1. O dramaturgo Eugene O’Neill fez parte da geração de escritores americanos da ‘Era de Ouro’ da literatura em seu país, na primeira metade do Século XX.
Escreveu a peça “Longa Jornada Noite Adentro”, tratando das tensões familiares, ideológicas e profissionais (tidas então como ‘vocações’), resultando em uma visão de destino, deixando traços amargos que o atormentaram por toda a vida.
Esse mergulho catártico só foi possível porque O’Neill impediu-se de vê-lo encenado.
Ele não permitiu que a peça fosse montada em vida, de modo que ela só lhe trouxe mais uma consagração, mas post mortem.
Ele também foi pai de Oona O’Neill, casada com Charles Chaplin, com quem viveu os anos finais de afastamento e contemplação do mundo, na encantadora cidade de Vevey (Corsier-sur-Vevey), na Suiça, onde o casal tinha uma propriedade na localidade de Manoir de Ban.
O consagrado ator costumava passar as tardes alpinas no jardim, vislumbrando as margens do Lac Léman, que também banha Genebra, desde que havia dirigido seu último filme, “A Condessa de Hong Kong”, uma comédia romântica com Marlon Brando e Sophia Loren.
Chaplin havia tido uma infância miserável em Londres, uma juventude aventurosa com troupes de encenação vaudeville e, enfim, tornou-se um profissional completo nos EUA, quando surgia o cinema.
Ali teve seu merecido êxito, tornou-se celebridade inconteste, foi sócio do estúdio cinematográfico United Artists e sofreu perseguição do macartismo, o que deu causa ao seu exílio da pátria de adoção.
Ainda assim, quando retornou aos EUA já bem idoso, foi para agradecer ao sweet people americano, que então o reverenciava com um prêmio.
2. Os americanos também inventaram uma metodologia de análise, a que deram o nome conhecido como case study – estudo de caso.
Ela está consagrada como um tipo de abordagem múltipla de um fenômeno, uma obra, um acontecimento, sempre pelos seus variados aspectos e causas, de modo a conseguir uma análise ampla, mas concentrada em um só tema.
O estudo de caso em política, sociologia, história, economia e na psicanálise acabou se tornando o melhor método quando os dados informativos vêm de várias fontes, e o rigor analítico só é obtido considerando-se todas elas.
Talvez essa técnica nos permitisse avançar em um paralelo que pudesse ser estabelecido entre as visões de mundo, no final da vida, de Eugene O’Neill e de seu genro Charles Chaplin, mas esse não é o tema que aqui se propõe, embora a riqueza de tal comparação não fosse pequena.
3. Nosso mergulho, ou “Longa Jornada Noite Adentro”, tem como tema de interesse gritos que vêm de Xanxerê e estão em todos os media, com maior precisão ou exagero, como fonte de estrépito público ou de escândalo; como um vício escondido ou como a exaltação da prepotência a que chegou o apparatchik judiciário.
4. Mas, temos de reconhecer, Xanxerê não está no mapa mais visível do mundo.
Não tem o encanto de Vevey.
É uma localidade no Oeste de um pequeno Estado, tem nome indígena mas não tão belo como o da também remota Tupaciretã, que – oriundo do tupi-guarani tupã ci retã – quer dizer “Deus Passou por Aqui”, o que não é nada mau para um país com muitíssimas localidades dignas da triste expressão ‘Onde o Diabo Perdeu as Botas’.
O que aconteceu lá? Uma juíza conduziu uma audiência de instrução realizada por videoconferência e mostrou-se exaltada pela falta de compreensão do que desejava ver expressado, seja por dificuldade de entendimento das pessoas com quem falou, seja porque o sistema da audiência não presencial é – e será sempre – precário.
Disso resultou uma exigência de tratamento cerimonioso e a dispensa precipitada de testemunha, que não se teria mostrado educada a ponto de entender a liturgia da audiência.
5. Começando pelo mais óbvio, teremos que admitir que houve, diante da recente pandemia da Covid 19, uma adaptação do modo operacional do Judiciário, que persiste até hoje, admitindo o home office, as audiências remotas, a digitalização dos processos judiciais, a ausência da autenticação das peças pelas vias tradicionais de visu e... como se esperava ser o efeito mais deletério do ‘bug do milênio’, que aqui acabou acontecendo de outra forma, mais retardada, a praga do recorta-e-cola, logo seguida das novas mitologias também nocivas da advocacia e judicatura predatórias e da inteligência artificial, quando usada como pretensa fonte do saber jurídico.
6. Entretanto, a partir dos anos 1930/40 do século passado, quando foram feitas as principais consolidações de leis e códigos temáticos, o princípio da imediação foi consagrado. Isto quer dizer, simplesmente, que a justiça deve ser prestada diante das pessoas que a pedem.
É o que se vê sustentado, por exemplo, nos primeiros compêndios de Direito do Trabalho, dos autores clássicos, e nas excelentes exposições de motivos do ministro Francisco Campos, tão elevadamente técnicas que nunca ficaram obscurecidas por suas simpatias políticas.
Não mais que de repente, o princípio da imediação foi assassinado. Está morto.
E os assassinos estão soltos.
Até mesmo o Supremo Tribunal Federal hoje pratica o que pareceria ser obra do Expressionismo Alemão, com sua estética gótica e sombria que anunciava o nazismo: o julgamento não presencial de crimes, ainda que na instância originária, por via do plenário virtual, no rumoroso caso das invasões às sedes dos Poderes, em 8 de janeiro.
O réu e seu advogado ausentes.
Não há debate.
O voto é eletrônico.
Já nos Estados Unidos, onde ocorreu a invasão do Capitólio, com mortes, em 6 de janeiro de 2021, sob os auspícios do então presidente Donald Trump, seu explícito incitador, os acusados estão sendo julgados por juízes de primeiro grau, com obediência ao devido processo, o que inclui a instrução e o veredito presenciais.
7. Portanto, há um pano de fundo para os gritos de Xanxerê. Eles são o eco de que há uma violência mantenedora de atos jurisdicionais que estão em confronto aberto com as disposições da lei, e são essas disposições que têm – ou deveriam ter – o conjunto de garantias capazes de revestir o procedimento judicial, que se conclui sempre como sendo impositivo.
Este é elenco de situações determinantes deve ser considerado por quem tenha honestidade de propósitos e conhecimento técnico do Direito para não invocar a lei como vingança:
(I) A Justiça do Trabalho foi concebida regionalmente, e assim funcionou durante décadas.
A criação de um Conselho Superior da Justiça do Trabalho, apenas para copiar o Conselho da Justiça Federal, foi uma anomalia, pois a recriação da Justiça Federal em 1967 guardava a estrutura de uma organização judiciária nacional, tanto que – originalmente – nem existiam os Tribunais Regionais Federais, bem ao contrário da organização judiciária trabalhista, regionalizada ab origine.
Entretanto, em que pese a autonomia administrativa dos TRTs, a partir de determinado tempo, no final do século passado, passaram a ser realizadas remoções e permutas de juízes, que haviam feito concurso em tribunais diferentes.
A LOMAN nunca previu isso. Essa invenção teve propósitos corporativos de beneficiar a parentes e protegidos da nomenklatura.
A razão é simples: o concurso judicial habilita para a posse e o exercício de um cargo específico, que é vitalício, e não para todo e qualquer cargo da mesma categoria funcional, mas situado em outro lugar.
A movimentação administrativa criou um vai-e-vem que teve de ser disciplinado e até um concurso nacional precisou ser implantado.
Tudo à margem da lei e em detrimento da autonomia administrativa dos Tribunais Regionais.
Isso poderia indicar apenas uma discussão teórica, não tivesse a juíza de Xanxerê ingressado no TRT da 24ª Região, em Mato Grosso do Sul.
Além do imbroglio administrativo, o vasto território nacional mostra que há diferenças culturais marcantes, etnias variadas, traços de evolução histórica muito diferenciados, até de prosódias e, como sabiam já os juristas da Antiguidade, o costume complementa a lei.
A par da diversidade de hábitos sociais, houve também um grande interstício entre a criação do TRT-12R e do TRT-24R, e esse tempo histórico conta como diferenciador.
Quando a juíza de Xanxerê tomou posse, fez um discurso que ela mesma publicou, mostrando tal primarismo de intenções que a deixou ao desamparo intencional de cumprir os encargos da investidura, como pode ser verificado – sem nenhuma chance de interpretar diferentemente – na publicação feita, que se encontra na Internet.
Isso poderia parecer um ponto incontornável: uma concursada que é aprovada, mas não percebe quais são os grandes compromissos em que se envolve impositivamente.
Porém, esta pergunta exige que se ponha o verbo no condicional: quantos pensam exatamente assim, estão na mesmíssima situação, mas apenas tiveram a sorte – até aqui – de escamotear seus propósitos arrivistas?
Vale lembrar que o min. Joaquim Barbosa expulsou do plenário do STF um advogado rebotalho que se embebedou e foi ofender gratuitamente a Corte, a propósito de fazer defesa de seu cliente.
Nada aconteceu depois.
Nem mesmo a cassação da carteira do insolente.
No RGS, em uma audiência antiga, um juiz substituto, vendo uma advogada em situação de espera que cruzava repetidamente as pernas, mostrando coxas que lhe pareceram insinuantes, determinou sua retirada do recinto, o que foi cumprido.
Tal juiz acabou sendo nomeado ministro do TST e a advogada do apelo tido por lúbrico fez concurso e hoje é corregedora de um TRT.
Portanto, também nesse caso, nada aconteceu de corretivo depois.
(II) Termina novembro de 2023 com uma comemoração não menos espetaculosa do que a repercussão do episódio de gritos em Xanxerê.
É que o CNJT aceitou e regulou o pagamento de mais um penduricalho à magistratura, qual seja a concessão de uma licença por acúmulo de processos, que já existia na forma de gratificação, a partir da carga de 1.500 em trâmite, mas foi reduzida para apenas 750, fixada em 1/3 dos dias do mês, conversíveis in pecúnia.
Tudo sem lei.
Os integrantes do Conselho foram ovacionados pela grande claque presente.
Aos aplausos, seguiram-se os memes nas redes sociais.
Os representantes da nomenklatura sentiram-se vitoriosos e, como a manobra invocava a simetria com o Ministério Público, imediatamente eles passaram a ser designados com “os simétricos”.
Como talvez se meça a glória imerecida pela estupidez, o neologismo parece apropriado.
Tudo isso, porém, é pura ilusão: o MP dará o próximo passo desse que é um descompasso institucional, e fará o mesmo nos próximos dias, e a corrida pela dissimetria continuará até todos ficarem loucos, antes de ficarem ricos.
Ou já estão?
A repercussão social, política, econômica e institucional desse fato, e suas implicações na instabilização do que os loquazes repetem ser “o Estado Democrático de Direito” é infinitamente mais impactante do que os gritos de Xanxerê.
(III) A realização de audiência remota em Xanxerê é inexplicável. O sistema informatizado tem os seus descompassos, às vezes com o som, outras com a imagem.
Além disso, segundo revelou o advogado de uma das partes (isso é audível e foi transcrito em sites e jornais que abordaram o tema, e foram muitos) a testemunha que estava depondo se encontrava em uma feira.
Salta aos olhos que ninguém, em lugar nenhum do mundo civilizado, pode depor como testemunha juramentada enquanto faz compras ou trabalha como feirante.
Deve ser considerado que a Corregedora Geral da Justiça do Trabalho quis o retorno completo à prestação jurisdicional presencial, mas sua determinação encontrou fortes resistências porque haveria controles e eles seriam arbitrários.
É claro que a via encontrada sempre retorna à inspiração autoritária, pois criou-se o vício da invasão da competência sob determinação singular, sempre de caráter impositivo.
Se havia sido autorizado o trabalho remoto durante a pandemia por via remota, ele deveria ter sido revogado da mesma forma, quando a emergência da terminou, isto é, de maneira expressa e por colegiado, afinal é assim que atuam os tribunais.
Vendo o exemplo de outros países, observa-se que os Judiciários da Inglaterra, França e EUA continuaram operando durante a pandemia, tal como ocorreu em outras situações, como as de guerra, e – embora seu elevado grau de desenvolvimento tecnológico – essas nações mantém os autos processuais da maneira tradicional, em papel, e as sessões presenciais. E não anunciam mudanças.
(IV) O TRT-12R não foi feliz na nota pública que emitiu sobre o caso. Deu a entender que a juíza sofre das faculdades mentais, e isso autorizou a imprensa a vasculhar (e a expor) dados de seu histórico médico.
Ou seja, a fratura foi agravada – gratuitamente - para fratura exposta.
A Corte também não poderia aplicar uma suspensão parcial dos atos jurisdicionais, cautelarmente, tanto por falta de previsão na lei, como porque – se vier a ser constatado o caso de punição – as penas finais serão as de advertência ou censura, e nenhuma delas implica em suspender do exercício pleno do cargo. Assim, não poderia haver uma antecipação de pena quando ela não está prevista para ser aplicada no julgamento final.
O CNJ, órgão que cultiva intensamente a presença nos media, não poderia ficar para trás e já anunciou a abertura de investigação com propósitos disciplinares. E logo vazou para os media.
Nenhuma voz solidária, compreensiva ou – no limite – de defesa da magistrada foi ouvida, e não será, pois o apparatchik é auto preservacionista e – eufórico por se haver tornado, por pura coincidência, a sede principal dos simétricos – tem todas as razões para calar.
8. Neste mês de novembro que termina, o telescópio James Webb, dotado dos maiores recursos tecnológicos já reunidos, levou o olhar humano para onde nunca tinha ido e, saindo da Via Lactea, conseguiu fotografar o coração da nossa galáxia.
Essa é outra coincidência, mais intrigante, pois o primeiro grande ideólogo de “o meio é a mensagem”, que recuperou o uso da expressão latina media (plural de medium, meio), o acadêmico canadense Marshall McLuhan, deu ao seu livro mais consistente o título de “A Galáxia de Gutenberg”.
Hoje, esse mundo galáctico dos media, da aldeia global, da reivindicação de identidades itinerantes como se fossem atávicas, do enfraquecimento dos estados nacionais, das suas culturas, do apagamento da história dos povos e dos seus feitos mais referenciais, da perda de função das instituições que já foram consideradas emblemáticas, do esfarelamento das garantias instituídas para que alguma ordem no mundo social e econômico pudesse ser entendida, quer pelo sábio, quer pelo vulgo... esse que nos cerca, com seus personagens patéticos presos às armadilhas da vida, é o nosso mundo conhecido.
Há fundadas dúvidas se ainda poderemos esperar algo dele.
Portanto, temos ainda uma “Longa Jornada Noite Adentro” e só podemos nutrir sensatas esperanças no mundo desconhecido, que – apesar de ainda não ser nosso – é o único que se oferecerá às nossas novas descobertas.
Talvez um dia, contemplando com distanciamento tudo isso, que agora aparece sob uma lente de aumento distorcendo o que procuramos ver, possamos também lembrar de um sweet people que havíamos esquecido.
Luiz Fernando Cabeda
30.11.2023