADE DO LABOR DA PESSOA HUMANA PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS OBJETIVOS DA EMPRESA. PROJEÇÃO DAS REGRAS CIVILIZATÓRIAS DO DIREITO DO TRABALHO SOBRE O LABOR DAS PESSOAS NATURAIS. INCIDÊNCIA DAS NORMAS QUE REGULAM O TRABALHO SUBORDINADO DESDE QUE NÃO DEMONSTRADA A REAL AUTONOMIA NA OFERTA E UTILIZAÇÃO DA MÃO DE OBRA DO TRABALHADOR (ART. 818, II, DA CLT). CONFLUÊNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS HUMANISTAS E SOCIAIS QUE ORIENTAM A MATÉRIA (PREÂMBULO DA CF/88; ART. 1º,
III E IV; ART. 3º, I, II, III E IV; ART. 5º, CAPUT ; ART. 6º; ART. 7º, CAPUT E SEUS INCISOS E PARÁGRAFO ÚNICO; ARTS. 8º ATÉ 11; ART. 170, CAPUT E INCISOS III, VII E VIII; ART. 193, TODOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988). VÍNCULO DE EMPREGO. DADOS FÁTICOS CONSTANTES DO ACÓRDÃO REGIONAL REFERINDO-SE A RELAÇÃO SOCIOECONÔMICA ABRANGENTE DE PERÍODO DE QUASE DOIS MESES. PRESENÇA DOS ELEMENTOS INTEGRANTES DA RELAÇÃO EMPREGATÍCIA. INCIDÊNCIA, ENTRE OUTROS PRECEITOS, TAMBÉM DA REGRA DISPOSTA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 6º DA CLT (INSERIDA PELA LEI n. 12.551/2011), A QUAL ESTABELECE QUE " OS MEIOS TELEMÁTICOS E INFORMATIZADOS DE COMANDO, CONTROLE E SUPERVISÃO SE EQUIPARAM, PARA FINS DE SUBORDINAÇÃO JURÍDICA, AOS MEIOS PESSOAIS E DIRETOS DE COMANDO, CONTROLE E SUPERVISÃO DO TRABALHO ALHEIO ". PRESENÇA,
POIS, DOS CINCO ELEMENTOS DA RELAÇÃO DE EMPREGO, OU
SEJA: PESSOA HUMANA PRESTANDO TRABALHO; COM
PESSOALIDADE; COM ONEROSIDADE; COM NÃO EVENTUALIDADE; COM SUBORDINAÇÃO. ÔNUS DA PROVA DO TRABALHO AUTÔNOMO NÃO CUMPRIDO, PROCESSUALMENTE (ART 818, CLT), PELA EMPRESA DE PLATAFORMA DIGITAL QUE ARREGIMENTA, ORGANIZA, DIRIGE E FISCALIZA A PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS ESPECIALIZADOS DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE (TST- RR: 100353-02.2017.5.01.0066, Relator: Maurício Godinho Delgado, Data de julgamento: 06/04/2022, Terceira Turma, Data da publicação: 11/04/2022).
A Justiça do Trabalho proferiu sentença ao processo: Ação Civil Pública Cível, número: 1001379-33.2021.5.02.0004 condenando a Uber a pagar R$ 1 bilhão em danos morais coletivos e a registrar as carteiras de trabalho de todos os motoristas cadastrados na plataforma no Brasil. A decisão, emitida pela 4ª Vara do Trabalho de São Paulo em 14 de setembro de 2023, foi resultado de uma ação movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em novembro de 2021, após uma denúncia da Associação dos Motoristas Autônomos de Aplicativos (AMAA) sobre as condições de trabalho na empresa de tecnologia.
O juiz Maurício Pereira Simões, responsável pelo caso, destacou que o resultado da ação coletiva é positivo, pois garante uma abordagem uniforme, evitando incertezas e vaguezas nas relações sociais. A sentença se baseou na constatação de que a Uber infringiu direitos constitucionais e legais mínimos relacionados ao emprego, além de não reconhecer os motoristas como funcionários registrados.
O magistrado argumentou que a empresa agiu dolosamente ao desrespeitar deliberadamente as leis trabalhistas, previdenciárias, de saúde e assistência. Ele fixou a indenização em R$ 1 bilhão, levando em consideração a capacidade econômica da Uber, seus lucros significativos e a expansão em mais de 550 cidades no Brasil.
Em relação à subordinação, o magistrado ressaltou que os motoristas são controlados pela Uber, que determina quem pode dirigir, impõe regras de trabalho, monitora suas atividades em tempo integral e possui amplo poder de fiscalização e punição.
Em caso de pagamento, 90% dos valores serão destinados ao Fundo de Amparo ao Trabalhador, enquanto os outros 10% serão distribuídos igualmente entre as associações de motoristas por aplicativos com registro em cartório e constituição social regular. O juiz enfatizou que a prestação de serviços dos motoristas da Uber é altamente personalizada, mais do que a de taxistas, o que ressalta a subordinação presente na relação.
O Projeto de Lei 5069/19 está em tramitação na Câmara dos Deputados e propõe que o motorista de aplicativo de transporte, como Uber e 99, seja considerado como tendo um vínculo empregatício ao exercer a atividade de forma pessoal, habitual e subordinada à empresa dona da plataforma.
Caso aprovado, o projeto garantirá ao motorista os benefícios previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como férias, 13º salário e uma jornada de trabalho diária de oito horas. Além disso, equiparará a empresa operadora da plataforma digital ao empregador. Aqueles que exercerem a atividade de forma eventual poderão se cadastrar como microempreendedores individuais (MEI).
O texto também exige que os motoristas de aplicativos realizem exames toxicológicos periódicos e participem de um programa de controle de uso de drogas e álcool, seguindo as disposições já previstas na CLT para motoristas profissionais. O autor do projeto, deputado Gervásio Maia (PSB-PB), busca eliminar a incerteza jurídica em torno do status profissional dos motoristas de aplicativos, devido às divergentes decisões judiciais sobre o reconhecimento do vínculo empregatício com as plataformas digitais.
O projeto será avaliado pelas comissões de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços; Trabalho, de Administração e Serviço Público; e Constituição e Justiça e de Cidadania, com a possibilidade de decisão conclusiva.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo proporcionou uma visão abrangente e crítica sobre um fenômeno que tem revolucionado a forma como o trabalho é realizado em muitas partes do mundo. O surgimento de aplicativos como a Uber trouxe consigo uma série de desafios, não apenas para os trabalhadores, mas também para o sistema legal.
A análise dos requisitos de vínculo empregatício no contexto da Uber e de serviços similares revela a complexidade dessa questão. Embora muitos motoristas atuem em regime de independência, a natureza das relações e a presença de elementos típicos do emprego, como a subordinação, pessoalidade e habitualidade, suscitam dúvidas sobre a verdadeira natureza desses contratos. Isso cria uma insegurança jurídica significativa tanto para os trabalhadores quanto para as empresas que operam essas plataformas.
A necessidade de regulamentação surge como um tema crucial neste cenário. A ausência de regulamentações específicas e a falta de precedentes claros na legislação trabalhista levaram a disputas judiciais em muitos países. As autoridades e os legisladores enfrentam o desafio de adaptar as leis trabalhistas tradicionais a essa nova realidade, a fim de garantir que os direitos dos trabalhadores sejam protegidos e que as empresas operem de maneira justa e responsável.
Este artigo destaca a importância de se buscar um equilíbrio entre a flexibilidade e inovação trazidas pelos aplicativos de transporte e a necessidade de garantir condições de trabalho justas e seguras. Propõe-se a criação de regulamentações adequadas, que levem em consideração a natureza única dessas relações de trabalho, garantindo benefícios e direitos para os trabalhadores, ao mesmo tempo em que promovem a inovação e o desenvolvimento econômico.
Para finalizar, o artigo conclui que o advento da Uber e de serviços similares apresenta desafios significativos para o direito do trabalho e para a sociedade em geral. A busca por soluções que equilibrem a flexibilidade, a segurança jurídica e a proteção dos direitos dos trabalhadores é essencial. A regulamentação adequada é um passo crucial nesse processo, visando a adaptar o quadro legal às demandas do trabalho por meio de aplicativos, promovendo um ambiente de trabalho justo e sustentável para todos os envolvidos.
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