Conversa de bar: A patrimonialização da boêmia

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A busca pela patrimonialização de bens culturais está em ascensão. E há cada vez mais espaços de domínio privado que se transformam em espaços de sociabilidade, por meio da arte, cultura e entretenimento, que buscam assegurar a continuidade das suas atividades nos respectivos espaços por meio do processo de patrimonialização. O caso mais recente é o do bar Ó do Borogodó localizado em Pinheiros, região Oeste de São Paulo, que funciona num imóvel alugado, cujos proprietários não desejam renovar o contrato locatício.

A estratégia adotada pelo Ó do Borogodó foi a busca pelo seu reconhecimento como bem cultural [1] junto ao Conselho Municipal de Patrimônio Cultural para que ele fosse considerado inserido numa Zona Especial de Preservação Cultural – Zepec, que, de acordo com o Plano Diretor do município de São Paulo [2], “são porções do território destinadas à preservação, valorização e salvaguarda dos bens de valor histórico, artístico, arquitetônico, arqueológico e paisagístico”, estando o mesmo inserido na Área de Proteção Cultural – APC destinada a imóveis de produção e fruição cultural.

A patrimonializacão de espaços privados que exploram atividades econômicas como bares, e que se tornam lugares de sociabilidade, não é uma novidade. No Amazonas, a Lei Estadual nº 4.199, de 2015, declara como Patrimônio Cultural Imaterial tradicionais bares da cidade de Manaus que possuem mais de meio século de funcionamento. Trata-se do Bar Caldeira, do Bar Jangadeiro e do Bar do Armando, cada um deles com a suas respectivas histórias e tradições, e os desafios da condução dos seus empreendimentos.

O patrimônio cultural apresenta um rol exemplificativo de instrumentos jurídicos destinados à sua proteção e promoção, sendo os mais comuns o tombamento e o registro. Aquele, em regra, destina-se para a proteção dos bens didaticamente designados como materiais, e este, por sua vez, para a proteção e promoção dos chamados bens imateriais. No plano internacional, duas Convenções da Unesco, uma para cada dimensão do patrimônio cultural, apresentam de forma exemplificativa o que pode ser considerado patrimônio cultural material e imaterial.

Como patrimônio cultural material a Convenção de 1972 da Unesco [3] considera:

- os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência,

- os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, por sua arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência,

- os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.

Já em relação ao patrimônio cultural imaterial, a Convenção de 2003 [4] da Unesco o define como sendo:

[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável.

A Constituição brasileira de 1988 enfatiza na sua definição de patrimônio cultural, que se aplica às dimensões material e imaterial, a referencialidade que demanda a compreensão da ressignificação que os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira exercem sobre os bens culturais na construção dos respectivos sistemas representativos e de valores.

Os tradicionais bares Caldeira, Jangadeiro, Armando e o Ó do Borogodó com os seus reconhecimentos formais como patrimônio cultural, ou no caso deste último, a sua busca por referido reconhecimento, estão colocando novos desafios para os tradicionais instrumentos de proteção e promoção do patrimônio cultural (tombamento e registro), pois como espaços de sociabilidade e fruição cultural aproximam-se da dimensão imaterial do patrimônio e, portanto, ligados ao instrumento do registro. Mas, quando almejam permanecer nos espaços privados que ocupam, condicionando a propriedade privada e o seu proprietário a observarem referido uso cultural estão reivindicando efeitos jurídicos que se aproximam daqueles ofertados pelo tombamento.

O fato é que não se tem clareza acerca dos efeitos jurídicos decorrentes da patrimonialização desses bares tradicionais, pois o registro como patrimônio cultural imaterial visa promover uma dada manifestação cultural para que ela seja transmitida de geração em geração e, a priori, não interfere no direito de propriedade. O tombamento, por sua vez, interfere na propriedade, mas, especialmente, para preservar a estrutura física da edificação e do conjunto arquitetônico, não para determinar um uso específico do bem. E para completar este caldeirão de complexidades, os tradicionais bares são empreendimentos econômicos cuja continuidade desta atividade pauta-se pela livre iniciativa e sujeita-se aos riscos inerentes a tal atividade.

Desta feita, é necessária uma reflexão sobre os efeitos jurídicos da patrimonialização dos bens culturais conforme cada instrumento disponível no ordenamento jurídico e, principalmente, enfrentar as questões que envolvem a propriedade privada, pois cada vez mais espaços privados de fruição cultural e que são coletivamente apropriados pelo uso estão sucumbindo às dinâmicas da especulação imobiliária.

Allan Carlos Moreira Magalhães, Doutor e Pós-doutor em Direito (UNIFOR), professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo” (Editora Dialética)

Notas

[1] GUIA FOLHA. Conselho municipal avalia se bar Ó do Borogodó é patrimônio cultural de SP. Disponível em: < https://guia.folha.uol.com.br/bares-e-noite/2023/11/conselho-municipal-avalia-se-bar-o-do-borogodo-e-patrimonio-cultural-de-sp.shtml>. Acesso em 17 nov. 2023.

[2] SÃO PAULO. Lei Municipal n. 16.050, de 2014. Aprova a política de desenvolvimento urbano e o plano diretor estratégico. Disponível em: < https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=273198 >. Acesso em 10 out. 2023

[3] UNESCO. Convenção para a salvaguarda do patrimônio mundial, cultural e natural. 1972. Disponível em: <https://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>. Acesso em: 10 out. 2023.

[4] UNESCO. Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. 2003. Disponível em: < https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000132540_por >. Acesso em 10 out. 2023.

Sobre o autor
Allan Carlos Moreira Magalhães

Doutor e Pós-doutor em Direito (UNIFOR), professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo” (Dialética-SP)

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