1. NORMAS JURÍDICAS: PRINCÍPIOS E REGRAS
O Direito Positivo, em todos os sistemas jurídicos, compõe-se de normas jurídicas. Estas são padrões de conduta postas pelo Estado com a finalidade de uma convivência harmônica entre os homens que vivem em sociedade. Desta forma, pode-se dizer que normas jurídicas são um modelo imposto de organização social.
Nas palavras de Rizzato Nunes (2003, p. 163), uma norma jurídica é um comando, um imperativo dirigido às pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas. Sua finalidade é a de regular as atividades dos sujeitos em suas relações sociais.
De acordo com Humberto Ávila (2011, p.30), as normas jurídicas não são textos, mas a interpretação que se dá do mesmo. Afirma, ainda, que as normas são construídas pelo intérprete a partir dos dispositivos, sendo estes o objeto da interpretação, e que por isto não se pode chegar à conclusão que este ou aquele dispositivo contém uma regra ou princípio. Esta qualificação vai depender da colaboração constitutiva do intérprete.
Assim, as normas subdividem-se em regras e princípios. As regras, disciplinam uma situação específica e quando ocorre essa situação, a norma tem sua incidência, quando não ocorre, não tem incidência; já os princípios são diretrizes gerais de um ordenamento jurídico.
A incidência de um princípio é muito mais ampla que a das regras, pois entre eles pode haver "colisão", não conflito e em caso de colidirem um não exclui a aplicação do outro. O mesmo não ocorre com as regras.
Citando o alemão Robert Alexy, Humberto Ávila (2011, p. 37), afirma que havendo colisão entre os princípios a solução não se dá pela determinação imediata da prevalência de um pelo outro, deve-se analisar a situação concreta e a partir dela ponderar qual princípio deve prevalecer. Os princípios, ao contrário das regras, possuem apenas uma dimensão de peso e não determinam as consequências normativas de forma direta.
O supramencionado autor afirma ainda que as regras são normas que podem ou não ser realizadas, quando uma regra vale tem que fazer o que ela determina, nada mais e nada menos. No caso de colisão entre as regras jurídicas será a contradição solucionada pela introdução de uma exceção a regra ou pela decretação de invalidade de uma das regras envolvidas.
Discorrendo sobre o tema, Ricardo Maurício Freire (2012, p. 55), afirma que um dos pontos em que os princípios destoam das normas jurídicas seria justamente no caso da antinomia entre as regras e a antinomia entre princípios. No caso de regras antagônicas a solução se daria pela exclusão de uma delas do ordenamento jurídico.
O supramencionado autor continua afirmando que já no caso dos princípios de direito, estes não podem ser expurgados da ordem jurídica, visto que eles devem conviver no mesmo sistema ainda que exista uma colisão entre eles no caso concreto. Pode-se utilizar mais de um princípio para a mesma situação jurídica, sendo que um poderá ter mais força que outro em uma determinada situação e em outras ocorrer o oposto.
No que concerne ao tema regras e princípios, Ricardo Maurício Freire (2012, p. 54) afirma que:
“as regras disciplinam uma situação jurídica determinada, para exigir, proibir ou facultar uma conduta em termos definitivos. Os princípios, por sua vez, expressam uma diretriz, sem regular situação jurídica específica, nem se reportar a um fato particular, prescrevendo o agir humano em conformidade com os preceitos jurídicos. Diante do maior grau de abstração irradiam-se os princípios pelos diferentes setores da ordem jurídica, embasando a compreensão unitária e harmônica do sistema normativo. Deste modo a violação de um princípio jurídico é algo mais grave que a transgressão de uma norma jurídica. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo um plexo de comandos normativos.”
Os princípios possuem função hermenêutica, sendo que todo ordenamento deve estar em acordo com os mesmos. Quando uma regra cabe mais de uma interpretação, a que deve prevalecer é aquela que mais a aproxima do preceituado pelos dos princípios.
A função interpretativa dos princípios, de acordo com Ricardo Maurício Freire (2012, p. 57), também serve para dar limite a atuação do interprete. Afirma o mesmo que “os princípios estabelecem referências, dentro das quais o hermêneuta exercitará seu senso do razoável e sua capacidade de fazer justiça diante de um caso concreto.”
Assim, pode-se afirmar que as normas jurídicas são o gênero do qual são suas espécies as regras e os princípios. As regras são as normas utilizadas para situações específicas enquanto a aplicação dos princípios se dá de forma mais abstrata. Contudo, é importante observar que os princípios como normas de interpretação devem ser observados também na própria aplicação das regras.
1.1 A concepção de princípios como normas
Foram com os pós-positivistas, contrapondo-se a visão lógico-normativa do direito, baseada em Hans Kelsen, que se passou a encarar os princípios como orientadores da formação do direito. Os princípios ganharam então status de normas jurídicas fundamentais. A validade dessas normas fundamentais passam a ser vistas não apenas pela sua forma, mas sobretudo pelo seu conteúdo em termos de princípios orientadores de interpretação.
Ruy Spíndola (1999, p. 55), afirma que atualmente não se discute mais acerca da concepção de princípios como normas jurídicas, visto que, já é pacífico este entendimento. Assim, os princípios possuem positividade, força vinculante, são normas, possuindo eficácia positiva e negativa sobre comportamentos públicos ou privados, bem como sobre interpretação e a aplicação de outras normas.
Rizzatto Nunes (2003, p. 163/164) destaca que os princípios estão no topo de qualquer sistema jurídico. Pondera, ainda, que a forma genérica e abstrata que reveste os princípios não significa a falta de sua incidência no plano da realidade, pois, pelo fato das regras incidirem no real, de modo que devam respeitar os princípios, gera, por consequência, a aplicação destes também no real. Afirma ainda que os princípios são norteadores de todas as demais normas existentes.
De acordo com Spíndola (1999, p. 125/126), Eros Grau é o primeiro a tratar, no Brasil, das diferenças que separam as regras jurídicas dos princípios jurídicos, como espécie do gênero norma jurídica. Destacando, que a interpretação da Constituição é dominada pela força dos princípios.
Partindo-se, então, da premissa que os princípios são normas fundamentais e que possuem normatividade, tem-se uma nova visão do conteúdo e alcance das normas constitucionais. Os princípios são a base da Constituição e, por consequência lógica, base de todo ordenamento jurídico também, visto a hierarquia em que se encontram as normas constitucionais.
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Antes de analisar os aspectos inerentes ao princípio do juiz natural no âmbito constitucional é importante fazer algumas ponderações a respeito do que vem a ser um princípio constitucional. Foi no Direito Constitucional que a teoria principialista do Direito ganha maior fundamento na ordem jurídica.
Os princípios constitucionais, segundo Luís Roberto Barroso (1999, p.147), constituem-se no “conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins... são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui."
Os princípios constitucionais são normas, explícitas ou implícitas, que determinam as diretrizes fundamentais da Lei Fundamental, bem como influenciam em toda a sua interpretação e aplicação.
A teoria principialista do Direito tem no Direito Constitucional seu maior expoente, possuindo nesse ramo do direito maior amplitude no sentido de dar fundamento da ordem jurídica. Ruy Samuel Spíndola (1999, p. 72) afirma que foi no Direito Constitucional que:
“...a teoria dos princípios ampliou o seu raio de circunferência científica, ganhando mais vigor, latitude e profundidade para desenvolver-se, pois seu campo, agora, é o universo das constituições contemporâneas, é o estalão das normas constitucionais, é o da explicação conceitual e iluminação das positivações normativas de realidades jurígenas mais vastas e complexas, reflexos da estatuição jurídica do político. Agora, ela se ocupa da tarefa de demarcar os limites de eficácia das normas constitucionais principais. Agora, dela se exige iluminação teórica sobre as grandes reflexões dogmáticas encetadas a respeito da concretização normativa das constituições, no que tange aos seus núcleos principais e, mesmo, aos regrísticos.”
Os princípios jurídicos constitucionalmente previstos, sem dúvida, possuem, função hermenêutica e diretiva, atuando como alicerces para o estudioso e o aplicador do direito. Através das normas principiológicas, o aplicador do direito alcança situações da vida não expressamente previstas.
Além de influenciarem na interpretação da legislação infraconstitucional, deve se destacar que os princípios atuam também em sede das próprias normas constitucionais, inclusive para solução de colisão na aplicação dos mesmos.
A diferença entre regras e princípios como espécies do gênero norma, bem como as demais problematizações dela decorrentes, formam o alicerce para sólida compreensão da atual natureza principialista do Direito contemporâneo. Os princípios enquanto normas, desempenham a função de dar fundamento material e formal aos subprincípios e demais regras integrantes da sistemática normativa.
Por sua própria essência os princípios evidenciam mais que meros comandos genéricos presentes em normas. Expressam também as opções políticas fundamentais e os valores éticos e sociais de um Estado ou Sociedade. A generalidade dos princípios constitucionais não significa imprecisão. Segundo a Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmem Lucia Rocha, citada por Samuel Spíndola (1999, p. 79), “a generalidade dos princípios permite, pois que sendo a sociedade plural e criativa, tenha seu sistema de Direito sempre atual” porém, “isto sem se perder ou mascarar modelos contrários aos que na Lei Magna se contem como opção constituinte da sociedade política.”
Os princípios gerais do direito, como já afirmado neste trabalho, tem natureza jurídica de lei, de preceito jurídico. A Ministra Carmem Lúcia Rocha, citada por Ruy Spíndola (1999, p. 76), sintetiza bem a natureza dos princípios constitucionais afirmando que:
“Os princípios constitucionais são os conteúdos primários diretores do sistema jurídico-normativo fundamental de um Estado. Dotados de originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que formam o ordenamento constitucional os valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito em princípios. Adotados pelo constituinte, sedimentam-se nas normas, tornando-se, então, pilares que informam e conformam o Direito que rege as relações jurídicas no Estado. São eles, assim, as colunas mestras da grande construção do Direito, cujos fundamentos se afirmam no sistema constitucional (...).”
Desta forma, os princípios constitucionais são postos no ponto mais alto da escala normativa, possuindo assim força de norma, normas supremas do ordenamento jurídico. Servem de pautas ou critérios por excelência para avaliação de todos os conteúdos constitucionais e infraconstitucionais.
3. O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
O processo em qualquer âmbito do direito está subordinado aos princípios constitucionais. Nelson Nery (1997, p. 76), afirma que o princípio constitucional fundamental do processo civil é o do devido processo legal, expressão oriunda da inglesa due process of law.
A garantia do devido processo legal primeiramente surgiu na Carta Magna de 1215, outorgada por João Sem-Terra, posteriormente ganhando status constitucional primeiro nos Estados Unidos e depois em países europeus, como a Itália, Portugal, Espanha e Alemanha. Possui previsão expressa no art. 5º, LIV, da Constituição Federal nos seguintes termos: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
O devido processo legal é a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo a pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível. Deve se fazer presente durante todas as etapas do processo judicial permitindo as partes exercerem seus direitos.
Sobre o tema, Humberto Theodoro Junior (2009, 24), pondera que referido princípio não se exaure na observância das formas da lei para a tramitação das causas em juízo. Abarca também algumas garantias fundamentais como o juiz natural, o acesso a Justiça, a ampla defesa e o contraditório, entre outras.
O princípio do devido processo legal é um direito fundamental de conteúdo complexo. Assimilando-se a ideia de devido processo legal à de processo justo. De acordo com Nelson Nery (1997, p. 90), pode-se chegar a conclusão que um processo justo pressupõe a incidência:
“...da isonomia; do contraditório; do direito à prova; da igualdade de armas; da motivação das decisões administrativas e judiciais; do direito ao silêncio; do direito de não produzir prova contra si mesmo e de não se auto-incriminar; do direito de estar presente em todos os atos do processo e fisicamente nas audiências, do direito de comunicar-se em sua própria língua nos autos do processo; da presunção de inocência; do direito de duplo grau de jurisdição no processo penal, do direito a publicidade dos atos processuais, do direito a duração razoável do processo; do direito ao julgador administrativo e ao acusador e juiz natural; do direito a juiz e tribunais independentes e imparciais; do direito de ser comunicado previamente dos atos do juízo, inclusive sobra as questões que o juiz deva decidir ex officio, entre outros derivados da procedural due process clause.”
O due process of law, realiza entre outras funções, a de um superprincípio, coordenando e delimitando todos os demais princípios que informam o processo, bem como o procedimento. O papel deste princípio é agir sobre os mecanismos procedimentais de modo a preparar e proporcionar provimento jurisdicional compatível com a supremacia da Constituição e a garantia de efetividade dos direitos fundamentais.
Ricardo Maurício Freire (2008, p. 67), conclui que o devido processo legal é uma garantia constitucionalmente prevista em prol de todos os cidadãos, assegurando tanto o exercício do direito de acesso ao Poder Judiciário, com todas as garantias da lei processual, como também o desenvolvimento legítimo do processo de acordo com normas previamente estabelecidas. Portanto, além de ter direito ao processo, o cidadão também tem direito a um processo com regularidade, seja ela formal ou material, e com efetividade e legitimidade.
3.1 Juiz Natural como dimensão do devido processo legal
Por ser uma espécie de princípio base, do princípio do devido processo legal decorrem vários outros. Dentre estes pode-se citar o princípio do contraditório, ampla defesa, isonomia e juiz natural.
Assim, o princípio do juiz natural é decorrente do princípio do devido processo legal, no sentindo de constituindo-se como uma garantia conduza a um julgamento justo, equânime, imparcial, por um juiz constitucionalmente competente, isto independentemente do grau de jurisdição.
O princípio do juiz natural deve ser interpretado em sua plenitude, assim além de proibir a criação de tribunais ou juízos de exceção também deve seguir as regras objetivas de determinação de competência, no sentido de não afetar a independência e imparcialidade do órgão julgador. (FREIRE, 2008, 76)
4. SIGNIFICADO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
4.1 Breve histórico do princípio do juiz natural
O princípio do juiz natural tem sua origem na Lei Magna de 1215, porém não ainda com esta denominação. Tal carta previa que os processos deveriam ser julgados no local onde ocorreram os fatos, delimitando assim a competência jurisdicional para o julgamento das causas.
Mais tarde o princípio é contemplado na Petition of Rights de 1628 e na Bill of Rights de 1688. Nestas, dito princípio já ganha contornos mais modernos ao trazer a previsão da proibição do juiz post facto e de juízos extraordinários.
Assim, percebe-se que tal princípio, que hoje possui dupla garantia, quais sejam, garantia de um juiz competente e vedação a tribunais de exceções, logo em seu surgimento não possuía essas duas características. Primeiro ocorreu o asseguramento do juiz competente para só séculos depois ser garantida a vedação dos tribunais de exceção.
O nome juiz natural, no entanto, só apareceu na Carta Magna Francesa de 1814. No constitucionalismo francês o princípio se manifestou com tríplice garantia, opondo-se aos institutos da:
“a) comissão, com a proibição de juízos extraordinários, ex post facto, fora da organização judiciária; b) evocação, com a impossibilidade de derrogação de competência, impedindo-se o julgamento proferido por órgão diverso do previsto em lei, embora pertencente à organização judiciária; e c) atribuição, coma a vedação de juízos especiais. Em sua evolução, os textos constitucionais posteriores, de 1814, 1830 e 1848 (art. 4º, Cap. II), acabaram ligando a garantia exclusivamente à proibição dos juízos extraordinários.” (FERNANDES, 2010, p. 123/124)
A partir daí várias legislações em que há um Estado Democrático de Direito passaram a adotar tal princípio ainda que com denominações diversas. Na Espanha é chamado de “juiz competente”, já na Alemanha de “juiz legal”, porém com as mesmas concepções. Na Itália assim como no Brasil é utilizada a expressão “juiz natural”.
No nosso ordenamento há divergência quanto a previsão do referido princípio. Há os que afirmem esteve presente em todas as constituições, exceto na de 1937, ainda que com designações diversas.
Porém, o que se pode afirmar é que no Brasil a constituição de 1934 foi a primeira a tratar do princípio com o contorno que ele se apresenta hoje, apesar de alguns doutrinadores afirmarem existir resquícios do mesmo nas constituições anteriores. Apesar da previsão referida constituição expressamente violava o princípio, pois nela havia previsão do chamado Tribunal de Segurança Nacional, não como um órgão criado para julgamento específico de casos já ocorridos, mas como órgão de exceção que se mantinha atrelado ao Estado autoritário.
Na constituição de 1988 ele está presente no artigo 5º, XXXVII e LIII, com a previsão da proibição de tribunais de exceção e determinação de que o processo se submeta a um juiz competente, respectivamente.
4.2 Noção introdutória do princípio do juiz natural
Feitas as devidas observações gerais a respeito dos princípios constitucionais, parte-se então para o estudo específico do princípio constitucional do juiz natural. O princípio do juiz natural tem relevância quando da análise dos princípios que fundamentam o direito processual, ou seja, no âmbito normativo legal do sistema jurídico. Sua observância é possível tanto no âmbito do processo civil e administrativo quanto do processo penal.
O supramencionado princípio na sua origem tinha por finalidade limitar o poder dos monarcas. Com influência dos ideais iluministas, pretendia-se separar a administração da justiça, com o intuito de proteger o judiciário das intromissões dos chefes de Estado. Assim, de acordo com Alexandre de Morais “a imparcialidade do Judiciário e a segurança do povo contra o arbítrio estatal encontram no princípio do juiz natural uma de suas garantias indispensáveis.” (MORAES, 2012, p. 98)
O princípio supramencionado foi contemplado na constituição em seu art. 5º, incisos XXXVII, o qual traz que “não haverá juízo ou tribunal de exceção” e LIII, preceituando que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. O primeiro inciso proíbe a existência de tribunais de exceção e o segundo proíbe o julgamento por juiz que não seja competente para a causa.
Nelson Nery Junior (1997, p. 66/67) caracteriza a garantia do juiz natural como tridimensional estabelecendo que: 1) não haverá juízo ad hoc, isto é, tribunal de exceção; 2) todos tem o direito de submeter-se a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-constituído na forma da lei e 3) o juiz competente tem que ser imparcial.
Ainda de acordo com Nelson Nery Junior (2007, p. 131), o princípio do juiz natural se traduz primeiro na exigência de determinabilidade, ou seja, prévia individualização dos juízes por meio de leis gerais, segundo pela garantia de justiça material, que consiste na independência e imparcialidade dos juízes, em terceiro na fixação da competência através de critérios objetivos e por último na observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna.
Não há como negar que o princípio do juiz natural é uma garantia do Estado Democrático de Direito, servindo de proteção do cidadão aos desmandos que possam ser advindos do Poder Público. Possui como conteúdo básico o fato de que é a lei maior que atribui a competência e distribui e legitima o exercício da jurisdição.
4.3 Natureza Jurídica
Outro ponto relevante a ser discutido quanto ao princípio do juiz natural é o concernente a sua natureza jurídica. Na doutrina há discussão neste aspecto do referido princípio.
Para Ada Pelegrini Grinover, Antônio Scarence Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, citados por Vladimir Stasiak (2000), afirmam que a não observância do referido princípio caracteriza a inexistência do processo. Entendem, assim, que o juiz natural é um pressuposto processual de existência da jurisdição.
Os supramencionados doutrinadores, afirmam que por tratar-se de competência constitucional, não haverá processo na violação ao princípio do juiz natural na medida que o entende como pressuposto da própria jurisdição, assim haverá inexistência do processo e não a sua nulidade.
Já um segundo posicionamento, defendido, por exemplo, por Maria Lucia Karam, citada por Stasiak (2000), afirma que a ausência do princípio do juiz natural tornaria o processo nulo, uma vez que tal princípio seria um pressuposto de validada do processo.
Porém, a consequência jurídica para as duas correntes é a mesma. Assim, argumentam que por se tratar de uma competência constitucional, os atos praticados não poderiam ser aproveitados. Esse entendimento pacífico, sendo adotado tanto por aqueles que enxergam o princípio do juiz natural como pressuposto de existência como pelos que defendem que na realidade trata-se de um pressuposto de validade.
4.4 O juiz natural e o juízo ou tribunal de exceção
O princípio do juiz natural tem por uma de suas bases fundantes a proibição de tribunais de exceção. No que diz respeito a este aspecto a Constituição Federal traz a seguinte previsão, em seu 5º, incisos XXXVII: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
Por tribunal de exceção entende-se aquele tribunal criado, de forma temporária ou permanente, para determinados casos, o que é proibido pela carta magna a qual não admite qualquer juízo não contemplado em seu texto.
Consubstancia-se assim, o tribunal ad hoc, na necessidade de prévia determinação do juízo competente para o processo e julgamento, sendo vedada a designação de tribunais para casos específicos. Esta regra deve ser observada tanto no primeiro grau de jurisdição quanto no segundo.
O princípio do juiz natural coibe a criação de um tribunal para fato específico. Levando-se em consideração que a finalidade do referido princípio é a garantia de imparcialidade e isonomia entre os jurisdicionados nada impede que o órgão seja criado após o fato, desde que criado abstratamente e não para julgamento de um caso determinado. Desta forma conclui-se que o que não pode ocorrer é a criação de um tribunal para caso especifico independentemente do fato ter ocorrido antes ou depois da criação do tribunal.
Assim, nada impede a alteração da competência de um determinado órgão jurisdicional ou a criação de um novo tribunal, desde que não seja para um fato concreto e determinado. Levando-se em consideração que na legislação pátria não há previsão do princípio da anterioridade do juiz natural torna-se perfeitamente possível as modificações de competência, as substituições, o desaforamento e as prorrogações de competência, tudo por meio de elaboração legislativa posterior aos fatos e que serão julgados pelo novo tribunal. Para tanto, basta que sejam obedecidos os parâmetros constitucionais e observados a generalidade e abstratividade, não ferindo assim o princípio ora estudado.
O tribunal de exceção é aquele que é instituído para o processamento e julgamento de determinado caso, sem que sua instituição decorra da constituição. Fernandes (2010, p. 125) leciona que isto não significa que não poderão ser criadas varas especializadas ou uma justiça especializada, nestes casos ocorre a atribuição de julgamento a órgãos inseridos na estrutura judiciária fixada na Constituição de competência para o julgamento de matérias específicas como, por exemplo, a Justiça Eleitora, Justiça Militar, entre outras.
A justiça especializada, embora criada para julgar casos específicos não afasta a imparcialidade e impessoalidade do juiz, garantindo assim tratamento isonômico as partes, o que não ocorre em um tribunal de exceção. Como exemplo, no Brasil, da criação de justiça especializada, que não acarretou no afastamento do juiz natural, tem-se a criação dos juizados especiais. Nas palavras de Nelson Nery Junior (2007, p. 127):
“Assim como o poder do Estado é um só (as atividades legislativa, executiva e judiciária são formas e parcelas do exercício desse poder), a jurisdição também o é. E para facilitação do exercício dessa parcela de poder é que existem as denominadas justiças especializadas. Portanto, a proibição da existência de tribunais de exceção, ad hoc, não abrange as justiças especializadas, que são atribuição e divisão da atividade jurisdicional do Estado entre vários órgãos do Poder Judiciário.”
Fernandes Scarense (2012, p 126), afirma que a Constituição Federal consagra como um de seus direitos e garantias fundamentais, o julgamento da lide por órgãos jurisdicionais já existentes. Não se pode criar tribunais após verificado o fato que motivou a busca da prestação jurisdicional do Estado. Ou seja, objetivou-se erradicar o chamado tribunal de exceção, juízos ad hoc, devendo permanecer apenas, a existência dos chamados tribunais comuns.
Existe na legislação pátria a previsão da prerrogativa de foro, a qual não pode ser confundida com juízo de exceção. O foro privilegiado é dado a certas pessoas em razão de interesse público.
Assim, o poder jurisdicional dado ao Senado Federal para julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade, previsão no art. 52, I da Constituição Federal, constitui manifestação de prerrogativa de foro em razão da função, mas não tribunal de exceção. É por assim dizer, antes de se caracterizar como privilégio, uma garantia assegurada à independência e imparcialidade da justiça, destinada a proteger o interesse público geral.
Outra hipótese em que não há violação a vedação ao tribunal de exceção é quando é permitido as partes elegerem livremente um foro para dirimir determinadas controvérsias, sem que isso afronte o princípio do juiz natural. Tal possibilidade, no entanto, limita-se às hipóteses em que a competência não é determinada de forma absoluta, ou seja, nos casos em que o interesse das partes é disponível.
Pode-se concluir então que, o princípio do juiz natural pressupõe a vedação de instituição de tribunais de exceção, assim entendidos aqueles juízos extraordinários, constituídos ad hoc, para o julgamento de casos específicos, que já tenham ocorridos ou não. Isso independentemente se provem ou não de lei a deliberação de instituí-los, quer seja um órgão que já existe ou que seja novo, órgão ordinário, ou especial, a que se confere o julgar excepcionalmente.
Porém deve-se perceber que não constitui, todavia, tribunais de exceção as justiças especializadas, o juízo eleito pelas partes, o órgão julgador não integrante do Judiciário, mas detentor de competência atribuída pela Constituição para o julgamento de algumas hipóteses previamente determinadas.
4.5 O juiz natural e o juízo competente
O princípio do juiz natural, como já mencionado, possui previsão constitucional em duas passagens. Uma delas está no art. 5, LIII, CF, o qual, preceitua que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
Ricardo Maurício Freire (2010, p. 167), afirma que nesta perspectiva o princípio do juiz natural “prevê a garantia da existência da autoridade competente, impondo a exigência de órgão jurisdicional cuja competência esteja previamente delimitada pela legislação em vigor”. Tal preceito constitui-se em uma ampla garantia já que se veda tanto o início e desenvolvimento do processo por juiz incompetente como também a sentença a ser prolatada por este.
Complementa ainda, o supramencionado autor, que “com isso, exprime-se a garantia constitucional de que os jurisdicionados serão processados e julgados por alguém legitimamente integrante do Poder Judiciário, com base na Carta Magna e nas leis infraconstitucionais.” Porém, cabe ressaltar, que nem sempre esse julgamento será realizado pelo Poder Judiciário, visto haver exceção constitucionalmente prevista como, por exemplo, o julgamento do Presidente e Vice-presidente da República pelo Senado nos crimes de responsabilidade.
Por juízo competente deve-se entender aquele que é constitucionalmente estabelecido para o julgamento de uma causa. Neste aspecto, é possível que um órgão infraconstitucional estabeleça regras de competência desde que adstritas as diretrizes básicas da Constituição Federal.
O surgimento dos juizados especiais caracteriza isso, estavam previstos na Constituição e quando implementados a remessa dos processos em andamento para tais juizados não configurou violação ao princípio do juiz natural.
Com relação ao inciso LIII do art. 5º da Constituição Federal, no que tange a competência, Greco Filho, citado por Scarense Fernandes (2012, p. 126), entende que “as regras de competência devem ser instituídas previamente aos fatos e de maneira geral e abstrata de modo a impedir a interferência autoritária externa”. Assim, não se pode afastar o magistrado competente, muito menos escolher o juiz para determinado caso.
Quando ocorre um determinado fato jurídico, sendo proposta uma ação, pelas regras de competência tem-se como apontar de pronto o juiz competente. O que pode ocorrer é um conflito de competência, o qual poderá ser negativo ou positivo.
O conflito de competência positivo ocorre quando dois ou mais juízes se declaram competentes para determinada ação e o negativo quando é o caso de dois ou mais juízes se declararem incompetentes. Mas nestes casos a solução é dada pela própria lei. Trata-se de um incidente processual que é remetido ao Tribunal competente para apreciar o conflito.
Há, também, os casos de deslocamento da competência como, por exemplo, o que ocorre no desaforamento do tribunal do júri, mas essa situação é exceção determinada pelo interesse público e da justiça, sem que com isso se deixe de se ter um julgamento justo.
O desaforamento está previsto nos arts. 427 e 428 do Código de Processo Penal. É um instituto pelo qual um julgamento tribunal do júri pode ser enviado para outro foro nos casos previstos em lei, quais sejam: interesse da ordem pública, dúvida sobre a imparcialidade do júri ou comprometimento da segurança pessoal do acusado. Deve o novo foro ser o da cidade mais próxima do local que foi desaforado.
O magistrado só poderá ingressar no exame de questões processuais ou de mérito após ser afirmada e confirmada a competência e imparcialidade do juiz para determinada causa, sob pena de violar a garantia constitucional do juiz natural. Deve-se observar criteriosamente todas as regras de competência até para que não haja prejuízo para as partes. As consequências para o processo vai depender se é o caso de competência relativa ou absoluta.
A competência relativa por não dizer respeito a matérias de ordem pública é prorrogável, devendo ser suscitada pelas partes e não podendo ser declarada de ofício. Parcela da doutrina ensina que o ato praticado por juízo incompetente não será nulo, mas poderá ser revisto pelo juízo competente que poderá mantê-lo, modificá-lo ou revogá-lo. O Superior Tribunal de Justiça entende que atos praticados por juiz relativamente independentes são válidos.
Já no caso de competência absoluta, por tratar-se de matéria de ordem pública, poderá ser conhecia de ofício a qualquer tempo, pois não preclui. Os atos praticados por juiz absolutamente incompetente serão nulos, mesmo após o trânsito em julgado poderá ser objeto de ação rescisória.
O juiz é competente para uma causa quando está previamente definido, de forma abstrata, e de acordo com critérios preceituados nas normas constitucionais e infraconstitucionais. É um direito do cidadão ser julgado pelo juiz competente.
REFERÊNCIAS
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