Zerar ou não a redação do Enem?

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A sociedade não é estática, imutável. O Direito é a expressão da sociedade. Podemos encontrar a mutabilidade do Direito, pela também mutabilidade social, por exemplo, no art. 233, do Código Penal (DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940):

Ato obsceno

Art. 233 - Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

A Lei Penal possui características:

  1. Exclusividade: só a lei pode criar delitos e penas ( CF, art. 5º XXXIX, e CP, art. 1o).

  2. Imperatividade: o seu descumprimento acarreta a imposição de pena ou de medida de segurança, tornando obrigatório o seu respeito.

  3. Generalidade: dirige-se indistintamente a todas as pessoas, inclusive aos inimputáveis. Destina-se a todas as pessoas que vivem sob a jurisdição do Brasil, estejam no território nacional ou no exterior. Justifica-se pelo caráter de coercibilidade que devem ter todas as leis em vigor, com efeito imediato e geral (LINDB, art. 6º).

  4. Impessoalidade: projeta os seus efeitos abstratamente a fatos futuros, para qualquer pessoa que venha a praticá-los. Há duas exceções, relativas às leis que preveem anistia e abolitio criminis, as quais alcançam fatos concretos.

  5. Anterioridade: as leis penais incriminadoras apenas podem ser aplicadas se estavam em vigor quando da prática da infração penal, salvo no caso da retroatividade da lei benéfica. (MASSON, Cleber. Código Penal comentado / Cleber Masson. 2. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014)

“Exclusividade” — só a lei pode criar delitos e penas —, quer dizer, somente o legislador, isto é, o Congresso Nacional, pode criar delitos e penas. Pode o Poder Judiciário “criar lei”? Há duas teorias: Teoria da ponderação unitária e Teoria da ponderação diferenciada. Na teoria da ponderação unitária, somente o legislador pode criar lei. Na teoria da ponderação diferenciada, o Poder Judiciário poderia “criar lei”, is to é, legislar para beneficiar o réu (art. 5º, XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu - da CRFB de 1988). A teoria aplicada no Brasil é a teoria da ponderação unitária.

Vamos analisar pela literalidade da norma do art. 233 do Código Penal (DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940). “Ato obsceno”. O ato obsceno pode ser interpretado (interpretação subjetiva) como andar nu nas vias públicas abertas à circulação, bem diferente de local privado como as “praias de nudismo”. Por uma questão de tradição judaico-cristã, a ideologia cultural trazida pelos “colonizadores”, o andar nu é um crime de obscenidade. Pela teoria do crime, a teoria bipartide, crime é fato típico e antijurídico. Dificilmente, caso o Brasil não fosse “descoberto” pelos “colonizadores”, o andar nu nas vias públicas, abertas ou não à circulação, não constituiria “crime de ato obsceno”.

Imaginemos que na prova de redação do Enem, um aluno, ou aluna, desenvolvesse o seu raciocínio sobre ato obsceno como foi desenvolvido acima. Nas palavra do (a) aluno (a) “O andar nu nas vias públicas constitui crime, pela redação da norma do artigo 233 do Código Penal (DECRETO-LEI Nº 2.248, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940), por uma condicionante de ideologia de tradição judaico-cristã trazida pelos ' colonizadores'. O Estado pode punir quem andar nu nas vias públicas abertas à circulação, pela vigência da norma do artigo mencionado, contudo, por uma visão ideológica anarcocapitalista, a aplicação da norma contra os 'infratores da lei' é uma coação à liberdade individual por uma ideologia religiosa moralmente restrita aos cidadãos que acreditam nesta ideologia”. Poder-se-á considerar uma “intolerância religiosa”?

Podemos considerar que houve fato típico na conduta, de escrever, do estudante? Ou seja, houve vontade de criar intolerância religiosa? Os elementos da conduta são: vontade; finalidade, exteriorização; e consciência. Podemos também considerar que a leitura de quem corrigirá a redação possuirá subjetividade? Se anarcocapitalista, não há intolerância religiosa. Caso religioso de tradição judaico-cristã, a intolerância religiosa. Ou quem não é da tradição, mas pensa ser intolerância religiosa.

Concordo, em parte, com a decisão da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármem Lúcia: "Não se combate a intolerância social com maior intolerância estatal." Sim, "há meios e modos para se questionar, administrativa ou judicialmente, eventuais excessos" da liberdade de expressão. Tratou-se da possibilidade de “zerar” a redação quando houvessem elementos subjetivos, de quem faz prova no Enem, violando os direitos humanos. (1)

Quando eu disse “concordo”, baseio-me no momento psicossocial. Por exemplo, existe, infelizmente, violações de direitos humanos entre Hamas e Israel. Ainda que Hamas não assinou nenhum tratado internacional de direitos humanos — por não ser Estado —, ainda que os palestinos, também por não terem Estado, povo tem, território não, muito menos soberania, tanto Hamas e os palestinos não estão isentos de cometerem violações aos direitos humanos pela internacionalização destes direitos. Quanto à Israel (Estado de Israel) assinou o Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984). Quem tem mais responsabilidade quanto aos direitos humanos? Todos. Porém, por uma questão de positivismo jurídico e pacta sunt servanda, o Estado de Israel tem maior culpabilidade de violações quando age em excesso. A legítima defesa não comporta excessos, muito menos o exercício arbitrário das próprias razões.

Mais uma vez, dependendo de quem lê e analisa (subjetivismo), há, ou não, uma intolerância, no caso contra Israel. Primeiramente, não há um consenso sobre a definição exata de “terrorismo”. Nelson Mandela até 2008 era considerado “terrorista”. Quando pessoa, ou pessoas, agem para defender os seus direitos (liberdade individual, liberdade de crença, liberdade sexual etc.) não se pode ratificar que há terrorismo. No caso de Nelson Mandela ele queria os direitos humanos para os africanos pelas condições políticas impostas pelos ingleses (2):

Os Presidentes Carter e Reagan e o Congresso instituíram sanções contra o governo sul-africano de minoria branca devido à sua política de apartheid racial. Mas em 1986, Reagan condenou o grupo de Mandela, o ANC, que liderava a luta negra contra o regime do apartheid, dizendo que estava envolvido num "terror calculado... na mineração de estradas, nos bombardeamentos de locais públicos, concebidos para provocar mais repressão".

Depois de o regime do apartheid na África do Sul ter declarado o ANC um grupo terrorista, a administração Reagan seguiu o exemplo.

E no Brasil, podemos considerar que os atos antidemocráticos de 08/01/2023 são ou não criminosos? Houve uma movimento organizado, e não sou eu que afirmo, mas as autoridades, contra o Estado Democrático de Direito. Pessoas foram presas por incitarem os atos antidemocráticos. O crime consuetudinário não é uma invenção “da noite para o dia”, mas uma análise e confirmação doutrinária.

Se qualquer prova do Enem fosse colocado para os “enemeiros” — pessoas que fazem provas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) —, com certeza, cada “enemeiro” faria sua redação dissertativa-argumentativa com base em suas convicções pessoais (ideologia seja ela política, religiosa, filosófica, econômica etc.). A banca examinadora, composta por seres humanos, e cada qual com a sua ideologia, avaliaria cada redação dissertativa-argumentativa. A redação dissertativa-argumentativa deve conter tese, argumentos e contra-argumentos. Mais uma vez concordo, parcialmente, com a decisão da ministra Cármem Lúcia. No entanto, o Direito não é imutável. O Direito deve estar, constantemente, vigilante ao inconsciente coletivo e aos elementos da conduta humana (vontade, finalidade, exteriorização e consciência).

Em nenhum momento, no Brasil, houve uma ameaça contra o Estado Democrático de Direito. Poderíamos considerar uma ameaça ao Estado Democrático de Direito se, por exemplo, igrejas e terreiros de umbanda fossem proibidas de terem seus cultos abertos ao público e determinados pelo Estado.

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A CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPERIO DO BRAZIL (DE 25 DE MARÇO DE 1824):

Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo. (redação original)

Se pessoas de religiões diferentes, da não Católica Apostólica Romana, iniciassem rebeliões, e até armadas, poderíamos tipificar como terrorismo? Dificilmente, pelos conhecimentos atuais. Se o artigo, de alguma forma miraculosa, fosse trazido para a CRFB de 1988, então, há clara violação dos direitos humanos. Ainda que a CRFB de 1988 tenha a redação do Art. 5º, ela é inconstitucional. Como, se está na CRFB de 1988? Lembremos da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a norma constitucional sobre o depositário infiel (art. 5º, LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel).

Alhures disse que eu concordava, em parte, com a decisão da ministra Cármem Lúcia. Também declamei que o Direito é mutável e deve estar constantemente vigilante ao inconsciente coletivo. A frase “uma andorinha não faz o verão” é verdadeira. Única pessoa não tem voz capaz de mudar opiniões, mover pessoas numa direção etc. Tudo depende da tese, dos argumentos e contra-argumentos capazes de convencimentos.

A LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de um a três anos e multa.(Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Os verbos nucleares (praticar, induzir ou incitar) para a tipificação de crime. Num artigo publicado — Você sabe o que é "descontextualização" no processo eleitoral? —, a descontextualização. É possível praticar, induzir ou incitar por meio da descontextualização. Some descontextualização com o momento psicossocial e com o inconsciente coletivo. Quais ideologias presentes na sociedade brasileira estão comprometendo os direitos humanos? O fato humano é o fato tipificador de crime. O elementos do tipo penal (conduta, resultado, nexo causal, tipicidade) devem ser analisador à luz do momento histórico do Brasil. Logo, na atualidade, a decisão da ministra Cármem Lúcia não é possível.

Atualidade:

Brasileiros ligados ao Hezbollah preparavam ataques no Brasil, diz PF

A Polícia Federal prendeu duas pessoas nesta quarta-feira (8) suspeitas de ligação com o Hezbollah no Brasil. A PF também cumpriu 11 mandados de busca em Brasília, São Paulo e Minas Gerais.

Segundo a investigação, os brasileiros preparavam atos de terrorismo no Brasil, com focos em ataques a prédios da comunidade judaica.

Em Minas Gerais, foram cumpridos 7 mandados de busca e apreensão; no Distrito Federal, 3; e em SP, 1 de busca e 2 de prisão temporária.(3)

Prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Algum “enemeiro” faz apologia ao grupo Hezbollah no Brasil. Não ficou claro? Algum “enemeiro” faz apologia ao nazismo. Pela liberdade de expressão, a prova de redação não pode ser “zerada”.

Cármem Lúcia: "Não se combate a intolerância social com maior intolerância estatal". Concordo, "há meios e modos para se questionar, administrativa ou judicialmente, eventuais excessos" da liberdade de expressão. Entretanto, é preferível deixar acontecer para depois ocorrer ação do Estado ou reprimir de forma preventiva? Por isso, na atualidade, qualquer redação destoante dos direitos humanos deve ser “zerada”. É o Estado e sociedade brasileira a dizerem “NÃO!”, previamente. Além dessa prevenção, a prevenção e fomento dos direitos humanos por programas televisivos e por radiodifusão. Sejam a prevenção e fomento pelo Estado através das concessionárias (televisão e radiodifusão) ou pelo próprio Estado nas redes sociais e canais de streaming.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Tema 60 - Possibilidade de prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2343529&n...

UOL. "Merecem apodrecer na cadeia". Veja frases contra direitos humanos que zeraram redação no Enem. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/10/26/regra-sobre-direitos-humanos-na-redacao-esta-no-enem...

NOTAS:

(1) — G1. Enem: Cármen Lúcia nega pedido da PGR e da AGU para zerar redação que ferir direitos humanos. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/enem-carmen-lucia-nega-pedido-da-pgreda-agu-para-zerar-redac...

(2) — NBC NEWS. US government considered Nelson Mandela a terrorist until 2008. Disponível em: https://www.nbcnews.com/news/world/us-government-considered-nelson-mandela-terrorist-until-2008-flna...

(3) — CNN Brasil. Brasileiros ligados ao Hezbollah preparavam ataques no Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasileiros-ligados-ao-hezbollah-preparavam-ataques-no-brasil-...

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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