“A capacidade do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça torna a democracia necessária.”
- Reinhold Neibuhr
RESUMO
SILVA, Cairo M. O. O instituto da usucapião no que concerne à sua aplicação sobre bens públicos dominicais. 48 fls. Monografia (Graduação em Direito) – Instituto Superior do Litoral do Paraná, Paranaguá, 2020.
É certo que o Estado possui inúmeros imóveis de sua titularidade, sendo certo, também, que o Brasil é um país que sofre demasiadamente com a expansão urbana desordenada e com respectiva alocação dessas pessoas em locais precários e inadequados. A República Federativa do Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito, possui um dever constitucional de garantir inúmeros direitos ao povo, sendo que dentre tais direitos, encontra-se o direito à propriedade e o direito à moradia. Ao mesmo tempo, o Estado prevê instrumentos para a concretização de tais direitos, como por exemplo o instituto da usucapião que, resumidamente, consubstancia-se como sendo um instituto que confere ao possuidor o título da propriedade por meio do exercício da posse prolongada no tempo somado ao preenchimento de mais requisitos. Contudo, certa discussão se originou quando se buscou o reconhecimento da usucapião sobre determinados bens, sendo estes os bens públicos, em especial, os dominicais. Isso pois por força da vedação legal existente no Código Civil e também na Constituição Federal de 1988, a usucapião sobre bens públicos é vedada, inclusive, consoante entendimento do STF sedimentado na sumula n° 340, sobre bens públicos dominicais. Assim, este trabalho buscou compreender todos os institutos e instrumentos que circundam tais questões, de modo a melhor expor os fundamentos para ambas as perspectivas, valendo-se, para tanto, de doutrinas, jurisprudências e de previsões legais e constitucionais, esmiuçando-se os conceitos abordados.
Palavras-chave: usucapião, direito à propriedade, direito à moradia; Estado de Direito; bens públicos dominicais.
Sumário
introdução
2. CAPITULO 01
1.1 – Contextualização histórica da posse e da propriedade e o surgimento do instituto da usucapião
1.2 – Especificidades e modalidades do instituto da usucapião
1.2.1 – Usucapião Extraordinário
1.2.2 – Usucapião Ordinário
1.2.3 – Usucapião Especial Urbana
1.2.4 – Usucapião Especial Rural
1.2.5 – Usucapião Familiar
1.2.6 – Usucapião Coletiva
3. CAPITULO 02
2.1 – A submissão do Poder Público ao Estado Democrático de Direito e os princípios e garantias constitucionais
2.2 – Construção histórica e características especiais dos bens públicos e os instrumentos que o estado tem à sua disposição para a obtenção de propriedade e a concessão de uso especial para fins de moradia
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
5. BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
A presente monografia analisou o surgimento dos institutos da posse e propriedade, atrelando-se tais conceitos com o advento do instituto da usucapião, bem como buscou tratar acerca das modalidades e peculiaridades atinentes aos bens públicos. Por meio de tais analises, buscou-se evidenciar os aspectos jurídicos relevantes atinentes a cada um dos institutos tratados, de modo a viabilizar uma análise precisa acerca da aplicação do instituto da usucapião sobre os bens públicos dominicais.
O primeiro capítulo aborda especificamente acerca da contextualização histórica da posse, da propriedade e do instituto da usucapião, e também das especificidades e modalidades existentes de usucapião, utilizando-se para tanto de doutrinas e jurisprudências.
O segundo capítulo dispõe acerca da submissão do Poder Público ao Estado de Direito, bem como tratou de maneira pontual acerca dos bens públicos, suas modalidades e características e, também, dos direitos e garantias individuais, buscando, por fim, demonstrar com base no ordenamento jurídico, na doutrina e na jurisprudência, o conflito que circunda a aplicação do instituto da usucapião aos bens públicos dominicais.
Para a elaboração deste trabalho, como já dito, buscou-se fundamentos doutrinários e jurisprudenciais, bem como fundamentos legais em no vigente ordenamento jurídico, precipuamente na Constituição Federal de 1988.
O tema debatido no desenvolver desta monografia se reveste de questões atuais e relevantes. Isso pois o Estado possui a titularidade de muitas propriedades e, concomitantemente a isso, sabe-se que o crescimento desenfreado da população apenas implicará em maiores situações como a debatida no cerne deste trabalho.
CAPÍTULO 01
É certo que, antes de se adentrar às minucias que circundam a cerne do presente trabalho de conclusão de curso, imperioso se analisar o contexto histórico que ensejaram o surgimento dos institutos que permitem o debate do tema.
Há muito se discute acerca do surgimento dos institutos em questão. A despeito de serem temas que se relacionam diretamente, é certo que possuem, em suas essências, grandes distinções.
1.1 – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA POSSE E DA PROPRIEDADE E O SURGIMENTO DO INSTITUTO DA USUCAPIÃO
Os institutos posse e propriedade sempre marcaram presença no meio social, há muito se tornaram temas de discussão entre os povos. Tais institutos, inclusive, de acordo com alguns importantes sociólogos clássicos como John Locke, contribuíram largamente à constituição – leia-se estruturação – da sociedade e, principalmente, do Estado.
Buscando não fugir da cerne tratada no presente trabalho de conclusão de curso, há que se abordar sintética e resumidamente o ideal de John Locke, o qual contemplou o surgimento de um estado civil, onde a sociedade civil surgiria quando o indivíduo necessitasse de uma autoridade para regulamentar as relações de convívio geral. Para tanto, tal Estado deveria impor leis, cujo o descumprimento acarretaria em sanções e penas ao descumpridor e também investir autoridades responsáveis pela manutenção da ordem e execução das penas, carregando como objetivo precípuo de tais medidas, a conservação da propriedade privada.
Em outras palavras e resumindo ainda mais, John Locke coloca a propriedade como sendo um direito natural, isto é, inerente à própria natureza humana, inclusive, segundo MELLO, Leonal Itaussu Almeida, acerca da concepção de Locke:
cada homem tem uma ‘propriedade’ em sua própria ‘pessoa’; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. Podemos dizer que o ‘trabalho’ do seu corpo e a ‘obra’ das suas mãos são propriamente seus. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. (MELLO, 2006, p. 94).
Dessa maneira, pode-se perceber indícios da influência dos direitos relacionados neste trabalho desde a época de estudiosos clássicos. Ao longo do tempo, inúmeras foram as teses desenvolvidas no intuito de melhor esclarecer a relação havida entre o homem e suas propriedades. Para o presente trabalho, há que se abordar inicialmente, para tanto, há que se observar os conceitos clássicos estruturados por Friedrich Calr Von Savigny e Rudolf von Ihering.
No ano de 1804, Friedrich Carl Von Savigny trouxe à tona, o que hoje se entende como teoria subjetiva da posse, em sua concepção, 2 (dois) elementos indispensáveis e inseparáveis são necessários para se conceituar a posse, a saber, o elemento corpus e o elemento animus, os quais se manifestam como essências de um legítimo possuidor. Nesse sentido leciona Caio Mário (2017, p. 35):
Para Savigny, o corpus ou elemento material da posse, caracteriza-se como a faculdade real e imediata de dispor fisicamente da coisa, e de defende-la das agressões de quem quer que seja; o corpus não é a coisa em si, mas o poder físico da pessoa sobre a coisa; o fato exterior, em oposição ao fato interior.
(...)
Para Savigny, adquire-se a posse quando ao elemento material (corpus = poder físico sobre a coisa) se adita o elemento intelectual (animus = intenção de tê-la como sua). Reversamente: não se adquire a posse somente pela apreensão física, nem somente com a intenção de dono: Adipiscimur possessionem corpore et animo; nec per se corpore nec per se animo. Destarte, quem tem a coisa em seu poder, mas em nome de outrem, não lhe tem a posse civil; é apenas detentor, tem a sua detenção (que ele chama de posse natural – naturalis possessio), despida de efeitos jurídicos, e não protegida pelas ações possessórias ou interditos.
Para a concepção em questão o elemento corpus se refere ao poder físico do indivíduo para com a coisa – objeto/bem -, isto é, seu contato físico/material, consubstanciando-se no próprio ato de ter o bem em suas mãos e ter a faculdade de usufruir do mesmo. De seu turno, o elemento animus, refere-se para a própria vontade interna e subjetiva de ser dono, ou seja, o desejo do sujeito de ter a coisa sobre a sua posse.
Diferentemente de Friedrich Carl Von Savigny, Rudolf von Ihering, trouxe à baila a teoria objetiva da posse, cuja possuía também 2 (dois) elementos, affectio tenendi e corpus. Para Rudolf von Ihering, o elemento da affectio tenendi refletia o ideal de exteriorização dos direitos inerentes a posse como gozar, reaver, usar e dispor de seu bem. O elemento corpus, por sua vez, consubstancia-se como sendo a demonstração e visibilidade que o indivíduo tem sobre o bem como sendo proprietário do mesmo.
De maneira panorâmica, observa-se que ambas as teorias contribuíram, de certo modo, para a teoria atualmente adotada no ordenamento jurídico vigente, sendo que tal fato apenas robustece a essencialidade das teorias clássicas para a atual definição. Ainda, mostra-se importante mencionar que para Rudolf von Ihering, a posse não se desvincula da propriedade, sendo meramente um dos institutos provenientes da propriedade.
Assim, feito os apontamentos acerca das teorias clássicas que se tornam essencial para a cerne deste trabalho, faz-se mister tecer algumas pontuações acerca da natureza jurídica da posse e da propriedade e, por via de consequência de sua intrínseca relação com os direitos reais e o que se entende atualmente por tal modalidade de direitos.
De acordo com o contido no inciso I, do art. 1.225 da Lei n° 10.406 de 2002 - Código Civil (“CC”), a propriedade é tida como um direito real, conforme:
Art. 1.225. São direitos reais:
I – a propriedade;
A despeito de não haver no roll do art. 1.225 do diploma legal supramencionado a posse enquanto um direito real, para Maria Helena Diniz, deve ser considerada um direito real porquanto, ao seu entender, trata-se de um desdobramento do direito de propriedade e, assim, estaria abarcada pelo dispositivo legal mencionado – sendo que tal ideal ainda remeteria à ideia de submissão da posse à propriedade. Por sua vez, Flávio Tartuce, entende que se trata de um direito de natureza especial, isto é, um direito de natureza sui generis. (TARTUCE, Flávio. 2017, p. 57).
Acerca dos direitos reais, de uma maneira simplificada, bem leciona TARTUCE, Flávio:
pode-se afirmar que o Direito das Coisas é o ramo do Direito Civil que tem como conteúdo relações jurídicas estabelecidas entre pessoas e coisas determinadas, ou mesmo determináveis. (TARTUCE, 2017, p. 16).
Assim, entendendo que os direitos reais se consubstanciam como sendo os direitos que regem as relações do indivíduo com as coisas – lendo-se coisas como certos bens -, esculpiu-se no caput e incisos seguintes, do art. 1.225 do CC, o seguinte:
Art. 1.225. São direitos reais:
I - a propriedade;
II - a superfície;
III - as servidões;
IV - o usufruto;
V - o uso;
VI - a habitação;
VII - o direito do promitente comprador do imóvel;
VIII - o penhor;
IX - a hipoteca;
X - a anticrese.
XI - a concessão de uso especial para fins de moradia;
XII - a concessão de direito real de uso; e
XIII - a laje.
Acerca do roll de direitos reais elencados no dispositivo legal supra transcrito, sabe-se que houve certo dissenso doutrinário acerca da natureza do roll em questão, isso é, se seria taxativo – limitado às previsões legais - ou exemplificativo – permitindo ampliações a depender de cada situação. Ademais, sabe-se também que os direitos reais são distintos das demais modalidades de direitos por possuírem características únicas.
No tocante às características dos direitos reais, faz-se mister transcrever as palavras de Paulo Náder (2016, p. 42 e 43), respectivamente, acerca das seguintes características: tipicidade; oponibilidade erga omnes; sequela; publicidade; preferência e elasticidade:
Para que um direito se qualifique como real, é indispensável que figure no elenco legal dos direitos reais. (...) . Entendo ainda que estes podem emergir, mais amplamente, da ordem jurídica como um todo, desde que se dê à determinada categoria o tratamento específico dos direitos reais. (Tipicidade)
Os direitos reais apresentam caráter absoluto, erga omnes, pois valem contra todas as pessoas. (Oponibilidade erga omnes)
A sequela é o poder de que se acha investido o titular do direito real de o fazer prevalecer em todos os lugares. Seu direito é contra todos (ubi res mea invenio, ibi vindico). (Sequela)
Como nos direitos reais a coletividade participa do polo passivo da relação, cabendo-lhe o dever negativo, natural que o conhecimento da existência e titularidade daquele direito lhe seja acessível. Tratando-se de coisa imóvel, a regra geral é que o direito se adquire mediante registro em Cartório de Registro de Imóveis. A qualquer pessoa, portanto, é dado saber a identidade do titular de um direito real imobiliário, bem como se inteirar da existência de qualquer ônus real sobre a coisa imóvel. Relativamente aos móveis, a aquisição se opera com a tradição, mas em favor do possuidor existe a presunção juris tantum de domínio. (Publicidade)
Pertinente aos direitos reais de garantia, a preferência consiste na prioridade que desfruta o titular em relação aos credores simples ou quirografários, para o recebimento de seu crédito com os recursos gerados pela coisa gravada. (Preferência)
O direito real de propriedade contém elasticidade, pois comporta o desmembramento dos poderes que lhe são inerentes. (Elasticidade). (NADER, 2016, p. 42 e 43).
Assim, devidamente demonstrada a natureza jurídica de direito real dos institutos propriedade e posse, bem como as características específicas e únicas de tal modalidade de direito, há que se tecer alguns comentários prévios no tocante à teoria atualmente adotada em nosso ordenamento jurídico, uma vez que será um ponto essencial à devida compreensão deste trabalho.
Considerando as teorias clássicas mencionadas (teoria subjetiva e objetiva da posse), torna-se imprescindível transcrever o disposto no caput do art. 1.196 do CC “Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Partindo de uma mera análise literal do artigo em questão, constata-se que a teoria trazida por Rudolf von Ihering foi adotada pelo ordenamento jurídico para a definição de posse.
Posteriormente, esmiuçando-se para o ordenamento jurídico, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (“CRFB/88), reforçou-se o que se compreende hoje por teoria sociológica da posse ou teoria material dos direitos fundamentais. A teoria em comento trouxe o ideal de insubordinação da posse à propriedade, isto é, foi de encontro ao que Rudolf von Ihering defendia, cujo, como já dito, contemplava a posse como um instituto derivativo da propriedade. A partir da concepção trazida pela teoria sociológica da posse, emergiu de maneira impetuosa a posse enquanto instituto autônomo e independente da propriedade, podendo, inclusive, ser oposta à própria propriedade.
Conquanto as pontuações até então realizadas, não se pode olvidar para o fato de o Código Civil em seu art. 1.196, caput, ter adotado a teoria concebida por Ihering, muito embora, quando da promulgação do Código Civil já houvesse traços fortes e incisivos concernentes à teoria sociológica da posse. Sabe-se que a teoria sociológica só não foi melhor aproveitada e esculpida dentre os artigos do Código Civil por opção do próprio legislador, uma vez que teoria sociológica da posse se encontra amparada pelos princípios basilares da CRFB/88. Coerente se dizer que, atualmente, embora a adoção da teoria de Ihering pelo Código Civil, a aplicação efetiva da legislação se sujeita a um crivo constitucional, momento pelo qual a concepção de Ihering é modulada de modo a se enquadrar dentro de um filtro constitucional, primando-se pela concretização dos preceitos basilares da CRFB/88.
Desta maneira, devidamente abordada de maneira per saltum a historicidade dos institutos que circundam a matéria principal deste trabalho, há que se proceder doravante acerca do instituto da usucapião. O instituto da usucapião tem seu surgimento intrinsecamente atrelado ao Direito Romano, podendo-se perceber suas origens na Lei das Doze Tábuas. A palavra usucapião deriva do latim usucapio, de usucacapere (usucapir), sendo que tal expressão exprime o modo de adquirir pelo uso ou adquirir pela prescrição. O instituto em questão também é conhecido pelo termo prescrição aquisitiva.
Para ZACARIAS, André Eduardo de Carvalho:
A usucapião é o modo de aquisição da propriedade e de outros direitos reais, pela posse prolongada da coisa com a observância dos requisitos legais. Ou ainda segundo Clóvis Beviláqua é a: ‘aquisição do domínio pela posse continuada’.
Desta maneira, há que se aprofundar nas especificidades e modalidades existentes do instituto em comento.
1.2 – ESPECIFICIDADES E MODALIDADES DO INSTITUTO DA USUCAPIÃO
Inicialmente, há que se destacar que a usucapião se trata de uma forma de aquisição originária de direitos reais, conforme dito por ZACARIAS, André Eduardo de Carvalho:
Usucapião é forma originária de aquisição de propriedade que se opera mediante o exercício da posse mansa e pacífica sobre determinado bem, por prazo definido na lei
De maneira simplificada, as formas de aquisição se dividem em originária e derivada. Como a própria nomenclatura já induz, a forma originária de aquisição se refere àquela primeira relação formada, isto é, é uma forma de aquisição em que não há a relação jurídica de transmissão do titular anterior ao novo, portanto, uma forma desvinculada. Além da usucapião, tem-se também como forma de aquisição originária a acessão natural, a qual nada mais é do que o instituto amparado pelo art. 1.248 e 1.249 e seguintes do CC.
Por sua vez, logicamente, a forma de aquisição derivada se refere àquelas aquisições em que há uma relação vinculada, isto é, uma relação jurídica de transmissão entre o atual titular com o antecessor, cujo teria lhe transferido a propriedade.
É possível perceber que a usucapião possui a destinação precípua de solucionar conflitos com relação à propriedade e a ausência de título pelo possuidor. Desde à época da Lei das XII Tábuas inúmeras leis se sucederam buscando restringir e regulamentar o campo de aplicação da usucapião.
Devidamente delineada tais pontuações, há que se observar algumas especificidades do instituto da usucapião, bem como as modalidades existentes de tal instituto.
Como tratado anteriormente, a usucapião nada mais é que um instituto jurídico que tem por objetivo a aquisição da propriedade de maneira originária pois independente de qualquer relação jurídica de transmissão da propriedade. É certo que tal instituto se subdivide em inúmeras modalidades que possuem requisitos comuns que, a depender da modalidade podem sofrer alterações, e também de requisitos específicos e precisos de cada uma das modalidades existentes.
Importante observar os requisitos comuns exigidos em todas as modalidades de usucapião, a saber, o exercício da posse, sem interrupção e nem oposição, possuindo-o como se dono fosse. Atendo-se para a posse, há que se esclarecer que nem todas as modalidades de posse permitem a aquisição da propriedade por meio da usucapião. Explica-se.
Sabe-se que a posse pode ser dividida em duas classificações, sendo estas, a posse ad interdicta e a posse ad usucapionem. A posse ad interdicta se refere para a modalidade de posse que permite que o possuidor que a exerce fazer o uso dos mecanismos de defesa para resguardar o exercício da posse, isto, faz com que o possuidor tenha poderes para recorrer, se necessário, às tutelas possessórias, todavia, o exercício de tal modalidade de posse não se encontra dotado de animus domini (intenção de ser dono), motivo pelo qual não se computa tal exercício como prazo a ser considerado para reconhecimento de eventual usucapião. Nesse sentido, importante transcrever as lições de Carlos Roberto Gonçalves (2017, p. 108 e 109):
Posse ad interdicta é a que pode ser defendida pelos interditos, isto é, pelas ações possessórias, quando molestada, mas não conduz à usucapião. O possuidor, como o locatário, por exemplo, vítima de ameaça ou de efetiva turbação ou esbulho, tem a faculdade de defendê-la ou de recuperá-la pela ação possessória adequada até mesmo contra o proprietário.
Para ser protegida pelos interditos basta que a posse seja justa, isto é, que não contenha os vícios da violência, da clandestinidade ou da precariedade.
Posse ad usucapionem é a que se prolonga por determinado lapso de tempo estabelecido na lei, deferindo a seu titular a aquisição do domínio. É, em suma, aquela capaz de gerar o direito de propriedade.
Por sua vez, a posse ad usucapionem é aquela que é exercida de maneira plena pelo possuidor, o qual tem, de maneira intrínseca ao exercício de sua posse, a intenção de ser dono (animus domini) de modo que sua posse pode e deve ser contabilizada quando da análise de eventual usucapião, por óbvio, junto aos demais requisitos.
Assim, é certo que o exercício da posse ad usucapionem deverá estar entrelaçado, para fins do reconhecimento da usucapião, com o requisito de ser tal posse ininterrupta, mansa e pacífica. É certo que a ininterrupção mencionada objetiva evitar o reconhecimento do exercício fracionado da posse, uma vez que, se o indivíduo tem intenção de ser dono, deverá exercer sua posse de maneira a opô-la a todos de maneira pública e contínua. Sendo que a ausência de comprovação acerca da continuidade da posse, bem como de seu exercício com mansidão e sem oposição enseja a improcedência da ação de usucapião conforme decidido pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (“TJPR”):
FACHIN APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE USUCAPIÃO E AÇÃO DE INTERDITO/REINTEGRAÇÃO DE POSSE – SENTENÇA ÚNICA QUE JULGOU IMPROCEDENTES OS PEDIDOS – INSURGÊNCIA DOS AUTORES – AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA – INÍCIO DA POSSE QUE REMONTA AO ANO DE 1990 – APLICAÇÃO DA REGRA DE TRANSIÇÃO DO ART. 2.028, CC – APLICAÇÃO DA LEI ANTERIOR – ART. 550, CC/16 – POSSE MANSA, PACÍFICA, CONTÍNUA E COM ANIMUS DOMINI PELO PRAZO DE VINTE ANOS – REQUISITOS NÃO CONFIGURADOS NO CASO – LAPSO TEMPORAL INICIADO EM 1990 – EXERCÍCIO DA POSSE, POR MEIO DE CONTRATOS DE ARRENDAMENTO AGRÍCOLA – AÇÃO DE INVENTÁRIO E CAUTELAR DE SEQUESTRO SOBRE OS MESMOS BENS USUCAPIENTES QUE REVELAM OPOSIÇÃO AO EXERCÍCIO DA POSSE – REQUISITOS LEGAIS NÃO PREENCHIDOS – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA Autos n.º 0027057-28.2013.8.16.0030 e 0018921-08.2014.8.16.0030 MANTIDA – HONORÁRIOS FIXADOS NO PERCENTUAL MÁXIMO. 1. Não configura cerceamento de defesa a improcedência do pedido inicial pela não comprovação, pelo Autor, quanto o fato constitutivo do direito alegado, mormente quando oportunizada a produção das provas requeridas. 2. O reconhecimento da usucapião extraordinária exige a demonstração do exercício de posse mansa, pacífica, contínua e com animus domini, pelo prazo exigido legalmente. Caso concreto: Não comprovado o exercício contínuo e incontestado da posse pelo prazo de vinte anos, resulta improcedente o pedido para declaração de domínio. AÇÃO DE INTERDITO/REINTEGRAÇÃO DE POSSE – ALEGADO CERCEAMENTO DE DEFESA – INOCORRÊNCIA – AMPLA DILAÇÃO PROBATÓRIA – PROTEÇÃO POSSESSÓRIA PLEITEADA SOB A ÉGIDE DO CPC/1973 – REQUISITOS DO ARTIGO 927, CPC/73 – AUSÊNCIA, IN CASU, DE EFETIVO EXERCÍCIO DE POSSE ANTERIOR/ATUAL E DA PERDA DA POSSE DECORRENTE DE ATO DE ESBULHO – SENTENÇA MANTIDA – HONORÁRIOS RECURSAIS. Autos n.º 0027057-28.2013.8.16.0030 e 0018921-08.2014.8.16.0030 1. O Autor da Ação de Reintegração de Posse deve provar, (I) sua posse em momento anterior ao esbulho; (II) a ocorrência do esbulho, com a consequente perda da posse; (III) a data em que ocorreu a perda da posse, nos termos do artigo 927, do CPC/73 (atual 561, CPC/15). 2. As alegações fáticas lançadas na inicial, em especial quanto ao exercício prévio da posse, que teria sido perdida pelo alegado esbulho, não restaram comprovadas nos autos. 3. Com o não provimento do recurso, é devida a majoração dos honorários devidos ao advogado do Apelado, nos termos do artigo 85, §11, do Código de Processo Civil. APELAÇÕES CONHECIDAS E NÃO PROVIDAS. (Sem grifos no original).
Ademais, emerge ainda a necessidade de se tecer algumas pontuações acerca natureza da sentença da ação de usucapião e seus reflexos práticos na sociedade. Acerca da classificação das sentenças, THEODORO JR., Humberto leciona:
a classificação realmente importante das sentenças (considerando tanto a decisão do juiz singular como o acórdão dos tribunais) é a que leva em conta a natureza do bem jurídico visado pelo julgamento, ou seja, a espécie de tutela jurisdicional concedida à parte.
Conquanto se tenha certo dissenso doutrinário acerca das classificações da sentença, para o presente trabalho deverá ser considerada a perspectiva trazida por Humberto, ou seja, para se definir a natureza da sentença deverá ser observado o bem jurídico visado pelo julgamento, em outras palavras, a tutela jurisdicional efetivamente concedida ao jurisdicionado. Sabe-se que todo provimento jurisdicional final possuí uma natureza específica, sendo que tal natureza pode ser classificada como condenatória, declaratória e constitutiva, sendo que, cada classificação remete a um reflexo direto no plano prático-social.
Abreviadamente, a própria nomenclatura atribuída para cada uma das classificações acabam por ser extremamente indicativas de seus efeitos. A sentença de natureza condenatória, via de regra, é a sentença prolatada em processos litigiosos que tenham por objetivo final a imposição de uma obrigação a um dos litigantes (Ex: Obrigação de pagar uma indenização decorrente de um acidente de trabalho). De outro norte, a sentença de natureza constitutiva é compreendida como aquela que cria, extingue ou modifica uma relação jurídica, trata-se de uma sentença que possui eficácia imediata (Ex: A decretação de um divórcio).
Enfim, a sentença de natureza declaratória, por sua vez, objetiva a declaração judicial de uma condição fático-jurídica. No caso da sentença das diversas modalidades da ação de usucapião a natureza declaratória é patente, isso pois os possuidores que buscam ver declarado seu direito à usucapião apenas têm declarado em Juízo um direito já concretizado no plano fático. Explica-se. O mero preenchimento dos requisitos da usucapião já constituí o direito à propriedade por parte do possuidor, sendo que a ação de usucapião declara seu direito, fazendo, inclusive, com que os efeitos de tal sentença sejam de natureza ex tunc (com efeito retroativo) à data de preenchimento dos requisitos. Nesse sentido o Egrégio Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) entendeu:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TÍTULO DE PROPRIEDADE. SENTENÇA DE USUCAPIÃO. NATUREZA JURÍDICA (DECLARATÓRIA). FORMA DE AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA. FINALIDADE DO REGISTRO NO CARTÓRIO DE IMÓVEIS. PUBLICIDADE E DIREITO DE DISPOR DO USUCAPIENTE. RECURSO DESPROVIDO. (...) 2. A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade; ou seja, não há transferência de domínio ou vinculação entre o proprietário anterior e o usucapiente. 3. A sentença proferida no processo de usucapião (art. 941 do CPC) possui natureza meramente declaratória (e não constitutiva), pois apenas reconhece, com oponibilidade erga omnes, um direito já existente com a posse ad usucapionem, exalando, por isso mesmo, efeitos ex tunc. O efeito retroativo da sentença se dá desde a consumação da prescrição aquisitiva. 4. O registro da sentença de usucapião no cartório extrajudicial não é essencial para a consolidação da propriedade imobiliária, porquanto, ao contrário do que ocorre com as aquisições derivadas de imóveis, o ato registral, em tais casos, não possui caráter constitutivo. Assim, a sentença oriunda do processo de usucapião é tão somente título para registro (arts. 945 do CPC; 550 do CC/1916; 1.241, parágrafo único, do CC/2002) - e não título constitutivo do direito do usucapiente, buscando este, com a demanda, atribuir segurança jurídica e efeitos de coisa julgada com a declaração formal de sua condição. 5. O registro da usucapião no cartório de imóveis serve não para constituir, mas para dar publicidade à aquisição originária (alertando terceiros), bem como para permitir o exercício do ius disponendi (direito de dispor), além de regularizar o próprio registro cartorial. 6. Recurso especial a que se nega provimento. (Sem grifos no original)
Destarte, devidamente abordada as minúcias acerca do instituto da usucapião, faz-se pertinente mencionar, ainda, que atualmente existe a possibilidade de ter o direito à usucapião reconhecido sem a necessidade de ajuizamento de ação, por meio da usucapião extrajudicial, contudo, para não fugir da cerne do presente trabalho, passa-se à menção compendiosa das modalidades de usucapião existentes no ordenamento jurídico.
1.2.1 – Usucapião Extraordinária
Prefacialmente, acerca da usucapião extraordinário, sabe-se que se encontra respaldada pelo caput e §1° do art. 1.238 do CC:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Com base na leitura do dispositivo legal supracitado, observa-se que os requisitos para a usucapião extraordinária é o exercício da posse pelo lapso temporal de 15 (quinze) anos ininterruptos, sem oposição, independentemente de boa-fé e título, sendo que o prazo poderá ser reduzido para 10 (dez) anos caso o imóvel objeto da ação de usucapião tenha sido alvo de obras ou serviços de caráter produtivo ou seja o local de moradia habitual do possuidor. Trata-se da modalidade com menor número de requisitos, contudo, com maior lapso temporal exigido.
1.2.2 - Usucapião Ordinário
A seu turno, o art. 1.242, caput, do CC, ampara a modalidade da usucapião ordinário, in verbis:
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Consoante se observa, os requisitos para a usucapião ordinária é o exercício da posse pelo lapso temporal de 10 (dez) anos, ininterruptos e sem oposição, com justo título e boa-fé. O prazo poderá ser reduzido para 5 (cinco) anos se o imóvel objeto da ação de usucapião houver sido adquirido onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório de imóveis e cancelada posteriormente, desde que os possuidores tenham estabelecido sua moradia no mesmo ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Assim, observa-se que diferentemente da usucapião extraordinário, essa modalidade exige justo título e boa-fé e também o exercício da posse por tempo inferior.
1.2.3 – Usucapião Especial Urbana ou Usucapião Constitucional
O art. 1.240 do CC, juntamente com o art. 183 da CRFB/88, dispõem acerca da usucapião especial urbana, também conhecida como usucapião constitucional:
Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
A modalidade em análise, possui como requisito o exercício da posse por 5 (cinco) anos ininterruptos e sem oposição, sobre imóvel urbano de no máximo 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados), o qual deverá ter sido utilizado para a moradia do possuidor ou de sua família e, ainda, não deverá ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
1.2.4 - Usucapião Especial Rural
Ainda, de maneira similar, tem-se também a usucapião especial rural, encontra-se alicerçada no art. 1239 do CC e 191 da CRFB/88:
Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Conforme se extrai dos artigos mencionados, os requisitos são, basicamente, o exercício da posse pelo prazo de 5 (cinco) anos ininterruptos e sem oposição, sobre área de terra em zona rural de até 50 (cinquenta) hectares, devendo tornar a área produtiva por seu trabalho ou de sua família e fazendo dela, também, sua moradia. Não podendo, assim como para a usucapião especial urbano, ser o possuidor proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
1.2.5 – Usucapião Familiar
Outrossim, extrai-se do art. 1240-A do CC, uma modalidade bem específica de usucapião, conhecida como usucapião familiar, in verbis:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dividia com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
No caso da presente modalidade de usucapião, observa-se que se trata de uma modalidade extremamente limitada e precisa, uma vez que somente é cabível sobre imóvel urbano de até 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados) no qual a propriedade era dividida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, desde que a posse preencha, de maneira ininterrupta e sem oposição, o lapso temporal de 2 (dois) anos, devendo o imóvel ser utilizado para a moradia do possuidor, sendo que a posse para esta modalidade deverá ser direta e exercida com exclusividade
1.2.6 – Usucapião Coletiva
Por fim, de maneira breve, existe ainda a usucapião especial coletivo que tem sua previsão no art. 10, caput, do Estatuto da Cidade (Lei n° 10.257/2001), conforme:
Art. 10. Os núcleos urbanos informais existentes sem oposição há mais de cinco anos e cuja área total dividida pelo número de possuidores seja inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados por possuidor são suscetíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
. No que tange à usucapião especial coletivo, trata-se de uma medida de regularização fundiária direcionada especificamente para núcleos urbanos informais existentes, o requisito temporal exigido é de 5 (cinco) anos e área total dividida pelo número de possuidores deverá ser inferior a 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados) por possuidor, não podendo os ocupantes/possuidores serem proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Assim, devidamente abordada cada uma das modalidades de usucapião presentes em nosso ordenamento jurídico.
CAPÍTULO 02
2.1 – A SUBMISSÃO DO PODER PÚBLICO AO ESTADO DE DIREITO E OS PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS
Inicialmente, surge a necessidade de se tratar da submissão do Poder Público ao Estado de Direito, para tanto, faz-se necessário, também, compreender o próprio conceito de tal termo.
É certo que o termo “Estado Democrático de Direito” vem sendo amplamente utilizado, contudo, trata-se de um termo pouco compreendido e de certa dificuldade de conceituação. De acordo com o art. 1°, caput, da nossa Constituição Federal, a República Federativa do Brasil se constitui como sendo um Estado Democrático de Direito, conforme:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Do dispositivo constitucional supracitado, observa-se que o constituinte se preocupou em estampar logo no caput do art. 1° que, o nosso Estado, trata-se de um Estado Democrático de Direito. O conceito em questão é entendido por alguns doutrinadores como Estado Constitucional, que engloba o conceito conjunto de Estado Democrático e Estado de Direito, consubstanciando-se, no fim, no Estado Democrático de Direito.
Mister se faz observar o que leciona Alexandre de Moraes (2018) sobre o Estado de Direito:
O Estado Constitucional configura-se, portanto, como uma das grandes conquistas da humanidade, que, para ser um verdadeiro Estado de qualidades no constitucionalismo moderno deve ser um Estado democrático de direito. Dessa forma, são duas as “grandes qualidades” do Estado Constitucional: Estado de direito e Estado democrático.
O Estado de Direito caracteriza-se por apresentar as seguintes premissas: (1) primazia da lei, (2) sistema hierárquico de normas que preserva a segurança jurídica e que se concretiza na diferente natureza das distintas normas e em seu correspondente âmbito de validade; (3) observância obrigatória da legalidade pela administração pública; (4) separação de poderes como garantia da liberdade ou controle de possíveis abusos; (5) reconhecimento da personalidade jurídica do Estado, que mantém relações jurídicas com os cidadãos; (6) reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais incorporados à ordem constitucional; (7) em alguns casos, a existência de controle de constitucionalidade das leis como garantia ante o despotismo do Legislativo.
Assim, existirá o Estado de Direito onde houver a supremacia da legalidade (...)
A concepção hoje compreendida pelo termo Estado Democrático de Direito é fruto de inúmeras revoluções históricas que o Estado sofreu, sendo que, duas características principais precisam ser destacadas para o presente trabalho, a saber, a primazia da lei e o reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais incorporados à ordem constitucional. Para melhor visualizar a questão, mostra-se pertinente transcrever as palavras de Luiz Roberto Barroso (2017):
Quanto ao Estado de direito, é certo que, em sentido formal, é possível afirmar sua vigência pela simples existência de algum tipo de ordem legal cujos preceitos materiais e procedimentais sejam observados tanto pelos órgãos de poder quanto pelos particulares.
Em outras palavras, pode-se dizer que o Estado de Direito se trata de uma modalidade de Estado que o exercício do poder estatal é limitado e regulado por normas jurídicas, estando o Estado, concomitantemente, em uma dupla posição de responsável por fazer cumprir a ordem constitucional ao tempo em que também está adstrito e submisso às mesmas e, assim, certo seria se dizer que o Estado possui o dever em garantir o acesso à moradia.
Assim, aprofundando-se na órbita de atuação do Poder Público emerge a necessidade de se tecer algumas considerações. Conquanto não se tenha abordado até então acerca do interesse público, é certo que ele contorna o presente trabalho em sua integralidade. Há muito se sabe que o interesse público é o principal pilar de atuação do Poder Público, o qual se encontra consubstanciado no princípio da supremacia do interesse público. Em outras palavras, o interesse público pode ser visto como um dos motores centrais da atuação do Estado. De tal modo, buscando ainda melhor contextualizar o cenário para a cerne a ser esmiuçada por meio do presente trabalho, há que se compreender o princípio da supremacia do interesse público.
É certo que o Estado, enquanto responsável pela manutenção da ordem e pela organização funcional e efetiva da sociedade – como visto anteriormente -, baliza sua atuação em inúmeras diretrizes evidentemente respaldadas e alicerçadas no ordenamento jurídico e, principalmente na CRFB/88. Buscando garantir bases sólidas nos objetivos do Estado, criou-se um sistema de vetores com base em princípios que regem a atuação da Administração Pública in latu sensu.
Os princípios que regem a atuação da Administração Pública estão estampados no art. 37, caput, da CRFB/88, conforme:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
Para uma melhor elucidação do tema, há que se observar o que leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite.
A Lei nº 9.784/99 prevê o princípio da moralidade no artigo 2º, caput, como um dos princípios a que se obriga a Administração Pública; e, no parágrafo único, inciso IV, exige “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”, com referência evidente aos principais aspectos da moralidade administrativa.
Hely Lopes Meirelles (2003:102) fala na eficiência como um dos deveres da Administração Pública, definindo-o como “o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros”.
Na Lei nº 9.784/99, o princípio não aparece expressamente mencionado, porém, está implicitamente contido no artigo 2º, parágrafo único, inciso III, nos dois sentidos assinalados, pois se exige “objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades”.
Por meio da aplicação prática de todos os princípios supracitados, consubstancia-se o princípio da supremacia do interesse público, isso pois, ao aplicá-los, será visado de maneira automática, o melhor interesse para a sociedade – leia-se coletividade -, e, por via de consequência, o melhor interesse público.
Resumidamente, o princípio da supremacia do interesse público remete à ideia de que, além de todo o direcionamento na atuação dos agentes públicos, em determinadas situações de conflitos entre o interesse público e os interesses privado, o interesse público deverá se sobrepor ao interesse individual.
É certo que a noção preliminar ao que se entende pela aplicação prática do princípio da supremacia do interesse público permite uma visualização bastante importante para o desenvolver desta monografia. Todavia, é certo que o conceito de interesse público é objeto de debate até hoje entre os doutrinadores, uma vez que se trata de matéria extremamente árdua.
Nessa senda, importante mencionar as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:
ao se pensar em interesse público, pensa-se, habitualmente, em uma categoria contraposta à de interesse privado, individual, isto é, ao interesse pessoal de cada um. Acerta-se em dizer que se constitui no interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social, assim como acerta-se também em sublinhar que não se confunde com a somatória dos interesses individuais, peculiares de cada qual. Dizer isto, entretanto, é dizer muito pouco para compreender-se verdadeiramente o que é interesse público
Embora não se tenha um conceito pré-estabelecido e reconhecido de maneira plena, para esta monografia a compreensão rasa já exposta servirá para a interpretação que se exige. Partindo de uma análise geral, considerando-se o contexto histórico e a atual organização do Estado, é possível se constatar que todos os atos perpetrados pela Administração Pública devem ser alicerçados no interesse público.
Conquanto já se tenha ciência de que a República Federativa do Brasil se constitui como sendo um Estado Democrático de Direito que, concomitantemente, tem o dever de garantir os direitos fundamentais e a obrigação de se sujeitar às normas constitucionais, é certo que pouco até então foi dito acerca dos direitos e garantias constitucionais.
Como já tratado anteriormente, o art. 1°, caput, da CRFB/88 foi preciso e pontual em trazer que a República Federativa do Brasil se constitui como sendo um Estado Democrático de Direito, sendo que seus incisos foram além, uma vez que esculpiram alguns fundamentos da República e, dentre esses a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
Ainda, de maneira complementar, observa-se que os objetivos fundamentais da República estão respaldados no art. 3° e incisos seguintes da CRFB/88:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Dos dispositivos constitucionais invocados, pode-se extrair que a República Federativa do Brasil, além de se constituir como um Estado Democrático de Direito, também possui por objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como o desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais.
Como brevemente mencionado alhures, a CRFB/88 vem ladeada de inúmeros princípios e garantias que são inerentes ao ser humano. Os princípios inseridos na Constituição Federal servem para melhor balizar a aplicação da norma, sendo que a aplicação adequada da lei, está, de certo modo, condicionada ao filtro constitucional. Em outras palavras, sujeito a toda base principiológica constitucional para sua devida interpretação e respectiva aplicação.
Acerca dos princípios e garantias constitucionais, sabe-se que são contemplados na integralidade da CRFB/88, especialmente pelo caput, do art. 5°, que dispõe precisamente acerca da isonomia, legalidade, direito à vida, direito à segurança e o direito à propriedade. Para o hodierno trabalho, há que se observar precisamente o contido no art. 5°, caput e incisos XXII e XXIII:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
Partindo de uma análise literal do artigo supra, observa-se que em seu caput está esculpida a igualdade entre todos, bem como os direitos basilares considerados mínimos para propiciar uma vida digna ao povo, como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade. Ainda, não suficiente a menção ao direito à propriedade inserido no caput, o constituinte se preocupou em individualizar a garantia do direito à propriedade do povo no inciso XXII do dispositivo em questão.
Outrossim, importante observar que o inciso XXIII do art. 5° supracitado, preconiza acerca do princípio da função social da propriedade. É certo que a função social da propriedade é objeto de bastante debate, inclusive sendo um dos principais temas da presente monografia. Em síntese, o princípio mencionado demonstra certa preocupação do constituinte em imprimir às propriedades uma destinação mais vinculada ao benefício coletivo.
Complementando as disposições até então citadas, o art. 6°, caput, da CRFB/88, novamente menciona o direito à propriedade de maneira atrelada ao direito à moradia, conforme:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Com base em uma interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais citados, observa-se que a República Federativa do Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito, possui o dever de assegurar ao povo uma vida digna, resguardando-lhes os direitos fundamentais, como o direito à moradia, à propriedade, objetivando, sempre, a erradicação da pobreza e a concretização da redução da desigualdade social, nos termos da Constituição Federal.
A partir dos preceitos basilares da Constituição, em especial a tutela da propriedade que cumpre a função social e o direito à moradia, permite-se aduzir que o reconhecimento da usucapião em imóveis públicos dominicais para fins de moradia de populações de baixa renda atende claramente ao interesse público. Dessa maneira, aplicar-se-ia uma interpretação conforme à própria vedação da usucapião aos bens públicos a fim de atribuir concretude aos direitos fundamentais e assegurar o mínimo existencial dos administrados.
– CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E CARACTERÍSTICAS ESPECIAIS DOS BENS PÚBLICOS E OS INTRUMENTOS QUE O ESTADO TEM À SUA DISPOSIÇÃO PARA A OBTENÇÃO DA PROPRIEDADE E A CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA
Para se ter a devida compreensão do tema deste trabalho, há patente necessidade de se abordar a temática dos bens públicos. Para tanto, deverá ser observada, ainda que brevemente, as primeiras referências históricas existentes acerca de tais de bens.
A noção de bens públicos foi muito debatida ao longo dos séculos, sendo que sua concepção inicial pode ser percebida no Direito Romano, isso pois de acordo com Maria Sylvia Zanella di Pietro (2019, p. 1505), havia certa alusão aos bens públicos nas institutas concebidas por Justiniano e Caio – leia-se institutas como sendo manuais de leis do Direito Romano. De maneira simples, tais institutas denominavam o gênero de bens públicos como sendo res nullius, que se subdividia em res communes (concernentes aos mares e rios), res universitatis (referentes às ruas e praças públicas) e res publicae (no que tange à terras e escravos de propriedade de todos).
Avançando temporalmente, já na idade média, pode-se perceber que os bens públicos passaram a ser de propriedade da realeza e não mais do povo como ocorria no direito romano. De tal modo, com o passar do tempo, os bens públicos ainda continuaram a pertencer grupos similares – de certo modo – a realeza. Explica-se. Com o desenvolvimento do conceito de Estado, especialmente o Estado enquanto pessoa jurídica, não havendo mais a individualização do poder de governar em uma pessoa física, mas sim em uma pessoa jurídica, a propriedade dos bens públicos passou a ser desse Estado.
O ordenamento jurídico trouxe no art. 98 do vigente Código Civil o conceito de bens públicos:
Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
A despeito das controvérsias que circunda o conceito atualmente adotado pelo código civil, é certo que para não nos distanciarmos da cerne deste trabalho, deixaremos de adentrar em tais minucias. Além da conceituação supracitada elencada no Código Civil, é certo que o art. 99 e seus incisos, do mesmo diploma legal, foi além e trouxe algumas categorias para a divisão dos bens públicos, conforme:
Art. 99. São bens públicos:
I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;
III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Consoante se infere do dispositivo legal mencionado, o critério de classificação adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro é o critério da afetação. Por meio de tal critério se define os bens públicos nas 3 (três) categorias elencadas, sendo os bens públicos de uso comum, os quais são destinados, por natureza ou por lei, ao uso coletivo. Os bens públicos de uso especial advêm da afetação efetiva e utilização do bem por parte da Administração Pública para alcançar seus objetivos, em outras palavras, refere-se aos imóveis onde se encontra em funcionamento alguma repartição pública atrelada aos poderes do Estado, conforme preceitua Fernanda Marilena (2018, p. 919):
Na segunda categoria, há os bens de uso especial, também chamados bens do patrimônio administrativo, que são os destinados especialmente à execução dos serviços públicos e, por isso mesmo, considerados instrumentos desses serviços. É o aparelhamento material da Administração para atingir os seus fins. Por exemplo, prédios das repartições ou escolas públicas, terras dos silvícolas, mercados municipais, teatros públicos, cemitérios, museus, aeroportos, veículos oficiais, navios militares etc.
Por fim, os bens dominicais, sobre o qual remonta a cerne central do presente trabalho, são àqueles bens que não possuem uma destinação pública definida. Os bens públicos dominicais merecem uma melhor atenção no presente trabalho, uma vez que está intrinsecamente relacionado com a essência do mesmo. É certo que os bens públicos desta natureza são tidos também como bens públicos disponíveis, sendo que dentre os bens públicos dominicais temos terrenos baldios e também terras devolutas.
Outrossim, é cediço, também, que todos os bens atrelados ao Poder Público estão sujeitos à Administração Pública, inclusive os dominicais, embora não possuam uma finalidade pública previamente estabelecida. Como dito anteriormente, objetiva-se dar um enfoque especial aos bens públicos dominicais conceituados no art. 99, inciso II, do CC. Tais bens podem ser também chamados de bens dominiais, pois ambas remetem à ideia conceitual da modalidade, isto é, aos bens que não possuem qualquer destinação pública.
De tal modo, sabe-se que esses bens somente ostentam a qualidade de bem público em razão de serem de titularidade de uma determinada pessoa de direito público interno. É possível citar, novamente, como exemplos as terras devolutas de um determinado Estado da federação e também os bens móveis apreendidos sem uma utilização definida. Além do mais, diferentemente do que ocorre nos bens de uso comum e de uso especial, os bens dominicais podem ser alienados conforme as condições esculpidas no art. 17 da Lei de Licitações (Lei n° 8666/93).
Na palavras de Alexandre Mazza (2018, p. 933), os bens dominicais são todos aqueles que não possuem utilidade específica e, do mesmo modo, são também chamados de bens do patrimônio público disponível. Explica ainda que a Administração Pública pode exercer sobre esses bens os poderes de proprietário, como usar, gozar e dispor, isso é, utilizam-no como dele o utilizariam os particulares. Logo, é nesse sentido que o dispositivo legal define tais bens como aqueles que "constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades”.
Acerca dessa categoria, Meirelles (2016 p. 639) observou que embora os bens dominais ou do patrimônio disponível integrem o domínio público como as demais categorias, diferem-se das demais pela possibilidade de poderem a qualquer momento serem utilizados para qualquer fim, até mesmo a alienação. Informou ainda que além desses bens integrantes do patrimônio disponível da administração pública, em razão de não possuírem uma destinação ou finalidade administrativa específica; outros bens também poderão ser transferidos para essa categoria, por meio de lei, tornando-se desafetados de sua finalidade pública originária. E por fim, ressaltou que todas as entidades públicas possuem a possibilidade de ter bens patrimoniais disponíveis que ficarão à disposição da Administração para qualquer uso ou alienação que a lei autorizar.
É certo que os bens públicos e os bens pertencentes aos particulares são, juridicamente, tratados de maneira distinta. De acordo com Mazza (2018 p. 958 e 959) os bens públicos possuem um regime jurídico especial que consubstancia tal tratamento diferenciado. O tratamento se diferencia especificamente em razão de 4 (quatro) características dos bens públicos, a saber, a inalienabilidade, impenhorabilidade, a não onerabilidade e a imprescritibilidade.
A importância de se compreender acerca de tais característica reside no fato de que, algumas delas, quando atreladas aos bens públicos dominicais podem ser mitigadas e ainda assim o bem não deixa de ser considerado um bem público. A inalienabilidade dos bens públicos, refere-se à impossibilidade de se transferir, dispor ou alienar o bem, em outras palavras, tal característica é óbice para a doação, permuta e venda do bem a terceiros. A despeito de tal característica, os arts. 100 e 101 do CC, dispõem que:
Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.
Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.
Assim, pode-se perceber que o próprio ordenamento permite a mitigação da inalienabilidade, desde que, em razão de algum fato, ou lei, os bens públicos percam essa qualidade. Decorrência lógica na característica da inalienabilidade, tem-se a impenhorabilidade dos bens públicos. É certo que, sendo inalienáveis os bens públicos, não poderiam o mesmo ser objetos de penhora. Inclusive, de modo a reforçar tal questão, criou-se processualmente um rito próprio para execuções em que a Fazenda Pública figure no polo passivo de ação executória.
Por sua vez, a não onerabilidade se traduz como a impossibilidade de utilizar o bem público como forma de garantia. Os bens públicos não podem ser gravados com os ônus de direito real – o que se entrelaça com as demais características da inalienabilidade e da impenhorabilidade. Por fim e, para o presente trabalho talvez a característica mais pertinente, a imprescritibilidade.
Acerca da imprescritibilidade dos bens públicos, sabe-se que se o principal objetivo de tal característica é evitar que os bens públicos sejam adquiridos por terceiros por meio da usucapião. Como forma de incluir tal característica no ordenamento jurídico, temos, atualmente, esculpido no art. 183, §3° da Constituição, bem como no art. 102 do CC, dispositivos que vedam, expressamente a aquisição de bem público por meio do instituto em questão, o que será posteriormente abordado mais detalhadamente.
Ainda, de maneira complementar, emerge a necessidade de se tecer algumas pontuações acerca dos instrumentos e mecanismos que o Estado tem a sua disposição à obtenção de propriedade. Além de os bens públicos não serem suscetíveis de usucapião por força de previsão legal-constitucional, é certo que o Estado ainda possui mecanismos que o permitem obter a propriedade de bens.
Inicialmente, há que se observar o instrumento da desapropriação judicial indireta, trata-se de uma espécie de intervenção que retira o proprietário de sua propriedade. É certo que, diferente das demais modalidades de intervenção e mecanismos à disposição do Estado, há certa restrição do direito de propriedade, contudo, nenhuma tão gravosa e abrupta quanto a desapropriação.
Para se compreender a desapropriação judicial indireta, há que se entender, previamente, o instituto originário da desapropriação judicial direta. A desapropriação guarda estrita semelhança com o instituto da usucapião, encontra-se amparada no art. 1.228, §§4° e 5°, do CC. Sabe-se que para o reconhecimento do instituto em questão, é necessário 5 (cinco) anos de exercício da posse de maneira ininterrupta, dotada de boa-fé, por uma área extensa – termo com interpretação aberta, adequável a cada caso concreto a depender do Juízo -, podendo o imóvel ser urbano ou rural, desde que os possuidores representam uma coletividade de pessoas. Ainda, há o requisito de que, sobre o imóvel tenham sido realizadas obras e serviços de interesse social e econômico relevante e o pagamento prévio de uma justa indenização ao antigo proprietário.
A desapropriação judicial indireta, por sua vez, encontra-se prevista no art. 1.228, §§4° e 5° do CC:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 4° O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5° No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
Assim, observa-se que sua ocorrência se dá quando a Administração Pública se apossa do bem pertencente a um particular sem que tenha havido a devida observância dos requisitos formais da desapropriação, bem como da indenização prévia. Além da desapropriação, há que se observar que o Estado, ainda que, eventualmente, não se aposse da titularidade de um bem imóvel, existem mecanismos próprios para que o Estado possa restringir e limitar o direito de propriedade do particular. Explica-se.
Além da desapropriação, o Estado tem à sua disposição como mecanismos de intervenção na propriedade o tombamento, a servidão, as limitações administrativas e as ocupações temporárias. O tombamento, consistem em uma intensa forma de intervenção do Estado em bens imóveis que possuam valor histórico, científico, tecnológico, artístico, cultural, arquitetônico e ambiental para o povo, nos termos do art. 216 e incisos seguintes da CRFB/88:
Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...)
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
No caso do tombamento, o imóvel continua sendo de titularidade do proprietário efetivo, não havendo a expropriação do bem por parte do Estado, porém, a propriedade passa a respeitar um regime jurídico especial que objetiva, principalmente, a boa manutenção de sua estrutura física. A servidão, a seu tempo, ocorre quando uma parcela do imóvel é utilizada em prol da coletividade, trata-se de um direito real que recai sobre o bem em virtude do interesse público em uma parcela do imóvel. Apenas à título exemplificativo, menciona-se que um exemplo patente de servidão seria a instalação de uma placa com o nome da rua em uma propriedade específica.
Acerca das limitações administrativas, sabe-se que se alicerçam precipuamente no direito de vizinhança e possuem a função de proteger a sociedade de uma maneira ampla. Em outras palavras, a limitação administrativa é toda imposição geral, gratuita, unilateral e de ordem pública, condicionadora do exercício de direitos ou de atividades particulares às exigências do bem-estar social. Um exemplo típico de limitação administrativa é a imposição pelo poder público de um limite máximo de altura para determinadas obras.
Do mesmo modo, ainda existem as ocupações temporárias, as quais são, rudimentarmente, uma forma por meio da qual o Poder Público intervém na propriedade privada, utilizando-a transitória e temporariamente. A modalidade de intervenção em questão é extremamente específica e precisa, encontra-se amparada pelo inciso XXV, do art. 5°, da CRFB/88:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
Consoante se extrai do dispositivo constitucional, a ocupação temporária poderá se dar em iminente perigo público sendo resguardado ulterior indenização ao proprietário, desde que o imóvel tenha sofrido algum dano. Assim, devidamente observadas algumas das formas de intervenção do Estado da propriedade privada e nos meios disponíveis para que o mesmo possa obter para si eventual bem.
Para o tema tratado nesta monografia, imperioso se faz tecer algumas considerações acerca do conflito constitucional havido entre o dever estatal de garantir moradia ao povo e, concomitantemente, vedar o direito do particular a usucapir determinados bens – bens públicos. É certo que, considerando-se os princípios e fundamentos basilares da constituição, bem como os princípios fundantes do instituto da usucapião, tal tema se torna digno de reflexão e debate.
Há que se esclarecer de maneira prévia que, não se busca defender a aplicação ou a inaplicação, mas sim a fazer uma análise técnica da aplicação do instituto da usucapião, alinhado com todos os conceitos jurídicos inerentes e pertinentes ao caso, considerando-se principalmente os que foram pontualmente trabalhados nesta obra até este momento.
De início, há que se observar e considerar os principais fundamentos que alicerçam a inaplicação do instituto da usucapião sobre bens públicos dominicais. Como já dito, existe vedação legal estampada no art. 102 do CC e também a vedação constitucional esculpida no art. 183, §3° da CRFB/88:
Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.
Art. 183. (...).
§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Com o advento da vigente Constituição Federal em 1988, inúmeros questionamentos foram levantados. Tais questionamentos são provenientes da nova regência constitucional que possui um sistema direcional alicerçado em princípios e garantias individuais que buscam garantir a plena aplicação e eficácia da norma. Não se olvidando para os objetivos fundamentais esculpidos no art. 3°, de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo-se um desenvolvimento nacional, erradicando-se a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais.
Dentre os questionamentos levantados, encontra-se a dúvida acerca da possibilidade de usucapião sobre os bens públicos dominicais, uma vez que, diferentemente dos bens públicos de uso comum e uso especial, os bens dominicais não possuem uma afetação ao interesse público, revestindo-se como sendo terrenos baldios, terrenos inutilizados pelo próprio poder público que é o titular do domínio. Partindo de uma leitura conjunta da finalidade do surgimento do instituto da usucapião, bem como dos pilares centrais da Constituição Federal, inúmeras ações de usucapião foram ajuizadas objetivando a declaração de domínio por parte do particular sobre imóveis públicos dominicais.
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal entendeu por consolidar seu entendimento acerca desta questão em sua súmula de n° 340, conforme:
Súmula 340 - STF
Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião
Nesse sentido o Supremo Tribunal de Federal decidiu:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO. BEM DOMINICAL. SUPOSTA AQUISIÇÃO EM DATA ANTERIOR AO REGISTRO DO BEM PELA UNIÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA N. 279 DO STF. INVIABILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. A Súmula 279/STF dispõe: Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário. 2. É que o recurso extraordinário não se presta ao exame de questões que demandam revolvimento do contexto fático-probatório dos autos, adstringindo-se à análise da violação direta da ordem constitucional. 3. In casu, o acórdão recorrido assentou: ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE USUCAPIÃO. BEM DOMINICAL. IMPOSSIBILIDADE DE ALIENAÇÃO. 1. A área objeto da presente ação constitui bem público dominical, sobre o qual não pode incidir usucapião, nos termos dos arts. 183, § 3º, e 191, parágrafo único, da Constituição Federal. 2. Em que pese a demonstração pelo autor da posse mansa e pacífica do bem por período superior a vinte anos, sendo o imóvel propriedade da União, impossível a sua aquisição pela usucapião. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
Assim, constata-se que a motivação central do entendimento atualmente consolidado é mormente as vedações existentes no ordenamento jurídico, sem qualquer aplicação hermenêutica para as espécies de bens públicos existentes. Contudo, de outro norte, observa-se que com fundamento em uma leitura constitucional sistemática, de acordo com os fundamentos, princípios e direitos basilares que deveriam ser garantidos e assegurados pelo Estado, o entendimento pela vedação da usucapião sem ressalvas não deveria prosperar.
Significa dizer, adentrando-se na orbita do reconhecimento da possibilidade de aplicação do instituto da usucapião sobre bens públicos dominicais, emerge a necessidade de se realizar uma interpretação com mais peculiaridades do que meramente ao texto legal existente. Como já tratado anteriormente, o atual ordenamento jurídico conta uma interpretação constitucional, pois a CRFB/88 trouxe consigo um filtro principiológico que deverá intermediar a interpretação prática da norma com sua finalidade legal, considerando-se as consequências práticas.
Juntamente com o advento da vigente Constituição Federal, princípios como o da função social da propriedade ganharam grande enfoque, especialmente quando se trata do instituto da usucapião. A usucapião, como já dito, trata-se de uma forma de aquisição originária de direitos reais, onde, por meio do preenchimento dos requisitos legais, somados a posse prolongada no tempo, o possuidor adquiri o domínio sobre a área a qual exerceu a posse.
Tal instituto, por uma perspectiva por meio do princípio da função social da propriedade, pode ser percebido como tendo um duplo efeito, isso pois de maneira concomitante, beneficia o possuidor que assegurou a função social daquela propriedade, declarando o domínio do mesmo sobre a área, enquanto faz com que o proprietário desidioso que não garantiu a função social, seja punido, perdendo o domínio sobre a mesma área. Sendo certo que a função social da propriedade deverá ser compreendida nos termos que preconizam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2017, p. 314):
A locução função social traduz o comportamento regular do proprietário, exigindo que ele atue numa dimensão na qual realize interesses sociais, sem a eliminação do direito privado do bem que lhe assegure as faculdades de uso, gozo e disposição. Vale dizer, a propriedade do bem que lhe assegure as faculdades de uso, gozo e disposição. Vale dizer, a propriedade mantém-se privada e livremente transmissível, porém detendo finalidade que se concilie com as metas do organismo social.
Em termos concretos, haverá função social da propriedade quando o Estado delimitar marcos regulatórios institucionais que tutelem a livre iniciativa, legitimando-a ao mesmo tempo. Quando uma atividade econômica concede, simultaneamente, retorno individual em termos de rendimento e retorno social, pelos ganhos coletivos da atividade particular, a função social será alcançada. O ordenamento jurídico viabilizará o empreendedorismo, que por sua vez justificará benefícios coletivos.
Sabe-se que o Estado tem o dever de, como já abordado, garantir uma vida digna às pessoas, assegurando-lhes o direito à moradia, à propriedade demais direitos sociais desta mesma natureza. Ocorre que, em razão das vedações existentes à aplicação da usucapião, os direitos sociais restam prejudicados, em especial a moradia das populações de baixa renda que atribuem função social a áreas públicas sem qualquer destinação estatal. Nesse sentido, um imóvel de titularidade do Estado, sem afetação pública (dominical), é ocupado por um particular poderia ser suscetível de aquisição pela usucapião por possuidores de baixa renda.
É certo que assim como o proprietário desidioso de algumas propriedades privadas, o Estado quando desidioso com seus bens, deverá perdê-los em favor daqueles que atribuem função social ao imóvel, notadamente em situações de moradia de coletividades de baixa renda.
Caso contrário, concebendo-se o panorama de exceção do Poder Público quanto ao cumprimento da função social da propriedade, rompe-se com a própria conformação do Estado de Direito, segundo o qual o desta a própria atuação estatal subordina-se à lei e ao Direito. Além disso, afastar a possibilidade de dar concretude à usucapião de bens dominicais a pretexto de uma suposta e abstrata supremacia do interesse público e da aplicação literal das vedações legais à usucapião sobre bens públicos implica consubstanciar o Estado na figura de um agente especulador imobiliário.
Na hipótese de não ser reconhecida a prescrição aquisitiva em favor do possuidor, é certo que além de não se concretizar o interesse público por meio da concretização de um direito constitucional – à moradia -, tal situação se amoldaria também como uma violação ao instituto do direito adquirido. Explica-se. O direito adquirido é uma espécie de direito subjetivo definitivamente incorporado ao patrimônio jurídico de um titular, já consumado ou não, porém exigível na via jurisdicional. Para uma melhor compreensão do direito adquirido, importante observar o que expõe Carlos Roberto Gonçalves (2017, p. 85 e 86):
Direito adquirido é o que já se incorporou definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular, não podendo lei nem fato posterior alterar tal situação jurídica.
A violação ao instituto do direito adquirido se daria em razão do direito à usucapião do possuidor não decorrer de um provimento jurisdicional, mas sim do momento em que se restarem preenchidos todos os requisitos exigidos para alguma modalidade existente de usucapião. Corroborando este feixe de raciocínio, há que se mencionar, novamente, algumas questões atinentes a natureza e os efeitos da sentença provenientes das ações de usucapião.
Sabe-se que a sentença da ação de usucapião é declaratória, isso em razão de seus efeitos serem de natureza ex tunc e retroagirem – produzirem efeitos no passado. Consoante tratado alhures, os efeitos da sentença declaratória proveniente de uma ação de usucapião retroagem à data de preenchimento dos requisitos, permitindo-se assim concluir que o direito do usucapiente já estava incorporado ao seu patrimônio/personalidade, sendo que o provimento jurisdicional apenas declarou um direito que já lhe havia sido incorporado.
Outrossim, de modo a melhor demonstrar e robustecer as diretrizes que viabilizam e permitem o desenvolver do raciocínio elaborado nesta monografia, há que se atentar para alguns dispositivos presentes em nosso ordenamento jurídico, precisa e respectivamente, o contido no art. 5°, inciso XXXVI e §§1° e 2°, ambos da CRFB/88 e também o art. 5°, caput, do Decreto-Lei n° 4.657/42 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB) e o art. 8°, caput, da Lei n° 13.105/2015 do Código de Processo Civil (CPC):
Art. 5° (...)
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Art. 5° Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
Analisando de maneira sistemática e literal os dispositivos supracitados, pode-se perceber que o ordenamento jurídico prevê vetores para a atuação jurisdicional que objetivam direcionar a atuação do magistrado no momento de aplicação das leis. Isso pois, por meio de tais dispositivos, o ordenamento jurídico dispõe que a aplicação da norma deverá observar os fins sociais ao qual a lei se dirige, bem como deverá observar as exigências do bem comum, primando-se por resguardar e também promover a dignidade da pessoa humana – tal como os demais direitos constitucionais como o direito à moradia.
Desta maneira, apenas restam corroborados os fundamentos que se permitem fazer concluir pela possibilidade jurídica da usucapião sobre bens públicos dominicais. Deve ser reconhecida esta proposição, uma vez que concretiza a finalidade da lei e também a finalidade do próprio instituto da usucapião, qual seja a concretização do direito constitucional à moradia. Ao concretizar-se o direito à moradia nestes termos, estará também garantido o atendimento ao interesse público.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A elaboração deste trabalho buscou, em sua essência, trazer à tona o grande dissenso havido sobre a inaplicação do instituto da usucapião sobre a modalidade específica dos bens públicos dominicais. Para tanto, foi necessário observar todas as perspectivas e conceitos que se entrelaçam com o tema. Isso pois se trata de um tema de relevância extrema, uma vez que, como dito no desenvolver desta obra, o crescimento populacional é algo contínuo no Brasil, fazendo com que conflitos envolvendo áreas se tornem cada vez mais constantes.
De tal modo, não deveria ser diferente com as áreas pertencentes ao Estado, uma vez que estando tais áreas desconstituídas de qualquer função, salvo especulativa – como é a grande maioria dos casos dos bens públicos dominicais – mostram-se suscetíveis de apropriações indevidas, de grilagens e também para fins de moradia de populações socialmente desassistidas, consolidando-se, neste caso, ocupações urbanisticamente irregulares.
O instituto da usucapião, por sua vez, é um mecanismo que existe há muito tempo e sempre teve por objetivo concretizar o direito à propriedade e os demais direitos basilares que, de alguma forma, se correlacionam com este. A CRFB/88 trouxe uma perspectiva constitucional que se coaduna em muito com a motivação central que originou o surgimento do instituto tratado, de modo que há muita discussão sobre se acertada – ou não – a inviabilidade de se usucapir bens públicos enquanto bens dominicais.
Ainda que o Estado, por meio dos Tribunais, não admita a possibilidade de se usucapir bens públicos dominicais, há de se discutir a possibilidade jurídica deste instrumento à luz de uma interpretação conforme a Constituição.
Certo é que para contornar a vedação à usucapião de bens públicos, interpretada em caráter absoluto, foram criados institutos jurídicos de legitimação da posse como, por exemplo, a concessão de uso para fins de moradia e a concessão de uso de direito real. Hipóteses estas em que o particular teria a outorga do Estado para exercer os poderes de proprietário sobre um imóvel público, sem reconhecer-lhe a titularidade, mesmo tendo o administrado preenchido os requisitos legais da usucapião.
Tendo a Constituição da República Federativa do Brasil, em seus fundamentos e objetivos alicerçados em resguardar a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e também a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, ao ponto de se viabilizar o desenvolvimento nacional, erradicando-se a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais, o atual entendimento que melhor se coaduna com os valores constitucionais seria pelo reconhecimento da usucapião nos termos delineados neste trabalho.
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