O alcance do sigilo do psicólogo na atividade policial

07/12/2023 às 17:24
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A Polícia Civil do Estado de Santa Catarina possui em seus quadros a carreira de Psicólogo Policial, provida mediante concurso público e integrante do subgrupo “agente da autoridade policial” (LC 453, art. 3º), aonde consta como autoridade policial os ocupantes da carreira de Delegado de Polícia (LC 453, art. 2º).

No mesmo dispositivo legal, especificamente no anexo XI, item 15, consta como atribuição do cargo: “Prestar, quando solicitado pela autoridade competente, atendimento psicológico à criança, ao adolescente, à mulher, e/ou ao homem envolvidos em infração criminal (na condição de vítima ou infrator) e, quando necessário, providenciar o encaminhamento aos órgãos competentes”.

O Psicólogo Policial encontra-se em posição de destaque na estrutura de cargos e salários da Polícia Civil Catarinense. Trata-se de profissional a serviço da Polícia Civil, diretamente subordinado ao Delegado de Polícia e com a missão primária de auxiliar no cumprimento do objetivo primaz da polícia judiciária, que é a formação da prova de maneira imparcial. A Polícia Civil não acusa nem defende, apura e documenta a verdade dos fatos para oferecer ao Estado, através do Ministério Público e Judiciário, elementos de convicção para a proposição e recepção segura da ação penal.

Embora a questão pareça de fácil solução, não seria cientificamente correta a análise do problema sem a valoração dos pontos de vista divergentes.

A Constituição Federal (CF) garante, através do art. 5º, o direito do cidadão a intimidade, quando indica:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

O Código de Ética Profissional do Psicólogo cita que:

Art. 9º – É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional.

Art. 10 – Nas situações em que se configure conflito entre as exigências decorrentes do disposto no Art. 9º e as afirmações dos princípios fundamentais deste Código, excetuando-se os casos previstos em lei, o psicólogo poderá decidir pela quebra de sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo. Parágrafo único – Em caso de quebra do sigilo previsto no caput deste artigo, o psicólogo deverá restringir-se a prestar as informações estritamente necessárias.

Art. 11 – Quando requisitado a depor em juízo, o psicólogo poderá prestar informações, considerando o previsto neste Código.

Fundamentalmente, estes são os dispositivos que embasam a posição de não revelar no exercício da atividade de Psicólogo Policial, circunstâncias a que teve conhecimento durante sua entrevista com a vítima ou o suspeito da prática de crime.

Na crista da problematização se encontra a denominada escuta especializada e o depoimento especial (ou depoimento sem dano), ambos previstos e conceituados na Lei 13.431/17, que estabelece medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência.

Referida lei traz consigo, de forma cristalina, a doutrina da proteção integral da criança, em especial quando exposta a condição de vítima ou testemunha, garantindo sua integridade física e psicológica através de ritos bastantes pormenorizados. No entanto, deixa evidente o objetivo de obter, de forma sensível às peculiaridades da criança ou adolescente vítima de abuso sexual, a verdade dos fatos.

O art. 13, da Lei 13.431/17, evidencia a imposição de trazer ao conhecimento do Estado, ainda sob o manto da proteção integral, qualquer ação ou omissão que se caracterize como violência contra criança ou adolescente.

O art. 5º, da CF, garante a proteção a intimidade das pessoas, no entanto, o art. 227, da mesma CF, cita que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Há, portanto uma perfeita intersecção de interesses no tangente a garantia da intimidade e a proteção integral da criança ou adolescente. Não há conflito de normas, ao contrário, há complementariedade.

Já mencionei em outros textos publicados o que é de conhecimento básico: direitos não são absolutos. O direito a imagem ou a intimidade não pode ser elemento facilitador para o cometimento ou ocultação de crimes, muito menos ser obstáculo para a apuração de infrações penais, seja para o autor ou para a vítima, mormente quando esta mesma, ou seu representante legal, buscam o auxílio do Estado nas suas mais variadas modalidades.

O procedimento realizado pelo Psicólogo Policial, no exercício da sua atividade estatal, não caracteriza uma relação psicólogo-paciente em seu consultório particular, mas sim, uma relação psicólogo-vítima/testemunha, com interesse direto do Estado no esclarecimento de infrações penais de ação pública incondicionada. Não é o depoente que escolhe o psicólogo, há uma terceira pessoa diretamente interessada no resultado do trabalho do psicólogo policial, o Estado.

Assim como os direitos fundamentais, o sigilo profissional também não é absoluto, encontra limites, especificamente no princípio da proteção integral da criança ou do adolescente vítimas de crime.

Em hipótese similar a ora sob análise, reconhecendo a supremacia do interesse público, extrai-se o seguinte julgamento do STF:

“HABEAS CORPUS - ESTRUTURA FORMAL DA SENTENCA E DO ACORDAO - OBSERVANCIA - ALEGACAO DE INTERCEPTACAO CRIMINOSA DE CARTA MISSIVA REMETIDA POR SENTENCIADO - UTILIZACAO DE COPIAS XEROGRAFICAS NAO AUTENTICADAS - PRETENDIDA ANALISE DA PROVA - PEDIDO INDEFERIDO.

(...)

- A administração penitenciária, com fundamento em razoes de segurança publica, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único, da Lei n. 7.210/84, proceder a interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que a clausula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. - O reexame da prova produzida no processo penal condenatório não tem lugar na ação sumaríssima de habeas corpus.” (Destaquei)

No mesmo sentido, desta vez sobre o sigilo de laudos médicos do INSS para fins de investigação policial, prescreveu a Advocacia geral da União (AGU), nos autos do Processo Administrativo nr.08200.000889/2009-27:

“Assim, embora seja vedado ao DPF, como regra geral, o acesso ao acervo de

informações de caráter médico dos segurados da Previdência Social, o interesse público residente no Regime Geral da Previdência Social, a atribuição de eficácia mínima ao princípio da autotutela das decisões administrativas e o ao princípio da razoabilidade, assim como a literalidade do art. 31 da Lei n.º 12.527, de 2011, c/c o art. 2.º, § 2º Lei n.º 12.830, de 2013, autorizam, quando presentes fundadas razões e instaurado o competente inquérito policial, o acesso da autoridade policial federal aos dados, informações e documentos de caráter médico do segurado, que tenham relevância para a apuração de eventuais irregularidades em que ele esteja Por fim, lembro que, após as deliberações que se afigurarem oportunas, devem os autos retornar ao Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos.”

O Conselho Federal de Psicologia (CRP), através da Nota Técnica nr. 01/2018/GTEC/CG, discorrendo sobre a atuação de psicólogos e psicólogas, recomendou que:

1. A psicóloga e o psicólogo não participem da inquirição de crianças por meio do depoimento especial.

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2. Em caso de solicitação do depoimento especial realizado por outros profissionais, a psicóloga e o psicólogo poderão participar de entrevistas anteriores durante as quais deverá garantir, por meio dessa escuta, o direito da criança ficar em silêncio ou de falar, se essa for a sua vontade.

3. A psicóloga e o psicólogo, como parte integrante da equipe multidisciplinar do judiciário, de acordo com o previsto no ECA, forneça subsídios por escrito, por meio de laudos, ou verbalmente em audiência nos casos por eles avaliados.

4. A psicóloga e o psicólogo desenvolvam trabalhos sempre orientados pela lógica da proteção integral da criança e do adolescente, avaliando o caso e não apenas o relato de menores de idade.

5. A psicóloga e o psicólogo, em sua intervenção, utilizem referencial teórico, técnico e metodológico reconhecidamente fundamentado na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional, de acordo com a especificidade de cada caso.

6. A psicóloga e o psicólogo realizem sua intervenção em espaço físico apropriado que resguarde a privacidade dos atendidos e possibilite a garantia do sigilo profissional.

7. A psicóloga e o psicólogo considerem o Código de Ética da categoria, entre outras resoluções, levando sempre em consideração a não violação dos Direitos Humanos.

Observa-se que o CRP recomenda (sem caráter impositivo) a não participação de psicólogos na inquirição de crianças por meio de depoimento especial, no entanto, não é razoável ignorar que no Estado de Santa Catarina os Psicólogos Policiais não são nomeados “ad hoc”, mas sim profissionais de carreira a serviço do Estado e da investigação criminal e, desta forma, integrantes do sistema de atendimento e alcançados pela Lei 13.431/17. Portanto, tem o dever profissional e legal de participar, quando requisitados, do depoimento especial.

Na sequência, a mesma recomendação infere a possibilidade de participação do Psicólogo no depoimento especial e a emissão de laudos sobre os casos por ele avaliado.

De toda sorte de contradições e interpretações, não se pode se olvidar que a recomendação do CRP se destina aos Psicólogos “ad hoc”, e não aos Psicólogos Policiais, integrantes de carreira do Estado e sujeitos às regras hierárquicas da Instituição a que pertencem, cuja finalidade não é a relação profissional-paciente, mas sim a obtenção da verdade para subsidiar a investigação criminal e o processo judicial.

Assim, é impositivo concluir que não há violação do sigilo profissional a expedição de laudo psicológico no estrito cumprimento do dever legal do agente público da carreira de psicólogo policial, tão pouco, há vedação legal para sua participação nos depoimentos especiais ou escuta especializada.

Sobre o autor
Aldo Pinheiro D Avila

Delegado de Polícia do Estado de Santa Catarina

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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