O PAPEL DO ESTADO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: Do patrimonialismo histórico à participação popular
Resumo: O Estado e a administração pública têm papéis fundamentais na resolução dos conflitos gerados na sociedade. Parte desses conflitos e a mentalidade conflituosa brasileira são resultado da formação histórica do país, de um patrimonialismo até um estamento burocrático, e das ideias de hegemonia cultural implantadas nas últimas décadas. A obra de Raymundo Faoro apresenta notável acuracidade na descrição desse histórico que, associado a aportes ideológicos estrangeiros, proveu uma sociedade baseada no conflito, na divergência entre os que detêm o poder e a maior parte da população, ávida por justiça e prosperidade. Os conflitos ultrapassaram a capacidade de solução do judiciário, requerendo novas formas de acesso à justiça e participação popular, o que culminou no surgimento de ferramentas jurídicas profícuas, como os meios alternativos de resolução de conflitos, especialmente a mediação e a conciliação.
Palavras-chave: Estado; administração pública; estamento burocrático; meios alternativos de resolução de conflitos.
Abstract: The State and public administration have fundamental roles in resolving conflicts generated in society. Part of these conflicts and the conflicting mentality in Brazil are the result of the country's historical formation, from a patrimonialism to a establishment, and of the ideas of cultural hegemony implemented in recent decades. The work of Raymundo Faoro presents remarkable accuracy in the description of this history that, associated with foreign ideological contributions, provided a society based on conflict, on the divergence between those who hold power and the great part of the population, eager for justice and prosperity. Conflicts surpassed the resolution capacity of the judiciary, requiring new forms of access to justice and popular participation, which culminated in the emergence of fruitful legal tools, such as alternative dispute resolution, especially mediation and conciliation.
Key-words: State; public administration; establishment; alternative dispute resolution.
1 Introdução
A doutrina jurídica brasileira discute inúmeros autores franceses, na maioria herdeiros do iluminismo e da revolução francesa, e pouco se aprofunda em autores de relevância à nossa formação histórica. Um desses autores foi o jurista gaúcho Raymundo Faoro, que viveu no século passado e publicou em 1958 uma obra singular: “Os donos do poder”. Foi a primeira descrição acurada da formação brasileira, do patrimonialismo ao surgimento do estamento burocrático, uma estrutura que atua sobre outras, conduzindo os rumos políticos do país. A constituição elitista das instituições e grupos sociais brasileiros é uma das causa da formação de uma mentalidade conflituosa na sociedade, que se estende às mais variadas esferas sociais. Este ambiente, que conflita os interesses de um pequeno grupo oligárquico com as expectativas da população, foi amplificado pela introdução das ideias do ideólogo italiano Antonio Gramsci, sintetizadas na chamada hegemonia cultural. Essa fusão de interesses e ideologia proveu ao estamento um controle das ações da população nunca visto, com a repressão, inclusive pela mídia, de ideias divergentes da hegemônica ou das que ameacem os interesses político-econômicos do sistema. O consequente distanciamento entre as decisões políticas e a realidade vivenciada pela maioria da população foi inevitável, amplificando o quadro já crítico de conflitos, inclusive em âmbito jurídico. Chegou-se ao ponto de alguns defenderem um Estado Democrático sem liberdade de expressão.
Os conflitos avolumaram-se também no Poder Judiciário, solução monopolista de resolução de conflitos da contemporaneidade iluminada. A prestação jurisdicional estatal, provida exclusivamente pelo judiciário, entrou em colapso, não mais atendendo os princípios básicos constitucionais, como a razoável duração do processo. No entanto, têm surgido soluções como a justiça multiportas, que busca dar mais celeridade e economia ao provimento da justiça. Este estudo, tem como objetivo entender como a formação política brasileira gerou um ambiente social conflituoso e como os meios alternativos de resolução de conflitos podem ajudar a resolvê-lo. Através de pesquisa bibliográfica, o trabalho intenta uma contextualização do ambiente político, social e cultural a fim de fornecer subsídios às novas ferramentas jurídicas de acesso à justiça, especialmente os meios autocompositivos, como a mediação e a conciliação. A formação histórica brasileira, do patrimonialismo, passando pelo estamento burocrático e chegando ao estamento hegemônico é apresentada em formato descritivo; no entanto, o texto não se furta à inserção de comentários e ponderações conectados a fatos de amplo conhecimento.
A apuração versa sobre a possibilidade de aplicação de meios alternativos de resolução de conflitos num ambiente social profundamente conflituoso, consequência das divergências provenientes de um estamento burocrático que comanda e dirige os rumos políticos da sociedade à revelia das aspirações da população. Estipula-se o Estado com papel proeminente na garantia do acesso à justiça (CAPPELLETTI, p. 12), validando as soluções providas pelos indivíduos e a administração pública como responsável por criar e incentivar meios de participação popular nas decisões do Estado, e, particularmente, na resolução de conflitos em que órgãos e entidades públicas são litigantes.
Não trata, este exame, de definir as alterações legislativas necessárias à implantação de meios alternativos ao judiciário, mas de tornar claro que, mesmo entre desmandos governamentais, burocracia e ideologias, é possível buscar formas de redução de conflitos capazes de prover acesso à justiça e participação popular juridicamente validos, além de contribuirem para uma vida harmônica em sociedade.
2 Das origens do Brasil ao conflito contemporâneo
A formação do Brasil tem sido discutida recentemente com a profundidade que sempre mereceu. A forma na qual as instituições brasileiras foram constituídas e ocupadas revela a natureza conflituosa intrínseca a tais estruturas.
Nesse sentido, há que se observar inicialmente a influência da cultura europeia na formação do imaginário estatal em terras tupiniquins. Na transição do feudalismo ao capitalismo industrial, observaram-se fenômenos que resultaram em um desenvolvimento desigual da sociedade, no qual o Estado mantém para si boa parte da riqueza produzida ou advinda do comércio internacional, enfraquecendo as classes locais em nome da burocracia, como era, aliás, leitura de autores marxistas. Ironicamente, a crítica da desigualdade de ritmo partiu também da doutrina liberal. A burguesia crescente, amparada nas liberdades individual, de dispor da propriedade e de comerciar, entendia o Estado como mero mecanismo de garantia desses direitos. Ocorre que esse Estado “burguês” detinha as ferramentas necessárias para tornar-se maior e mais poderoso e acabou fazendo-o ao longo do tempo, avançando sobre a propriedade e as liberdades, atraindo, dessa vez, a crítica dos liberais.
De um modo ou de outro, pelo viés de uma ideologia ou de outra, somente no início do século XXI a sociedade teve a oportunidade de entender esse movimento na sua integralidade e especialmente na sua conexão com outros movimentos. Mas, de momento, continue-se com a descrição do movimento de formação estatal brasileiro. A cultura burocrática portuguesa foi consideravelmente assimilada pelos governantes locais, inclusive na República, contribuindo para o que se denominaria estamento burocrático. Esse movimento (ou consequência histórica) tinha foco no poder, no quadro administrativo, transmutando-se da aristocracia para a burocracia, com a acomodação dos interesses, ignorando uma estrutura de valores e princípios. Aristocracia, do grego “aristos”, ou seja, excelentes, melhores, significava o governo dos melhores, baseado em virtudes. A partir do momento em que essa ideia foi banida da face da Terra, com o golpe final desferido pelas pérfidas ideias iluministas, perdeu-se a ideia de um governo que poderia agir em nome do bem dos governados. O estamento é baseado na burocracia, que é baseada na lei, que é baseada nos interesses das classes dominantes. Com isso, o patrimonialismo então existente, pessoal, transformou-se em um patrimonialismo estatal, orientado pelos interesses das elites econômico-políticas, um “capitalismo politicamente orientado” (FAORO, p. 7).
O primeiro efeito, remanescente do período imperial e agravado pelo golpe militar da República de 1889, foi a intensa confusão entre os setores público e privado. A República inicial foi comandada por elites que se revezavam no poder, até o golpe ditatorial do Estado Novo, em 1937. O avanço do poder do estamento mostrou-se, desde então, cada vez maior, utilizando todos os meios de imposição da força, inclusive por meio da lei e do Direito, citando-se mecanismos de intermediação, monopólios estatais, concessões públicas, controle de crédito, controle de consumo, controle de produção e extrema regulação da economia. O estamento, importante tornar claro, atua sobre a sociedade; é um aparelhamento político que age por vezes de forma organizada e por outras, desarticulada; um aparelhamento que age e governa de acordo com os seus interesses, impedindo a entrada ou mesmo o aparecimento de quem a ele se oponha, o que somente hoje consegue-se observar com clareza. Em terminologia atual, o “sistema” massacra, expõe e elimina qualquer um que ouse desafiá-lo, através do uso de seu poder quase ilimitado, provido pelo Direito e pela associação (ou incorporação) a outras instituições.
O estamento burocrático adquire, assim, um poder nunca imaginado, com o comando das elites civil e militar e, através do seu aparelhamento, detém o comando da política e da economia. O estamento, com o tempo e a variedade de meios de ação, adquire a habilidade de criar na população a ilusão da escolha. Assim, atua em um nível superior às classes sociais, observando-as, dirigindo-as e gerando, quando do seu interesse, um “movimento pendular” (FAORO, p. 11), com a ilusão de que por vezes atua a favor do povo, contra a classe média, e por vezes contra os poderosos, em favor da mesma classe média. Nas últimas décadas vê-se um movimento pendular ainda mais extremo, que diz atuar em favor do povo (e dos poderosos de forma implícita, fora da propaganda oficial) contra a classe média, detentora de resquícios das virtudes aristocráticas, mas propagada pela mídia _que faz parte do estamento_ como “elite” perversa, que tem a ousadia de preservar tradições “retrógradas e opressivas”.
Em seu autoritarismo, o estamento burocrático não tem o interesse de controlar a totalidade da atividade econômica, mas de deter o controle político para controlar a população. Em verdade, várias vezes, viu-se a associação do governo a grandes empresas como forma de manutenção do estamento, como no fascismo italiano dos anos 1920 e na social-democracia brasileira dos anos 2000. Essa “autocracia autoritária” (FAORO, p. 877) opera sem sequer ter seu caráter ditatorial percebido pelo povo, que só se dá conta de absurdos pontuais em situações de conflitos entre a “bolha do estamento” e a vida real. A democracia representativa serve como uma luva a esses interesses, mantendo uma aparência constitucional a processos que alheiam o público dos assuntos que efetivamente impactarão suas vidas. Algumas tensões populares são inclusive geradas, infladas ou permitidas para legitimar o governo atual ou que assume o poder, como no incêndio do parlamento alemão em 1933, nos “black block” brasileiros em 2013 e possivelmente na invasão do prédio do congresso brasileiro em 2023. Os casos violentos felizmente tendem a ser exceção, já que o sistema constitucional e democrático ajustou-se ao comando das elites, num círculo vicioso eleitoral cujo poder é exercido através das oligarquias e dos partidos políticos.
Nesse contexto, novamente é indispensável a constatação de Faoro quanto à ação ou ideia permitida pelo estamento dentro da ideologia dominante (FAORO, p. 879):
O estamento burocrático desenvolve padrões típicos de conduta ante a mudança interna e no ajustamento à ordem internacional. Gravitando em órbita própria não atrai, para fundir-se, o elemento de baixo, vindo de todas as classes. Em lugar de integrar, comanda; não conduz, mas governa. Incorpora as gerações necessárias ao seu serviço, valorizando pedagógica e autoritariamente as reservas para seus quadros, cooptando-os [...]. O brasileiro que se distingue há de ter prestado sua colaboração ao aparelhamento estatal, não na empresa particular, no êxito dos negócios, nas contribuições à cultura, mas numa ética confuciana do bom servidor, com carreira administrativa e ‘curriculum vitae’ aprovado de cima para baixo.
O indivíduo, em consequência, deixa de ter opinião própria, passando a reproduzir aquilo que lhe é permitido pelo estamento. Fazendo referência a Joaquim Nabuco, Faoro cita uma política silogística, uma construção no vácuo, em que a “base são teses, e não fatos; o material, ideias, e não homens; a situação, o mundo e não o país; os habitantes, as gerações futuras, e não as atuais” (FAORO, p. 882). O poder tem donos, construídos, moldados no imaginário popular com precisão narrativa impecável e com a promessa de satisfação dos desejos primitivos do povo, cuja esperança já não mais reside em suas próprias forças, mas no Estado, através de um “pai dos pobres”.
Uma ausência explicativa do fenômeno do estamento burocrático na obra de Faoro, que em nada diminui a sua esplêndida leitura da formação brasileira, dá-se na insuficiência do argumento com relação à manutenção do sistema por décadas (hoje por mais de um século). Ocorre que esse sistema apresenta uma característica polimórfica, adaptando-se à necessidade do momento de maneira a manter o seu poder, e à época da obra, a mutação seguinte encontrava-se ainda nos cadernos universitários, sendo posta em prática 20 anos depois, a partir dos anos 1980, impulsionada pelos anos ditatoriais do governo militar brasileiro. Essa mutação do estamento é prevista em seu ideário; quando as instituições e a cultura não mais se amoldam aos interesses das elites, é hora de incorporá-las, ainda que seja uma incorporação parcial em um contexto capitalista ou desenvolvimentista.
Pode-se dizer que o passo seguinte do estamento burocrático não era claro ao público nos anos 1950, mas hoje é nítido que já era previsto por seus agentes. Em uma visão dialética hegeliana, a mutação do estamento burocrático era bem-vinda, pois apesar de em um primeiro momento opor-se ao sistema então vigente, tendia a, no futuro, torná-lo maior e mais poderoso, numa síntese dos meios de ação com o objetivo de manutenção do comando do país. O meio estratégico do qual se apropriaram os agentes do estamento burocrático foi derivado das ideias do deputado marxista e fundador do Partido Comunista italiano Antonio Gramsci (CARVALHO, p. 55), sobretudo da ideia de hegemonia cultural. A tomada das instituições e estruturas sociais, e não somente do aparato político-econômico, era a solução que faltava para a manutenção a longo prazo do estamento burocrático. No Brasil, essas ideias ganharam força, da estratégia aos meios de ação, nos anos 1970, influenciadas pela Escola de Frankfurt (Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse), que fez uma releitura marxista para a destruição do capitalismo através da destruição da cultura ou da sua substituição por uma pseudocultura.
Assim, paulatinamente, o estamento burocrático obteve o controle das estruturas influentes da sociedade, usando a política e a ideologia para infiltrar-se na cultura, tal como idealizado por Gramsci e pela Escola de Frankfurt. A tomada do poder, assim, não se resume à tomada do poder político, mas das estruturas relevantes existentes na sociedade, como as universidades, os sindicatos de servidores públicos, os meios editoriais e a mídia. Essa incorporação, no Brasil, sequer requereu o uso da força, sendo em algumas oportunidades conduzida pelo financiamento das estruturas, tornando-as dependentes do poder político-governamental, e em outras pelo simples convencimento através da propaganda ideológico-partidária.
Como se observa, o conflito é intrínseco à formação brasileira. Não há como, em um contexto que se transmutou de um patrimonialismo pessoal para um estamento burocrático para um estamento hegemônico, esperar-se a harmonia e a propagação de uma cultura de paz senão através de uma efetiva mudança cultural. O estamento traveste-se de democracia e de constitucional (mesmo que a Constituição seja mera letra aplicada conforme a conveniência do próprio sistema), ou seja, até a população mais instruída já incorporou esse modelo como o único permitido. Dessa forma, os objetivos de paz e justiça somente podem ser realizados dentro do sistema e através dele. Há viabilidade para tal tarefa porque um sistema tão conflituoso, após algum tempo, começa a exaurir as suas próprias defesas, tornando impraticável a convivência social, mesmo entre seus beneficiários. Nesse sentido, um elemento comum nos estágios de formação da personalidade brasileira (ou o que sobrou dela após a República) é a sua legitimação por meio do Direito. A redução dos conflitos que torne o sistema tolerável é desejada pelo próprio sistema, porque o mantém, não obstante possa reduzir o seu poder. O elemento comum, na redução dos conflitos, igualmente será o Direito. Os meios de resolução de conflitos chamados alternativos, com atuação dentro da lei e da Constituição, tendem a ser um caminho no ideal da paz e da justiça.
3 A responsabilidade do Estado no acesso à justiça
Como reflexo da sua formação histórica, especialmente a partir do século XX, o Brasil tornou-se um país bastante conflituoso. Isso se traduziu na profusão de ideias conflituosas no debate público. Ideias conflituosas, nesse contexto, são princípios ou ideologias que têm o conflito como motor da sua existência e perpetuação. É claro que o conflito sempre fez parte da sociedade (e da natureza humana), no entanto a formação histórico-política de um país pode exacerbar essa imperfeição típica dos agrupamentos sociais, como se verifica em nações cuja cultura da igualdade artificial impera, como a França e o Brasil. O Direito, não diferentemente, assume uma identidade conflituosa na formação de seus operadores. As estruturas e legislações são criadas ou modificadas para o conflito, de tal forma que não se sabe (há décadas) com resolver a crise do ensino do Direito, reproduzida na interpretação e aplicação das leis. Um ponto de partida, no âmbito jurídico, pode ser o uso de meios que atenuem um dos mais incômodos efeitos do estamento burocrático: a incapacidade de resolver os próprios conflitos.
O expediente contemporâneo utilizado para a resolução dos conflitos foi o monopolização da prestação jurisdicional, através do Poder Judiciário. Com o aumento do número de conflitos jurídicos, influenciado pela manutenção do estamento burocrático, o judiciário passou a não mais dar conta da demanda. Além disso, o terceiro neutro (juiz) passou a perder credibilidade na medida em que o judiciário configurou-se como poder político, emitindo decisões político-ideológicas para temas de relevância a toda a sociedade. A falta de credibilidade crescente do judiciário, apesar de facilmente observável por seus usuários, é tema que demandaria outro estudo, no entanto a sua incapacidade de atendimento à demanda de processos pode ser descrita em números.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, p. 54, 126, 164 e 209), o Índice de Atendimento à Demanda (IAD), que mede a relação entre o número de processos baixados e o número de novos ingressos, foi de 97,3% no ano de 2021, contribuindo para um aumento do estoque em 1,5 milhão de processos. Ao final do mesmo ano, acumulavam-se 77 milhões de processos no Poder Judiciário, sendo 53,3% na fase de execução. Nessas circunstâncias, o princípio constitucional da razoável duração do processo foi abandonado. O tempo médio de acervo dos processos no judiciário era de 4 anos e 7 meses em 2021. Nas varas federais, os processos de execução chegam a 7 anos e 5 meses de tempo médio entre a inicial e a sentença. Tudo isso ao custo da bagatela de 104 bilhões de reais anuais, sendo 95 bilhões somente para gastos com pessoal. Não bastassem esses números, há críticas sobre a qualidade das decisões, seja pelo não enfrentamento efetivo do litígio, seja pela ausência de fundamentação reconstruível nas decisões (segurança jurídica). Recentemente, as varas cíveis têm cometido outro erro: o encaminhamento compulsório do litígio para câmaras de conciliação. Talvez a intenção seja boa, mas não a técnica. Os litígios podem e devem ser resolvidos pelos próprios litigantes, mas não por imposição, por uma espécie de admoestação pela autoridade jurisdicional estatal. A responsabilidade do judiciário, nesse caso, é cumprir a sua função jurisdicional e, quando possível, criar meios de sugerir a resolução pelos próprios particulares, preferencialmente em ambiente fora da sua alçada de poder.
A mudança necessária, a partir do quadro descrito, não se dará somente no âmbito da legislação, mas na mentalidade dos operadores jurídicos, ao compreenderem que os mecanismos formais não mais atendem a demanda (SCHWANTES; SPENGLER, p. 16). O rito processual talvez esteja ultrapassado diante dos desafios atuais, em que a eficiência e a transparência são atributos exigidos no exercício de qualquer atividade humana. A tecnologia mudou a vida em sociedade e a prestação jurisdicional estatal, mesmo com pesados investimentos em informática, não comporta essa velocidade. Em verdade, o Direito não comporta esse misto de velocidade e transparência, tanto em função da estrutura do sistema jurídico, quanto pela complexidade dos temas em litígio. Uma decisão pode alterar completamente a vida de uma pessoa ou de uma família, logo não se pode correr o risco de as decisões serem ainda mais genéricas ou ineficientes que já são. No entanto, nada disso afasta a necessidade do processo judicial (SCHWANTES; SPENGLER, p. 17), e nem os meios alternativos de resolução de conflitos afastam a necessidade do judiciário, tanto que o conceito denominado “justiça multiportas” apresenta o judiciário como uma das portas possíveis, apenas não sendo mais a única. A sociedade não permitiria que a jurisdição coercitiva estatal fosse dispensada, visto que é um sistema que garante respeito, sanção nos casos de infrações (poder de imperium). A crise do Poder Judiciário é também a crise do Estado e do Direito. De fato, se o Estado de Direito se perdeu da realidade e da justiça, é consequência lógica que a prestação juridicional estatal não apresente resultado satisfatório.
Ainda sobre a mudança de mentalidade necessária acerca do papel do Estado, os meios alternativos de resolução de conflitos, especialmente os autocompositivos, como a mediação e a conciliação, podem, através da consensualidade e da percepção de justiça por seus usuários, contribuir para a redução dos litígios na sociedade e para desafogar o judiciário. O resultado pode, inclusive, ser a retomada da confiança no sistema jurídico e no judiciário (SPENGLER, p. 113-114). O Estado deve ser o garantidor do acesso à justiça, mas não deve conduzir o cidadão pela mão no sentido que o estamento burocrático entende como adequado (aos seus interesses). O Brasil teve uma formação conflituosa, criando uma estrutura que se move sobre a maior parte da população sem prover o bem básico da manutenção da paz. Pelo contrário, esse estamento hegemônico normaliza suas vontades e ideologias, oprimindo os diferentes e elevando o grau de conflito na sociedade. Esse volume de conflitos tornou-se tão insustentável que o próprio sistema busca corrigi-lo, antes que se pense na sua ruína. O papel do Estado, na perspectiva do estamento, é resolver esse problema sem autodestruir-se e, nesse intento, a justiça multiportas foi a melhor solução encontrada.
4 A responsabilidade da Administração Pública no direito à participação popular
Não menos importante é a responsabilidade da administração pública em um país consideravelmente conflituoso desde as suas origens. Não podem aqueles cujo sentido de existir é servir ao público meramente administrar quando o objeto administrado apresenta-se infestado de iniquidades, de vícios intrínsecos à sua formação histórica. A participação popular, tão evidente, por exemplo, na antiga democracia ateniense, quase foi extinta nos últimos 200 anos, em favor da burocracia, influenciada por períodos de intensas ideologias políticas. É lamentável reduzir-se a participação popular ao ato de votar, à “festa da democracia” em que poucos realmente celebram e muitos sofrem por mais quatro anos, independentemente do lado vencedor. Se na Grécia do período clássico a participação política era uma das mais relevantes matérias escolares, hoje o estamento hegemônico atua para evitar que a população tome conhecimento ou engaje-se nas atividades públicas.
A participação, explica Diogo de Figueiredo Moreira Neto (MOREIRA NETO, p. 18), “é uma forma ativa de integração de um indivíduo a um grupo”. Continua, o autor, esclarecendo que se trata de uma integração política e não somente antropológica, com a inserção dos indivíduos nos processos decisórios do Estado. A participação somente através do voto é uma ilusão criada pelo estamento burocrático, visto que os candidatos, com raras exceções, são escolhidos ou permitidos pelo próprio sistema, que, além disso, controla o funcionamento da eleição, do financiamento eleitoral à apuração (inauditável) dos votos. Há um afastamento cada vez maior da efetiva representação popular na existência do estamento (MOREIRA NETO, p. 19):
A própria hipertrofia do Estado e o surgimento de novos estamentos sociais estatais, como a burocracia e a tecnocracia, a primeira, marca do aparecimento do próprio Estado concentrador e, a segunda, do Estado interventivo e planejador, estão distanciando os indivíduos e os grupos sociais [...] das decisões que lhes dizem respeito.
Essa indisponibilidade do direito à participação popular na sociedade brasileira é mais clara na contemporânea democracia representativa (das elites). Por exemplo, a um cidadão comum é praticamente inviável o acesso ao deputado que ajudou a eleger. Em consequência, duzentos milhões de habitantes delegam a algumas centenas de políticos todas as decisões que regerão suas vidas, o que se vislumbra com similaridade nos níveis estadual e municipal. Uma ferramenta interessante é a chamada delegação atípica (MOREIRA NETO, p. 136). Não que sua aplicação seja plenamente viável, mas a sua concepção para fins de participação popular traz excelentes reflexões. A resolução de problemas pelos próprios particulares e não somente pelo aparato estatal é uma delas. Quando envolvidas na solução, as pessoas tendem a aceitá-la, possibilitando que a participação manifeste também seu caráter pedagógico de desenvolvimento de uma atitude politicamente positiva. Associações de moradores, clubes sociais e grupos de estudos são exemplos que podem render resultados participativos interessantes.
Não se trata da transferência da atividade estatal para os particulares, mas do reconhecimento da eficácia jurídica das suas decisões. E aqui entra a responsabilidade da administração pública em validar e mesmo estimular a participação popular nos processos decisórios. No sistema jurídico, especialmente na resolução de conflitos, os agentes públicos podem e devem estimular a participação popular na condução e solução das lides em que o Poder Público é parte, inclusive porque este é o maior demandante, quase monopolizando o judiciário (as execuções fiscais representam 35% do total de casos pendentes, sendo baixados apenas 10 em cada 100 processos que tramitaram no ano de 2021).
Cientes do alto índice de conflitos na sociedade brasileira, os servidores públicos devem propor procedimentos inovadores que desafoguem o judiciário, trazendo os litígios para solução por outros meios, como a mediação e a conciliação. Não se imagina que esse tipo de ação seja simples e imediata, mas que é possível no médio e longo prazo. Haverá barreiras resultantes da própria estrutura burocrática, de ideologias influentes no serviço público e mesmo do comodismo de alguns dos seus agentes.
O Código de Processo Civil (CPC) de 2015 trouxe essa possibilidade que cada vez mais tem sido colocada em prática. Nos artigos 165 a 175, a lei trouxe os conciliadores e mediadores como auxiliares da justiça. O artigo 174 estipula aos entes federados a criação de câmaras de mediação e conciliação para a solução consensual de conflitos no âmbito administrativo e o artigo 175 outourga permissão para o exercício da atividade também por profissionais independentes, tal qual ocorre em outros países, como Portugal. Esses procedimentos podem não se aplicar a todo e qualquer litígio, mas certamente são uma solução, uma porta a mais para o acesso à justiça (SCHWANTES; SPENGLER, p. 35):
O CPC também trouxe em sua cláusula geral a oportunidade de adoção de outros métodos de solução consensual, além da conciliação e da mediação, no entanto faz menção em seu art. 3º, § 3º que a mediação e a conciliação devem ser incentivadas [...]. A utilização da mediação e da conciliação para resolução dos conflitos poderá ser tanto judicial quanto extrajudicial, o art. 165 do CPC deu ênfase a forma judicial mencionando o conciliador e o mediador enquanto auxiliares da justiça, contudo, não excluiu ainda a possibilidade de as partes utilizar a forma extrajudicial ou até mesmo outras formas regulamentadas por lei específica (art. 175 do CPC).
A criação de câmaras de mediação e conciliação na estrutura da administração pública, com servidores designados para atuar nas atividades de resolução de conflitos envolvendo órgãos e entidades públicas, não é somente uma medida de redução do volume processual no judiciário, mas também uma forma de minimizar a litigiosidade estimulada pelo estamento burocrático. Mais eficiente ainda pode ser a criação de câmaras privadas de mediação e conciliação e a atuação de profissionais independentes, como o CPC incentiva. A partir do momento em que as pessoas passam a participar das decisões que influenciam suas vidas, começam a criar interesse pela participação política e começam a perceber que não são mera massa de manobra nas mãos de poucos; talvez o cidadão passe a reparar que se tem permitido a manipulação por estruturas que sobre si agem, como o estamento burocrático hegemônico.
A conclusão que se chega é que o direito à participação popular deve ser garantido na sociedade brasileira e encorajado pela administração pública. O estamento burocrático que se formou ao longo de mais de um século evita uma efetiva participação política, social e fraterna. A propaganda do estamento marginaliza a política (e por vezes elege criminosos), desestimulando a participação popular. Ou seja, não há missão fácil contra um estamento hegemônico, mas igualmente não cabe a desistência a quem busca prover justiça às pessoas e à comunidade. A criação, a validação e a estimulação de estruturas ligadas a órgãos públicos ou particulares para a resolução dos conflitos são responsabilidades dos agentes da administração pública conscientes, daqueles que compreenderam que administração pública é um mais que administrar a coisa pública, é prover participação, decisão e inclusão às pessoas.
5 Considerações finais
A mais precisa leitura da formação do Brasil, principalmente a partir da República, identifica a formação de uma estrutura que se sobrepõe a outras e à população, dirigindo o país de acordo com seus interesses, através do uso dos aparatos político, econômico, jurídico, cultural e midiático. Essa sobre-estrutura, denominada estamento burocrático, foi o resultado da formação sócio-política brasileira, notadamente visualizada pela contínua incorporação de instituições e grupos sociais, com o objetivo de preservar os privilégios das elites, que desde 1890 se revezam no exercício do poder político e, a partir da década de 1970 (ou antes), no controle do ambiente cultural. É, dessa forma, um estamento burocrático hegemônico, que exerce poder através da política, da economia e do Direito, tem defesa em uma máquina pública morosa e ineficaz e garante a eliminação das opiniões divergentes através da cultura e da mídia.
A consequência de interesse para este breve estudo trata do natural estímulo do conflito na sociedade em função da natureza conflituosa dessa formatação. O Brasil, assim como outros países, tornou-se uma nação propícia à proliferação de conflitos de toda espécie. Na esfera jurídica, o volume de litígios entope as vias judiciais, incapacitando o sistema na tarefa de resolução dos próprios problemas. Burocracia, ideologia e comodismo sequer conseguem ser enfrentados no ambiente de caos que se transformou o Poder Judiciário. Os números não mentem, por mais que se tente apresentá-los como palatáveis. A persistir esse ritmo, em alguns meses ter-se-ão 80 milhões de processos em estoque num judiciário que custa 100 bilhões de reais por ano. Já é entendimento comum que a prestação jurisdicional estatal não mais é capaz de atender a demanda de resolução de conflitos da sociedade brasileira, tomada por uma mentalidade litigiosa, em muito influenciada pelo estamento burocrático constituído na trêmula república tupiniquim.
O Estado tem a função, nesse contexto, de promover o acesso à justiça, validando as iniciativas da sociedade que visem resolver os conflitos pela consensualidade entre os particulares, respeitando as leis e a Constituição. O surgimento de legislações nesse sentido, como o Código de Processo Civil e a Lei da Mediação, ambos de 2015, passam a legitimar soluções jurídicas como a mediação e a conciliação. Os meios alternativos de resolução de conflitos não afastam a potencial prestação jurisdicional estatal, mas apenas apresentam-se como outras portas de acesso à justiça, mais céleres e econômicas. É, no mínimo, uma tentativa de assegurar a justiça como valor supremo da sociedade, tal como insculpido no preâmbulo da Carta Magna.
A administração pública tem papel essencial na operacionalização da participação popular, entendida como direito fundamental de uma nação que não deseja um governo autoritário. Os agentes públicos têm a responsabilidade de criar, estimular e validar iniciativas de participação popular, inclusive operativas fora da estrutura estatal, como elementos garantidores da integração do indivíduo aos processos decisórios do Estado. Com o avanço tecnológico, tais tarefas estão se viabilizando para aplicação em escala, através de mecanismos de consulta e de decisão popular e de outras soluções, como cita Pérez Luño, ao descrever o conceito de cibercidadania (PÉREZ LUÑO, p. 99). O deslocamento de parte dos litígios nos quais o Estado é interessado para procedimentos de mediação e conciliação com os particulares é ação plenamente possível e desejável para o incentivo da participação popular.
De um patrimonialismo histórico, cujas consequências vigoram por mais de um século sob uma estrutura consolidada na forma de um estamento burocrático, poderoso e hegemônico, à concretização do valor da justiça (acesso à justiça) e do direito à participação popular tem-se um longo caminho. O sistema dificulta tal caminhada, por vezes articuladamente e por outras pela burocracia intrínseca a suas estruturas. No entanto, o esgotamento da capacidade do judiciário para a solução da enorme demanda de litígios gerados pela sociedade brasileira, notadamente conflituosa, propicia o surgimento de soluções providas pelos particulares e juridicamente validadas pelo Estado. No âmbito jurídico, os meios alternativos de resolução de conflitos apresentam-se como a melhor solução encontrada para o momento, não afastando a prestação jurisdicional, por exemplo, na hipótese de ilegalidade. Especialmente os meios autocompositivos, como a mediação e a conciliação, encaixam-se inequivocamente nesse intuito, provendo acesso à justiça e incentivando a participação popular.
REFERÊNCIAS
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
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