Resumo
O presente artigo trata-se da análise da legalidade da avaliação psicológica continuada aplicada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) nos Cursos de Formação Policial de sua carreira. Inicialmente, é examinado o embasamento legal e o princípio da igualdade nos concursos públicos, evidenciando a falta de normativa específica que respalde a aplicação de exames psicológicos continuados na segunda fase do certame. Destaca-se, também, como essa prática seletiva pode gerar disparidades entre os candidatos, comprometendo a isonomia no processo seletivo. Em seguida, são explorados a validade e a confiabilidade dos testes que são aplicados e os impactos jurídicos e as implicações éticas decorrentes da imposição seletiva dos exames psicológicos. Por fim, o artigo destaca preocupações relacionadas à violação de direitos fundamentais dos candidatos e propõe a revisão dos métodos avaliativos de maneira a garantir a legalidade e o tratamento verdadeiramente justo, transparente e alinhado aos preceitos legais e constitucionais que regem a administração pública brasileira.
Palavras-chaves: Avaliação psicológica continuada; Legalidade; Polícia Rodoviária Federal.
Introdução
O processo seletivo para ingresso em instituições de segurança pública no Brasil, como a Polícia Rodoviária Federal (PRF), é composto por etapas rigorosas que visam selecionar os profissionais mais qualificados e aptos para exercerem suas funções com eficiência e responsabilidade. No entanto, questões concernentes à legalidade e a igualdade envolvendo a aplicação de exames psicológicos de natureza continuada, na segunda fase do Concurso Público para essa instituição, têm despertado debates e questionamentos relevantes.
Particularmente, a utilização desses exames psicológicos, que ocorrem de forma sequencial e periódica ao longo do certame, tem sido objeto de controvérsia, levantando questionamentos sobre sua conformidade com princípios constitucionais e legais. Neste contexto, este artigo propõe-se a examinar a questão da aplicação desses exames investigando sua legalidade à luz da legislação vigente e dos princípios que regem os concursos públicos no país.
Embasamento legal e Princípio da Igualdade nos Concursos Públicos.
O art. 37 da Constituição Federal reza no inciso II que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. Nesse mesmo contexto, a súmula vinculante 44 informa que somente por lei é possível sujeitar a exame psicotécnico a habilitação de candidato a cargo público. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do AI 758.533 QO-RG/MG, submetido ao juízo de repercussão geral, reafirmou sua jurisprudência, assentada na Súmula 686, no sentido de que “A exigência do exame psicotécnico em concurso público depende de previsão em lei e no edital, e deve seguir critérios objetivos” .
Cumpre destacar, ainda, que a previsão da aplicação de exame psicotécnico é compreensível para as carreiras policiais, já que o artigo 4º, inciso III, da Lei n. 10.826/2003 que disciplina o registro, posse e comercialização de armas exige a comprovação de aptidão psicológica para manuseio de arma de fogo. Nesse sentido e considerando o ordenamento jurídico brasileiro, observa-se que a aplicação de exames psicotécnicos em concursos públicos, a depender da natureza do cargo, é considerada legal e depende do preenchimento de alguns requisitos.
Analisando a aplicação desse exame especificamente no Concurso Público para a Carreira de Policial Rodoviário Federal (PRF), a Lei 9.654/98 que regulamenta a carreira do PRF determina em seu artigo 3o que “O ingresso nos cargos da carreira de que trata esta Lei dar-se-á mediante aprovação em concurso público, constituído de duas fases, ambas eliminatórias e classificatórias, sendo a primeira de exame psicotécnico e de provas e títulos e a segunda constituída de curso de formação. Assim, resta claro que a lei que regulamenta a carreira dessa atividade policial não prevê uma segunda aplicação do exame, determinando apenas que este seja realizado na sua primeira fase. Logo, a avaliação psicológica complementar, conforme consta de edital de certame para esse cargo público, é exigência contida em edital e viola a reserva legal exigível para a fixação dos requisitos de acesso a cargos públicos, previstos no art. 37, I, da Constituição Federal.
Para Hely Lopes Meirelles,
“O concurso público é o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da CF. (MEIRELLES , Helly Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 27a edição, p. 409).”
Nesse contexto, estabelecer em edital requisito não previsto em lei afronta de maneira direta o princípio da legalidade e contamina de insegurança jurídica o certame.
Ademais, para caracterizar a legalidade na aplicação de exames dessa natureza é pacífico o entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que a legalidade do exame psicotécnico está condicionada à observância de três pressupostos necessários: previsão legal, cientificidade e objetividade dos critérios adotados, e possibilidade de revisão do resultado obtido pelo candidato. Assim, a objetividade dos critérios é, portanto, indispensável à garantia de legalidade do teste. Dessa forma, os editais dos concursos devem conter, de forma clara e precisa, os critérios utilizados na avaliação.
O Edital no 1-PRF de 18 DE JANEIRO DE 2021, no item 12, determina que a avaliação psicológica consistirá na aplicação e na avaliação de instrumentos e técnicas psicológicas validados cientificamente, que permitam identificar a compatibilidade de características psicológicas do candidato com as atividades e atribuições típicas do cargo pleiteado, visando verificar:a) personalidade: controle emocional, empatia, liderança, tomada de decisão, dinamismo,comunicabilidade, planejamento, organização, relacionamento interpessoal, adaptabilidade, trabalho em equipe, persistência, prudência, objetividade, criatividade/inovação, urbanidade, comprometimento, autoconfiança, assertividade, proatividade; b) raciocínio: raciocínio espacial, raciocínio lógico, raciocínio verbal; c) habilidades específicas: atenção concentrada/sustentada, atenção dividida/difusa, memória visual.
Com o objetivo de esclarecer a falta de clareza no edital para esse certame, é preciso demonstrar, a título de exemplo, como deveriam ser divulgados os critérios objetivos para subsidiar a avaliação psicológica, diferentemente do que ocorreu no certame da PRF/2021:
Os dados foram retirados do EDITAL Nº 001/2019 – PCES para o cargo de Delegado de Polícia do Espírito Santo. O edital expressamente divulgou aos candidatos os critérios que seriam analisados na avaliação psicológica, inclusive com os respectivos percentis a serem alcançados. A avaliação psicológica no bojo da PRF/2021, diferentemente, previu genericamente as áreas de Personalidade, Raciocínio e Habilidades Específicas. Dessa maneira, a ausência de divulgação de critérios minimamente objetivos confere a aplicação desse exame muita subjetividade.
Diante do exposto, é evidente que o edital não esclareceu de forma clara e objetiva os critérios dessa avaliação, já que critérios como “personalidade”, “raciocínio” e “ habilidades específicas” são extremamente amplos e abstratos, de modo que o candidato fica em evidente desconhecimento acerca dos critérios objetivos para a realização da prova psicológica. Diferente do que ocorre com o exame de aptidão física, que detalha de forma precisa e eficaz os testes que serão realizados e o que cada teste objetiva aferir. Além disso, os testes de aptidão física são aplicados a todos os candidatos.Dessa forma, torna-se evidente que mais um requisito para que haja legalidade não é cumprido na aplicação desses testes , já que não há clareza e precisão dos critérios que serão avaliados.
O edital do último concurso para essa carreira regulamenta, ainda, no item 19.2.1, que somente será admitida a matrícula no Curso de Formação Policial (CFP) dos candidatos que tiverem idade mínima de 18 anos completos e estiverem capacitados física e mentalmente para o exercício das atividades e atribuições típicas. Desse modo, sugere-se que, de acordo com o edital do concurso da própria corporação , o candidato que se matricula no curso de formação já teria tido suas capacidades físicas e mentais avaliadas e ratificadas, já que o candidato já passou por testes de avaliação médica, física e mental, antes de sua matrícula no CFP.
Importa mencionar, ainda, que esse mesmo edital de concurso também menciona no item 1.2 do anexo IV,
"(...) que a avaliação psicológica será realizada com base no estudo científico das atribuições e das responsabilidades do cargo de policial rodoviário federal, que engloba, entre outras informações, os requisitos psicológicos necessários e restritivos ou impeditivos ao desempenho das atividades inerentes ao cargo”.
Cabe esclarecer que esse estudo científico não é disponibilizado pela instituição e que os requisitos psicológicos exigidos para o exercício da carreira também não são mencionados. De modo que fica evidente que o candidato fica sujeito a participar de um parâmetro de avaliação baseado em um estudo científico não publicado e considerando requisitos psicológicos também não mencionados em edital.
Necessário se faz ressaltar, que o candidato já foi aprovado na avaliação psicológica na primeira fase do concurso, e o teste de avaliação psicológica complementar, realizado dentro do curso de formação, não é realizado indistintamente a todos os candidatos. Apenas uma parte dos candidatos, indicados pela Administração, são convocados para a participação nesse exame. Dessa forma, não é possível à Administração Pública avaliar tão somente o comportamento pontual de determinados candidatos durante o curso de formação. É preciso assegurar, a um só tempo, a isonomia, que deve pautar as avaliações durante o certame, e a efetividade do princípio da impessoalidade, de acordo com o art. 37, caput, da Constituição. Nesse contexto, cabe citar Maria Sylvia Di Pietro,
“(...) a finalidade pública deve nortear toda atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento” (DI PIETRO, 2010, p. 67)".
Impactos jurídicos e implicações éticas
Os exames de avaliação psicológica continuada, aplicado dentro dos cursos de formação da PRF são aplicados de forma seletiva, ou seja, não são aplicados a todos os candidatos. Da primeira turma do Curso de Formação dessa Carreira, do concurso realizado em 2021, de uma turma com mais de 1.500 alunos, apenas 29 foram submetidos a um novo psicotécnico, o que demonstra a ausência de critérios objetivos e previsíveis para essa segunda aplicação.
Com o objetivo de corrigir a ilegalidade praticada pela falta de lei prevendo a realização do exame na segunda fase e a completa falta de isonomia e transparência na escolha dos candidatos para a participação neste, candidatos reprovados têm recorrido ao Poder Judiciário com o fim de reverter a situação. Desse modo, a falta de regulamentação específica e o tratamento desigual com o qual são tratados alguns candidatos têm oportunizado o surgimento de muitas demandas judiciais, sobrecarregando o Poder Judiciário e implicando em despesas processuais para o candidato e para a própria União.
Além disso, e não menos importante, urge elucidar as implicações éticas que estão relacionadas à aplicação de exames nesses termos. A subjetividade e a falta de clareza na maneira como esses testes são aplicados provocam nos candidatos ansiedade e frustração, o que já são fatores, que por si sós, podem ser impactantes para a sua reprovação. Outro ponto de natureza questionável, é que o teste é aplicado em um final de semana, depois do candidato passar a semana inteira submetido a condições de estresse e cansaço, típicos de cursos de formação dessa natureza. Além disso, é natural que, durante o curso de formação, pressões psicológicas associadas à distância e à falta de convívio com os entes queridos, bem como o exercício de provas e avaliações, deixem o candidato mais propenso a sensações de cansaço e esgotamento mental. Submeter apenas alguns candidatos sob esse nível de estresse a testes sem clareza e transparência é, além de ilegal, um ato contra a dignidade da pessoa humana e princípios éticos pertinentes.
O Tribunal Regional Federal da 5ª região já se manifestou sobre o tema no seguinte sentido:
EMENTA APELAÇÃO. CONCURSO PÚBLICO. POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL. ELIMINAÇÃO EM AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA COMPLEMENTAR, REALIZADA APÓS O CURSO DE FORMAÇÃO. LEGALIDADE E IGUALDADE. VIOLAÇÃO. PROVIMENTO. I - Numa leitura ao art. 3º, caput, da Lei 9.654/98,ainda que rápida, percebe-se que o legislador, esbanjando objetividade, dispôs que o concurso para a carreira será realizado em duas fases, ambas eliminatórias e classificatórias, sendo a primeira de exame psicotécnico e de prova de títulos, e a segunda, de curso de formação. II - Aprovada no exame psicotécnico, cuja realização é anterior à do curso de formação, a autora foi submetida, novamente, ao término do curso de formação, a um segundo exame psicológico, ao qual denomina a Administração de avaliação psicológica complementar. Tal postura, por não se compreender no âmbito delineado pelo art. 3º, caput, da Lei 9.654/98, viola a reserva legal exigível para a fixação dos requisitos de acesso aos cargos públicos (art. 37, I, CF). III - Da mesma forma, a submissão a tal exame (avaliação psicológica complementar), a qual não é realizada indistintamente a todos os candidatos classificados para o curso de formação, mas a uma parte deles, indicados pela Administração, quebranta a igualdade que deve permear nos certames públicos de seleção de pessoal e, quiçá, a impessoalidade. IV - Apelo provido. Pedido julgado procedente. (PROCESSO: 08241449120194058300, APELAÇÃO CÍVEL, DESEMBARGADOR FEDERAL EDILSON PEREIRA NOBRE JUNIOR, 4TURMA, JULGAMENTO: 01/02/2021).
Diante do exposto, resta claro que alguns órgãos do Poder Judiciário já se manifestaram no sentido da ilegalidade e da falta de isonomia na forma de aplicação do teste de avaliação continuada. A forma que os testes são aplicados atulamente dão margem a subjetividade e podem reproduzir estereótipos ou preconceitos sociais, gerar estigmatização de determinados grupos sociais, contribuindo para a exclusão injusta de candidatos com base em características subjetivas e não relacionadas à capacidade para o cargo.
4- Conclusão
O debate em torno da ilegalidade da aplicação de exames psicológicos de natureza continuada na segunda fase do concurso da Polícia Rodoviária Federal revela lacunas significativas no processo seletivo e levanta sérias questões relacionadas à justiça e à equidade no acesso aos cargos públicos. O embasamento legal insuficiente para respaldar essa prática e a clara afronta ao princípio da igualdade, uma vez que não são todos os candidatos que são submetidos a essa avaliação adicional, destacam a necessidade premente de revisão e readequação dos procedimentos de seleção adotados.
A constatação de que a imposição desses exames psicológicos sequenciais carece de respaldo normativo robusto e desconsidera a isonomia entre os concorrentes reforça a urgência de reformulações nos critérios de avaliação utilizados nos concursos públicos. A transparência, a objetividade e o respeito aos princípios constitucionais devem ser as bases para a construção de um processo seletivo justo e íntegro, garantindo oportunidades iguais a todos os participantes.
Assim, diante das evidências apresentadas ao longo deste estudo, é imperativo que as autoridades responsáveis pela elaboração e execução dos concursos públicos, em especial da Polícia Rodoviária Federal, revejam as práticas de avaliação durante as fases de seus concursos. É fundamental buscar alternativas que assegurem a legalidade, a equidade e a eficácia do processo seletivo, sem comprometer a integridade e a imparcialidade no acesso aos cargos públicos.
Referências Bibliográficas
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