Aspectos históricos, legais e efeitos do sursis penal como medida descarcerizadora e ressocializadora para o sistema penitenciário brasileiro

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RESUMO

O instituto da suspensão condicional da pena surgiu devido a necessidade de punir infratores de menor potencial ofensivo de modo proporcional ao delito cometido, observados os requisitos legalmente previstos. Desse modo, o sursis penal se caracteriza como uma medida descarcerizadora fundamental no processo de ressocialização do indivíduo, uma vez que permite que este cumpra a pena por sua conduta contrária à ordem social ainda inserido neste meio. Consequentemente, o objetivo desse artigo é fazer a alusão aos aspectos históricos e o conceito da suspensão condicional da pena, em seguida proceder-se-á tratar acerca dos aspectos legais e entendimento jurisprudencial no que concerne à temática, somente por fim, trazendo uma análise acerca dos efeitos do sursis penal como medida descarcerizadora e ressocializadora para o atual sistema prisional brasileiro. Para isso, far-se-á uso de pesquisa quali-quanti, com método documental e abordagem hipotético-dedutiva. Portanto, ainda que atualmente exista a superlotação carcerária, institutos descarcerizadores, como a suspensão condicional da pena, representa importante ferramenta para, a longo prazo, tanto contribuir para desobstrução do sistema carcerário brasileiro quanto para assegurar ao indivíduo sua efetiva ressocialização.

Palavras-chave: sursis penal; medidas descarcerizadoras; ressocialização; suspensão condicional da pena.

ABSTRACT

The institute of conditional suspension of sentence emerged due to the need to punish offenders with lesser criminal potential in a proportional manner to the committed offense, while observing the legally prescribed requirements. Thus, penal suspension, known as "sursis," is characterized as a fundamental decarceration measure in the process of individual rehabilitation, allowing the offender to serve the sentence for their conduct contrary to social order while still integrated into society. Consequently, the objective of this article is to allude to the historical aspects and the concept of conditional suspension of sentence, followed by an examination of the legal aspects and jurisprudential understanding regarding the subject. Finally, an analysis of the effects of penal suspension as a decarceration and rehabilitation measure for the current Brazilian prison system will be presented. To achieve this, a qualitative-quantitative research approach will be employed, utilizing documentary methods and a hypothetical-deductive approach. Therefore, despite the current issue of prison overcrowding, decarceration institutes such as the conditional suspension of sentence represent an important tool to contribute in the long term to the alleviation of the Brazilian prison system and to ensure the effective rehabilitation of the individual.

Keywords: penal suspension; decarceration measures; resocialization; conditional suspension of sentence.

1 INTRODUÇÃO

Historicamente, surgiu a necessidade de uma organização social para regular e conter os ímpetos humanos de modo que o homem pudesse viver harmoniosamente em civilização. Nessa conjuntura, houve o desenvolvimento dos primeiros estabelecimentos cujo principal objetivo estava pautado na correção das condutas individuais criminalizadas pelo Estado, ou seja, as atuais penitenciárias fortemente enraizadas na construção social de vários países ao redor do mundo, sobretudo o Brasil, alvo do presente estudo.

Entretanto, na mesma medida em que desenvolvia-se o interesse pela penalização do sentenciado, surgia também, a partir da criação e disseminação de princípios como a dignidade humana e a individualização da pena, o interesse em proteger as garantias e direitos fundamentais do apenado, de modo que este não fosse apenas tido como um criminoso que merecia tratamentos severos para redenção ou punição de suas condutas, mas um membro integrante da sociedade que deveria ser reeducado para que pudesse, posteriormente, alcançar a ressocialização.

Nesse sentido, houve o surgimento de institutos como a suspensão condicional da pena (sursis) a partir da qual o sujeito, ao cumprir os requisitos determinados na sentença, poderia suspender o regime da execução da pena privativa de liberdade, quando não possível a substituição por pena restritiva de direitos. Assim, além de assegurar ao apenado a possibilidade do cumprimento mais humanizado e flexível de sua pena, sem expô-lo ao duro ambiente carcerário, tal instituto estaria também funcionando com medida descarcerizadora, visto que um dos seus fins é justamente que o sentenciado possa cumprir sua pena fora do estabelecimento prisional.

Desse modo, no presente artigo buscar-se-á discorrer acerca do desenvolvimento do instituto do sursis penal ao longo da história até ser implementado no ordenamento jurídico brasileiro, em seguida o trabalho irá se debruçar no estudo da previsão e aplicação legal da suspensão condicional da pena na contemporaneidade. E, finalmente, será trazida a análise acerca dos efeitos do sursis penal como medida descarcerizadora em consonância à reflexão da manutenção e efetividade do atual sistema carcerário pátrio vigente.

2 ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA

O instituto da suspensão condicional da pena surgiu oficialmente em 1884 no parlamento francês no qual tramitava um projeto de lei acerca da progressão da pena em caso de reincidência e que, posteriormente, foi em primeira instância implementado na Bélgica onde foi efetivado e assumiu força de lei em 1888, motivo pelo qual tal instituto ficou conhecido como belgo-francês, modelo que tem “a medida como pressuposto a condenação”. (ESTEFAM, 2021, p. 587). Atualmente, esse é o sistema para o sursis adotado pelo Brasil e que será subsequentemente esmiuçado no presente estudo.

Para além desse sistema, cabe destacar o anglo-americano no qual, verificada a condição do acusado como réu primário, o magistrado poderá suspender o processo e não proceder com a prolação da sentença penal condenatória e o eclético, por meio do qual “o juiz profere uma decisão, indicando a pena aplicada, mas, formalmente, não profere a condenação, suspendendo-a”. (ESTEFAM, 2021, p. 587). Nesses modelos, é possível observar que a suspensão condicional sempre esteve, historicamente, associada à inexistência da condenação do réu mediante o preenchimento dos requisitos legais.

No entanto, no Brasil, a suspensão condicional da pena privativa de liberdade somente foi expressamente disposta no ordenamento jurídico nacional em 1924 com a edição do Decreto nº. 16.588. A esse respeito, Estefam (2021) preceitua que

Em nosso ordenamento jurídico, a suspensão condicional da pena privativa de liberdade foi incorporada somente com a edição do Decreto n. 16.588, de 6-9-1924, elaborado pelo Poder Executivo, depois de expressamente autorizado a fazê-lo por meio de outro decreto, o de n. 4.577, de 5-9-1922. (ESTEFAM, 2021, p. 2021).

Assim, o direito penal brasileiro levou algumas décadas a incorporar o sistema belgo-francês à estrutura brasileira, tendo implementado algumas modificações advindas da inspiração em outros modelos para desenvolvimento de uma sistemática de suspensão condicional da pena que estivesse em consonância com a realidade pátria da época.

Mas foi somente com a Reforma Penal de 1984, com a criação de novas medidas descarcerizadoras, que o instituto do sursis penal passou a ganhar maior visibilidade no Brasil, visto que, devido ao surgimento e popularização de princípios como a humanização e a individualização das penas, a busca pela ideia de se evitar a prisão de infratores em crimes leves por meio da suspensão da pena se popularizou. (BITENCOURT, 2021).

Nesse ínterim, tanto o Direito Penal Brasileiro quanto a sociedade, passam a direcionar seus interesses aos direitos do apenado e possibilidade de sua reinserção ao convívio social por meio de medidas descarcerizadoras como a suspensão condicional da pena, de maneira a buscar, gradativamente, a desobstrução do ambiente carcerário.

Consequentemente, surge a discussão a respeito da natureza da suspensão da pena, de um lado defendida como um benefício ao condenado primário; já por outra perspectiva, observada como uma forma mais branda de se executar uma sanção penal ao criminoso. Diante disso, Bitencourt (2021) ratifica que:

A exigência de cumprimento de uma dessas sanções corresponde a uma verdadeira execução, ainda que parcial, da pena imposta. Com a imposição dessa condição a Reforma Penal buscou tornar mais eficaz o instituto, respondendo melhor aos sentidos da pena e à prevenção geral, sem prejuízo à prevenção especial. (BITENCOURT, 2021, p. 420). (grifos nossos).

Assim, para Bitencourt (2021), a suspensão, apesar de representar um benefício para o réu, se caracteriza como uma forma branda de execução da pena. Já para Estefam (2021), o sursis penal não constitui pena e poderá ser considerado como benefício dado ao infrator, mesmo com a existência de medidas determinadas ao criminoso para que faça jus a aquisição do referido benefício. Entretanto, tal discussão ainda se apresenta controversa e não será aqui analisada, cabendo para essa pesquisa o conhecimento acerca da existência dessas duas correntes doutrinárias distintas e, para efeitos deste estudo, filiando-se à primeira.

O sursis penal surge então como uma medida que tanto busca a ressocialização do indivíduo, ao permitir que este seja reinserido ao convívio social após a observância dos requisitos dispostos em lei, quanto procura evitar o encarceramento em massa por crimes de menor potencial ofensivo. (MIRABETE, 2021). Assim, fica evidente que há também a preocupação do Estado em julgar e sentenciar condutas contrárias aquelas moral e legalmente aceitas, bem como também, e principalmente, evitar que os estabelecimentos penitenciários continuem a sofrer com a superlotação carcerária, de modo que a pena cominada ao agente seja proporcional ao delito cometido.

O que mais importa ao Estado não é punir, mas reeducar o delinquente e conduzi-lo à sociedade como parte integrante daqueles que respeitam o direito de liberdade alheia, em seu mais amplo entendimento, que é o limite de outro direito. Toda vez que essa recuperação pode ser obtida, mesmo fora das grades de um cárcere, recomendam a lógica e a melhor política criminal a liberdade sob condições, obrigando-se o condenado ao cumprimento de determinadas exigências. (MIRABETE, 2021, p.340). (grifos nossos).

Portanto, a suspensão condicional da pena se pauta no princípio ressocializador do Estado e na política descarcerizadora pátria, pois na mesma medida em que presa a cominação da pena ao agente criminoso por meio de restrições ou punições que se façam cumprir a pretensão punitiva estatal, também busca auxiliar o sistema penitenciário brasileiro no que tange à superlotação, culminando penas diversas da privativa de liberdades mediante certas condições com o objetivo de reinserir os indivíduos ao convívio humano e aliviar os vultosos números da população carcerária.

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3 PREVISÃO E APLICAÇÃO LEGAL DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA NA CONTEMPORANEIDADE

No Brasil, a suspensão condicional da pena surge a partir do Decreto nº 16.588/1924 com fulcro no artigo 77 e seguintes do Código Penal de 1940. Isso ocorre pois, embora tratado sob uma perspectiva geral, o instituto da sursis penal possui classificações que são utilizadas em diferentes ocasiões, bem como também possui requisitos distintos que devem ser observados, sendo a suspensão da pena dividida em comum, etária, humanitária e especial. (BUSATO, 2020). Nesse sentido, o Código Penal a respeito da matéria acima aludida preceitua, respectivamente, da seguinte forma:

Art. 77 - A execução da pena privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, poderá ser suspensa, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que:

I – o condenado não seja reincidente em crime doloso;

II – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício;

III – Não seja indicada ou cabível a substituição prevista no art. 44 deste Código.

§ 2o A execução da pena privativa de liberdade, não superior a quatro anos, poderá ser suspensa, por quatro a seis anos, desde que o condenado seja maior de setenta anos de idade, ou razões de saúde justifiquem a suspensão.

[...]

Art. 78 - Durante o prazo da suspensão, o condenado ficará sujeito à observação e ao cumprimento das condições estabelecidas pelo juiz.

§ 2° Se o condenado houver reparado o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo, e se as circunstâncias do art. 59 deste Código lhe forem inteiramente favoráveis, o juiz poderá substituir a exigência do parágrafo anterior pelas seguintes condições, aplicadas cumulativamente:

a) proibição de frequentar determinados lugares;

b) proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz;

c) comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades. (BRASIL, 1940).

Dessa perspectiva, se torna possível punir o indivíduo criminoso, bem como também incentivar sua ressocialização ao convívio humano, visto que ao não ser exposto ao ambiente insalubre e precário de um presídio, recebendo o sujeito, ao invés disso, uma nova oportunidade, há menores chances de reincidência na conduta criminosa. (MIRABETE, 2021).

Assim, é possível observar a importância do sursis penal para o direito brasileiro, uma vez que é por meio desta que o sentenciado passa a ser observado sob uma perspectiva mais humanitária e individualizada de modo a buscar como objetivo final da implementação dessa medida a desobstrução dos estabelecimentos penitenciários ao retirar autores de crimes de menor potencial ofensivo do ambiente carcerário, imputando-lhes penas diversas da privativa de liberdade que possam punir o ato criminoso e minimizar danos morais/psicológicos para o infrator.

Não obstante, ainda que a jurisprudência a respeito da matéria esteja alinhada aos atuais objetivos do instituto da suspensão condicional da pena, não significa que o benefício de sursis penal deva ser concedido sem que ocorra uma análise pormenorizada do sujeito, visto que não se justifica a substituição da pena privativa de liberdade, por intermédio do cárcere, para aqueles indivíduos que não estejam aptos à reinserção ao convívio social. Tal fato pode ser observado no Habeas Corpus nº 220.392/RJ, julgado em 25 de fevereiro de 2014, pela Quinta Turma do STJ, com a seguinte ementa:

INDIGITADA IMPOSSIBILIDADE DA CASSAÇÃO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA. VISLUMBRADA UTILIZAÇÃO DO PRÓPRIO FATO TÍPICO PARA A RETIRADA DA BENESSE. PACIENTE QUE NÃO PREENCHE OS REQUISITOS SUBJETIVOS PREVISTOS NO ARTIGO 77, INCISO II, DO CÓDIGO PENAL. COAÇÃO ILEGAL NÃO CARACTERIZADA.

1. De acordo com o artigo 77 do Estatuto Repressivo, a execução da pena privativa de liberdade não superior a 2 (dois) anos pode ser suspensa, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o condenado não seja reincidente em crime doloso; a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício; e não seja indicada ou cabível a substituição prevista no artigo 44 do Código Penal.

2. Na espécie, a autoridade apontada como coatora afastou o sursis concedido na sentença condenatória sob o argumento de que "a conduta social e a personalidade do agente demonstram não ser esta uma medida suficiente à sua ressocialização", notadamente diante das conclusões a que chegou a psicóloga que realizou o relatório anexado aos autos, no qual se atestou ser o paciente pessoa que não se responsabiliza por nada que ocorre em sua vida, culpando a todo momento as pessoas de seu convívio pela sua situação atual (e-STJ fls. 378/379), circunstância que não guarda qualquer correspondência com o tipo penal violado, sendo idônea a motivar a cassação da benesse.

3. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para reduzir a fração de aumento da pena realizada na segunda fase da dosimetria da pena imposta ao paciente, restando definitivamente condenado à pena 4 (quatro) meses e 2 (dois) dias de detenção para cada um dos delitos de desobediência, totalizando 1 (um) ano e 6 (seis) dias de detenção, a ser cumprida no regime inicial aberto. (HC n. 220.392/RJ, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 25/2/2014, DJe de 10/3/2014.). (grifos nossos).

Assim, observa-se que, ainda que exista uma crescente preocupação quanto à individualização da pena ao buscar métodos que possam realizar uma análise profunda acerca do sujeito, a concessão do benefício da suspensão condicional da pena deve obedecer aos requisitos objetivos e subjetivos previstos em lei, de modo que, não fazendo jus a qualquer uma das espécies de sursis legalmente previstas pelo ordenamento jurídico pátrio, não ocorrerá a aquisição do benefício pelo agente criminoso.

Outro momento em que fica evidente que a concessão do benefício da suspensão condicional da pena está fortemente relacionada ao caso concreto é no Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 823.483/CE julgado em 14 de agosto de 2023 pela Quinta Turma do STJ, com sua referida ementa abaixo subscrita:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. VIAS DE FATO, CONSTRANGIMENTO ILEGAL, RESISTÊNCIA E DESACATO. REGIME SEMIABERTO. DEVIDA MOTIVAÇÃO. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. IMPOSSIBILIDADE. NÃO CONHECIMENTO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. Hipótese na qual o regime semiaberto foi fixado de forma motivada, com base nas circunstâncias concretas do delito e no histórico do paciente, que indicam a necessidade da imposição do regime prisional mais gravoso.

2. A existência de três circunstâncias judiciais desvaloradas é suficiente para afastar a suspensão condicional da pena, nos termos do art. 77, II do CP.

4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC n. 823.483/CE, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 14/8/2023, DJe de 16/8/2023.). (grifos nossos).

Nesse caso, ainda que a aquisição da suspensão da pena representasse eficaz medida descarcerizadora e ressocializadora, a inobservância das disposições legais no caso concreto ora aludido demonstra que tanto o sujeito não está apto para reinserção ao convívio humano devido ao seu histórico pessoal, quanto a medida menos gravosa, nesse ínterim, não seria suficiente para punir de maneira satisfatória a conduta infratora do agente criminoso, que necessita de um regime mais rígido para que seja plena e eficientemente exercida a função punitiva do Estado.

Assim, embora legalmente prevista e caracterizada como uma importante medida de impedimento à superlotação penitenciária que vem ocorrendo nas últimas décadas, o fim primordial da suspensão condicional da pena não está pautado na sua natureza de medida descarcerizadora, não devendo ser unicamente assim considerada. O instituto da sursis penal está, sobretudo, relacionado aos princípios da individualização e humanização da pena, na busca por um Estado Social que possa assegurar a proteção da coletividade na medida em que minimiza os números de condutas criminosas que possam ameaçar a ordem vigente.

4 ANÁLISE ACERCA DOS EFEITOS DO SURSIS PENAL COMO MEDIDA DESCARCERIZADORA E RESSOCIALIZADORA

No que tange ao sursis penal como medida descarcerizadora e ressocializadora, o presente instituto demonstra singular importância, visto que, a partir deste, não somente é possível alcançar redução significativa da parcela da população carcerária, como também é por meio de medidas como esta que se possibilita a continuidade do sujeito inserido ao convívio humano, de modo a possibilitar uma real e mais efetiva reintegração deste à sociedade, a depender do caso concreto.

Entretanto, o Senappen (2023), em seu levantamento de dados mais recente, em junho de 2023 esclarece que a população brasileira ultrapassou, pela primeira vez, o exorbitante número de 600 mil pessoas privadas de liberdade e quase 200 mil pessoas em prisão domiciliar, o que evidencia que o instituto da suspensão condicional da pena não possui aplicação prática tão fortemente enraizada à cultura brasileira quanto a relevância teórica dada a esse instituto atualmente.

Tais dados apenas corroboram a ótica de que, apesar de ser o ambiente carcerário insalubre às condições físicas do sujeito e prejudicial à sua saúde mental, ainda há um contingente gigantesco de sentenciados que não gozam do benefício da suspensão condicional da pena, o que se leva a inferir que quase 850 mil presidiários atualmente não preencheram os requisitos legais para fazer jus à concessão de sursis penal.

Nesse sentido, Silva (2019) preceitua que “o caráter de oficialidade presente nos liames do Direito Penal faz com que ele seja visto como mecânico, entabulado; sistematizado por uma dificuldade no que se refere até mesmo às oportunidades que são oferecidas quanto a acessá-lo”, o que traz prejuízos ao sentenciado quanto ao pleno exercício de seus direitos.

Ainda a respeito dos presos em unidades prisionais estaduais no Brasil, o mesmo estudo da Senappen (2023) fragmenta e traz dados sobre o levantamento do quantitativo de condenados por regime, sendo, contemporaneamente, o regime fechado que reúne um maior número da população penitenciária (52,20%), seguido pelo provisório (27,96%), semiaberto (18,37%), aberto (1,07%), medida de segurança e tratamento ambulatorial (0,40%).

Tal conjuntura, por sua vez, se torna altamente preocupante para o cenário brasileiro, visto que com um contingente tão elevado de pessoas no regime fechado de cumprimento de pena, além da superlotação dos estabelecimentos penitenciários que desencadeiam um ambiente insalubre e com condições básicas precárias para o apenado, há também o grande gasto econômico dos cofres públicos para a manutenção desse sistema, prejudicando tanto o sujeito quanto à coletividade.

Assim, Carvalho (2010) expõe que, ainda que exista uma grande população presidiária, esses mecanismos de abrandamento da pena, a depender do caso, possuem um importante papel na minoração das consequências negativas advindas do âmbito carcerário.

Importante deixar claro que as medidas descarcerizadoras devem ser vistas como importantes mecanismos de desinstitucionalização, sendo sua aplicação inegavelmente mais vantajosa que qualquer espécie de encarceramento. O problema de pesquisa que move a investigação, porém, é até que ponto os substitutivos penais efetivamente diminuem o impacto do carcerário sobre os grupos vulneráveis, ou seja, se efetivamente são incorporados pelos sistemas político-legislativo, jurídico e executivo como alternativas ao processo criminal e à prisão ou se constituem instrumento aditivo de ampliação do controle social punitivo. (CARVALHO, 2010, p. 6). (grifos nossos).

Nesse sentido, as medidas descarcerizadoras possuem papel fundamental na ressocialização do indivíduo, visto que a flexibilização do regime de cumprimento da pena ou a suspensão da pena com posterior extinção da punibilidade se caracterizam como importantes instrumentos de reinserção do sujeito à sociedade. Isso ocorre na medida em há o impedimento de que este seja prejudicado por longos períodos ao ser privado do convívio social, bem como a inexistência da passagem do indivíduo pelo estabelecimento penitenciário e continuidade de sua ficha limpa evitam que este sofra preconceitos ou obtenha dificuldade em reintegrar o âmbito ao qual pertencia anteriormente.

Por outro lado, estes mecanismos também propiciam um maior controle estatal sobre as condutas e ações do sujeito, de modo a ampliar o poder punitivo do Estado, que agora atuaria não somente na vida do presidiário, mas na vida particular do agente criminoso fora do âmbito carcerário, moldando seu comportamento de forma que o faça recordar dia após dia, da punição (ou ausência desta) que lhe foi imposta e é, às vezes, tão dura e severa quanto o próprio cárcere.

Assim sendo, ainda que as punições não mais sejam dotadas dos castigos físicos, seja em qualquer um dos regimes prisionais ou na suspensão condicional do processo, a penalidade aferida aos sujeitos é ainda imposta sobre seus corpos, de modo a considerar sua utilidade e submissão. Nesse diapasão, o efeito do sistema prisional sobre o agente criminoso ocorre na medida em que

as relações de poder operam sobre ele uma posse imediata o tomam de assalto, o marcam, o adestram, o torturam, o constrangem a certos trabalhos, o obrigam a certos ritos, exigem deles sinais. E em grande parte, como força de produção que o corpo é objeto de relações de poder e de domínio, mas, em troca o seu constituir-se como força de trabalho é possível só se este é possuído em um sistema de sujeição no qual a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente preordenado, calculado e utilizado: o corpo se torna força útil só quando é contemporaneamente corpo produtivo e corpo submetido. ( FOUCAULT, 2007, p. 29). (grifos nossos).

Ademais, com números tão elevados de criminosos no cumprimento da pena em regime fechado há também o comprometimento da possibilidade de reinserção desses indivíduos à sociedade, visto que a inclusão e vivência cotidiana desses detentos em um ambiente que é nitidamente reprodutor da criminalidade tem grande probabilidade de não favorecer mudanças de conduta positivas por parte dos sentenciados frente ao âmbito agressivo e pouco acolhedor proporcionado pelo cárcere.

A tal respeito, cabe ressaltar que o sistema prisional possui um processo duplamente transformador, visto que “desacultura” o sujeito das normas de convívio social no qual estava inserido antes e “acultura” o indivíduo na proporção em que o torna mais familiarizado às normas de convivência da penitenciária com outros condenados. (SANTOS, 2012).

Portanto, tanto a superlotação quanto o caos carcerário residiriam nesse processo de encaminhar o sujeito ao esquecimento de sua própria identidade incluso ao meio civilizado, enquanto é fortalecido, pelas vivências cotidianas, um sentimento de pertencimento àquele novo meio, culminando em comportamentos agressivos e disruptivos das regras de convivência no meio social anterior, de modo a prejudicar, contínua e permanentemente, sua ressocialização. Dessa forma, se evidencia a necessidade do desenvolvimento e aperfeiçoamento das medidas descarcerizadoras como resposta ativa ao atual cenário carcerário brasileiro para que o princípio ressocializador do Estado seja plenamente alcançado.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O instituto da suspensão condicional da pena, também conhecido como sursis penal, surgiu com a evolução dos sistemas prisionais ao longo do mundo, de modo a funcionar como um meio alternativo do Estado para punir as condutas delituosas de agentes criminosos que preenchessem determinados requisitos previstos em lei e cujas infrações fossem caracterizadas pelo menor potencial ofensivo.

Nesse sentido, é possível observar o desenvolvimento gradativo do interesse estatal em não apenas cumprir seu papel punitivo, mas principalmente possibilitar ao indivíduo que este possa permanecer inserido ao convívio social, sem se expor às condições adversas enfrentadas pelos indivíduos que estão presos pela autoria de crimes de maior potencial ofensivo. Assim, o impedindo de figurar em um ambiente que possa, por sua hostilidade, demonstrar uma maior probabilidade de levar o agente criminoso à reincidência, de modo a dificultar sua ressocialização.

Paralelamente, ao impor ao sujeito uma pena mais gravosa que o leve ao cumprimento em regime fechado, por exemplo, o convívio diário com outros condenados que compartilham das mais diversas vivências e cujas condutas e comportamentos contrários às normas de convivência social foram justamente desenvolvidos por sua inserção àquele meio, somente poderá influenciar que o indivíduo autor de infração de menor potencial ofensivo, a longo prazo, desenvolva os costumes, hábitos e pensamentos majoritários daquele meio no qual está inserido.

A jurisprudência, por sua vez, é pacífica no sentido de que, preenchidos os requisitos legais, o benefício da suspensão do processo deverá ser concedido, como é legalmente determinado. No entanto, na circunstância de ter algum dos fatores objetivos ou subjetivos inobservados, poderá o entendimento de instância superior recusar provimento ao recurso que objetive a aquisição do sursis penal, considerando, em sua decisão, àquelas provas que não foram valoradas originariamente.

Nesse sentido, ainda que um dos requisitos não tenha sido efetivamente avaliado e exija uma nova análise para que o processo ocorra de maneira justa, não serão todos os infratores de crime de menor potencial ofensivo que terão direito à suspensão condicional do processo, sendo necessário, ainda, a observância a todos os outros requisitos cumulativamente.

Assim, mesmo que exista a superlotação dos presídios, ambiente hostil e prejudicial a ressocialização do sujeito, as medidas descarcerizadoras, sobretudo a suspensão condicional do processo, representam um enorme avanço no que tange não somente aos direitos e garantias fundamentais do agente infrator em sua individualidade, mas principalmente ao papel punitivo do Estado.

Isso ocorre na medida em que este agora direciona seus anseios não apenas à segurança da coletividade ao atribuir castigos àqueles que ameacem a ordem social, mas também se preocupa com a ressocialização do sujeito, de modo que a cominação da pena seja proporcional ao delito cometido e que o sujeito possa, sempre que possível, permanecer em meio ao convívio humano ou em condições que favoreçam sua posterior ressocialização.

REFERÊNCIAS

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Sobre os autores
Rilawilson José de Azevedo

Dr. Honoris Causa em Ciências Jurídicas pela Federação Brasileira de Ciências e Artes. Mestrando em Direito Público pela UNEATLANTICO. Licenciado e Bacharel em História pela UFRN e Bacharel em Direito pela UFRN. Pós graduando em Direito Administrativo. Policial Militar do Rio Grande do Norte e detentor de 19 curso de aperfeiçoamento em Segurança Pública oferecido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Gabriel Pereira Ogando

Bacharelando em Direito pela Faculdade Caicoense Santa Teresinha.︎

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