Será que há alguma relação entre o agir dos cristãos e busca pela efetivação de um meio ambiente urbano equilibrado? Não tenho a menor dúvida que sim. Tentaremos ser o mais objetivo possível na breve reflexão que realizaremos nas próximas linhas.
Antes de seguirmos em nossa reflexão convém destacar que o cristão, enquanto tal, possui responsabilidades sociais, além do dever de agir individual. Ora, o próprio dever de agir individual situa-se em um contexto maior, a saber, o de impactar a sociedade com valores supra-humanos que fortaleçam cada vez mais a dimensão da responsabilidade e da fraternidade humana. Neste sentido, contribuir com a sociedade é uma das manifestações de amar ao próximo.
Em um primeiro momento, precisamos destacar que somos limitados. Por mais que sejamos habilidosos, inteligentes ou diligentes, nos esbarraremos sempre em limites físicos e biológicos, próprios da finitude e da incompletude humana.
O ser humano só se torna completo em uma perspectiva de integração com um plano metafísico, uma vez que somente este é dotado da plenitude que preenche as lacunas humanas. Desta forma, podemos afirmar que a história das civilizações humanas é o registro do percurso humano, com todos os seus erros e, também, acertos. A ideia é que aprendamos com os erros do passado para que não venhamos a repeti-los no presente e no futuro e ainda, que possamos replicar e ampliar os acertos já reconhecidos.
No que diz respeito às cidades, nossa luta varia de acordo a posição e com os papéis que exercemos na sociedade. Neste sentido, podemos citar alguns atores da “trama urbana”: a) representantes do Estado, vinculados a algum dos poderes estatais: executivo, legislativo e judiciário; b) representantes do Ministério Público e da advocacia, pública ou privada; c) sociedade civil organizada; d) representantes de órgãos de classe; e) entidades representativas da indústria, do comércio e de serviços; f) líderes religiosos; g) líderes sindicais; h) líderes comunitários; i) população em geral. Todos esses agentes, sem prejuízos de outros, têm responsabilidades a seguir conforme os ditames constitucionais e legais aplicáveis à política urbana pátria. Vale asseverar que ser cidadão não é apenas ser detentor de direitos, mas também ser agente de transformação, o que lhes aponta um papel mais ativo.
Destacaremos, nas linhas a seguir as responsabilidades que os cristãos têm em relação à cidade em que vive. O que a Bíblia nos ensina sobre tais responsabilidades? O que a Bíblia fala sobre cidades? Convém, no entanto, destacar primeiro qual é o sentido e a vocação das cidades, o que faremos a seguir.
As cidades são a “coroa da instalação humana” em um determinado território. Constitui o locus onde se reúne uma comunidade humana que anseia por segurança e pelos benefícios da troca de habilidades humanas. São nestes espaços que se assentam as famílias e onde as relações entre estas se tornam realidade.
Vale ainda ressaltar que como desdobramento da organização humana, idealizou-se uma estrutura que ganhou concretude a partir de abstrações. Trata-se do fenômeno estatal. Sua essência é viabilizar a realização humana através de uma estrutura organizacional pública que possui (ou deveria possuir) a habilidade de administrar interesses, não raras vezes conflitantes, os quais incidem sobre o espaço urbano.
Como ensina Rogério Gesta Leal, a cidade é espaço político e filosófico, constituindo o cenário onde movimentos sociais e humanos ocorrem e se forjam na história dos processos de ocupação do território. Como destaca esse autor, o intento de realização humana através da urbanização vai ao encontro de um novo paradigma societal: o de que as relações cotidianas, intersubjetivas e materiais dos homens, hoje e desde a modernidade, se contarem com ambiente/espaço favorável, podem se maximizar no sentido de otimização das potencialidades de vida digna de seus atores[1].
No livro do profeta Jeremias, há o registro: “Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei e orem ao Senhor em favor dela, porque a prosperidade de vocês depende da prosperidade dela” em seu capítulo 29 e versículo 7. Perceba-se que não se fala em buscar a prosperidade (individual) na cidade, mas a prosperidade da cidade (pensando-se em uma coletividade de beneficiários). O livro destaca ainda, a partir deste versículo, que a prosperidade das pessoas depende da prosperidade da cidade. Eis aí um excelente motivo para mover-se na luta por uma cidade sustentável, compreendendo-se sustentabilidade em sua acepção mais ampla: sustentabilidade social, econômica e ambiental.
Além do dever de se mover pela fé, orando pela cidade e pelas autoridades constituídas, como aponta o livro de 2 Crônicas, capítulo 7, versículo 14, quando registra: “se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar e orar, buscar a minha face e se afastar dos seus maus caminhos, dos céus o ouvirei, perdoarei o seu pecado e curarei a sua terra”, os cristãos precisam ocupar os espaços de poder e participar do debate público, de modo que possam contribuir, de forma efetiva, para a execução de políticas públicas que sejam viáveis para elevar a concretização de direitos fundamentais no território da urbe.
No que diz respeito à segurança nas cidades, além do investimento do Estado em recursos humanos, veículos, equipamentos e inteligência, se faz necessário também o envolvimento do cidadão, onde este deve zelar pela aplicação correta dos recursos públicos, especialmente aqueles destinados a equipamentos urbanos ou quaisquer outras realizações que afetem a vida cotidiana. Não adianta apenas criticar quando algo sai errado. Mostra-se importante que o cidadão participe durante os processos de tomada de decisão, quando for cabível, por óbvio. De toda forma, como se move pela fé, é imprescindível ao cristão apelar ao SENHOR, como destaca o Salmo 127, versículo 1: “Se o SENHOR não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o SENHOR não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela”. Neste sentido, nunca será demais apelar-se à segurança humana e à segurança vinda do Céu, esta, infalível e ilimitada.
Não se pode esquecer que o cristianismo constitui a base do direito brasileiro. Aliás, a base de todo direito no ocidente é judaico-cristã, o que torna fácil compreender por que a dignidade da pessoa humana erige-se como um dos maiores valores do Estado de Direito moderno e contemporâneo. O núcleo fundamental do princípio da dignidade da pessoa humana tem a sua base nos seguintes trechos das escrituras:
“Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere os outros superiores a si mesmo. Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros”. (Filipenses 2:3,4) – Valores destacados: 1) humildade; 2) paz; 3) respeito ao próximo; 4) amor ao próximo; 5) altruísmo.
“E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39) - Valores destacados: 1) Amor ao próximo; 2) Doação ao próximo; 3) Respeito ao próximo;
“Honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 19:19) - Valores destacados: 1) Honra; 2) Família; 3) Amor; 4) Doação; 5) Respeito ao próximo;
“Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. (Gálatas 5:14) - Valores destacados: 1) Honra; 2) Amor; 3) Doação; 4) Respeito ao próximo;
“Todavia, se cumprirdes, conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teu próximo como a ti mesmo, bem fazeis”. (Tiago 2:8) - Valores destacados: 1) Honra; 2) Amor; 3) Doação; 4) Respeito ao próximo;
“E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes”. (Marcos 12:31) - Valores destacados: 1) Honra; 2) Amor; 3) Doação; 4) Respeito ao próximo;
“Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor”. (Levítico 19:18) - Valores destacados: 1) Paz; 2) Honra; 3) Amor; 4) Doação; 5) Respeito ao próximo;
“E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”. (Lucas 10:27) - Valores destacados: 1) Honra; 2) Amor; 3) Doação; 4) Respeito ao próximo;
“Com efeito: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. (Romanos 13:9) - Valores destacados: 1) Fidelidade; 2) Vida; 3) Honestidade; 4) Confiança; 5) Amor; 6) Doação; 7) Respeito ao próximo;
“E que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios”. (Marcos 12:33) - Valores destacados: 1) Fé; 2) Honra; 3) Amor; 4) Doação; 5) Respeito ao próximo;
Como se percebe, ao longo de todas essas referências bíblicas, amar ao próximo como a si mesmo constitui uma das bases mais sólidas do cristianismo. Todos os valores acima identificados são ainda hoje, a base do direito não só no Brasil, mas em todo mundo ocidental. Ao cooperarmos para com a instituição de normas urbanísticas justas, exteriorizaremos o nosso ‘amor ao próximo’. ‘Amar ao próximo’ é preocupar-se com o nosso ‘semelhante’, ou seja, o nosso vizinho ou concidadão. E não bastar o preocupar-se. Mostra-se indispensável que lutemos também pelo direito à cidade de nossos ‘semelhantes’. A cidade é o espaço de todos e como tal precisa ser planejada de modo que todas as classes sociais, distribuídas em cada parcela do solo urbano tenham as suas necessidades básicas atendidas. Trata-se de um mínimo existencial para que seja possível a fruição de uma vida urbana digna.
Não se trata aqui de descartar a relevância de valores e outros princípios destacados em outras crenças. O foco da presente análise não é esse. O que se pretende destacar é a indubitável relação existente entre os princípios e valores cristãos com as melhores práticas de gestão das cidades, de modo que seja plenamente compreensível como a responsabilidade humana pode proporcionar um ambiente urbano equilibrado, inclusivo e sustentável.
[1] LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 3.