Discussão sobre a legalidade da utilização pelo “carona”, considerando a Lei nº 14.133/2021.
INTRODUÇÃO
Há algum tempo, após a regulamentação do Sistema de Registro de Preços, previsto no art. 15, da Lei nº 8.666/93, tem-se concluído que a utilização desse procedimento auxiliar é, estrategicamente, uma forma de implementar o planejamento das contratações.
Até mesmo a utilização da ata de registro de preços por órgão não participante do processo licitatório, observando o devido planeamento, há quem entenda que, também, é uma ferramenta que socorre a Administração, para atendimento de suas necessidades, por meio de uma licitação já realizada por outro órgão.
No âmbito da Lei nº 8.666/93, havia a discussão em torno da legalidade e constitucionalidade da figura do órgão não participante da ata de registro de preços, popularmente, conhecido como “carona” – aquele órgão que se aproveita de um procedimento licitatório realizado por outro órgão ou entidade, pelo Sistema de Registro de Preços, utilizando-se de Ata de Registro de Preços. O que não deve ocorrer com a Lei nº 14.133/2023, considerando que a própria lei trouxe a figura do órgão não participante – “carona” –, definindo como sendo o órgão não participante da ata de registro de preços resultado do procedimento licitatório do órgão gerenciador.
No âmbito da Lei nº 8.666/93, temos, pelo menos, para a esfera federal, o Decreto nº 7.892/2013 como sendo a norma regulamentadora do procedimento auxiliar “Sistema de Registro de Preços” – SRP, no qual constam as regras do “carona”. Enquanto que, no âmbito da Lei nº 14.133.2021, além do próprio texto, no § 2º, do art. 86, temos o Decreto nº 11.462/2023, que regulamenta do referido procedimento auxiliar.
No entanto, considerando o fim da vigência da Lei nº 8.666/93 e, consequentemente, das normas infralegais que regulamentaram o Sistema de Registro de Preços da mesma, importante entender como ficará a utilização das atas de registro de preços fundamentadas na antiga lei de licitações.
A ideia desse texto é discutir o tema no âmbito do Decreto nº 7.892/2013 e do Decreto nº 11.462/2023, notadamente, quanto à figura do órgão não participante (“carona”).
Afinal, até que ponto poderei, como órgão não participante, utilizar uma ata de registro de preços de outro órgão regida pelo Decreto nº 7.892/2013, após o fim da vigência da Lei nº 8.666/93?
VIGÊNCIA DAS ATAS REGIDAS PELO DECRETO Nº 7.892/2013
O Decreto nº 11.462/2023 prevê, em seu art. 38, o seguinte:
Art. 38. Os processos licitatórios e as contratações autuados e instruídos com a opção expressa de ter como fundamento a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, ou a Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, além do Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, serão por eles regidos, desde que:
I - a publicação do edital ou do ato autorizativo da contratação direta ocorra até 29 de dezembro de 2023; e
II - a opção escolhida seja expressamente indicada no edital ou no ato autorizativo da contratação direta.
Esse texto do decreto observa, ainda, a data limite de vigência da legislação antiga, constante no texto atual do art. 193, da Lei nº 8.666/93, alterado pela Lei Complementar nº 198/2023, que altera o inciso II, do art. 193, nos seguintes termos:
“Art. 193. .......................................................................................................................
...................................................................................................................................................
II - em 30 de dezembro de 2023:
a) a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993;
b) a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002; e
c) os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011.”
Observando o Decreto nº 11.462/2023, temos a mesma regra da, então, extinta Medida Provisória nº 1.126/2023, que delimitava e norteava o prazo de publicação do edital ou do ato autorizativo da contratação direta, devendo ocorrer até 29 de dezembro de 2023, para que a ata de registro de preços objeto de uma licitação autuada e instruída com a opção expressa de utilização da Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/02 ou Lei nº 12.462/2011, além do Decreto nº 7.892/2013, possa seguir ser regido por essa legislação. Deixando, ainda, no inciso II, do art. 38, claro que essa opção deverá estar, expressamente, indicada no edital ou ato autorizativo da contratação direta.
Sem adentrarmos à discussão acerca do texto se referir a contratação direta, não prevista nem na Lei nº8.666/93, nem no Decreto nº 7.892/2013, em complemento ao texto do art. 38, do Decreto nº 11.462/2023, o § 1º, do mesmo art. 38, prevê, ainda:
§ 1º Os contratos, ou instrumentos equivalentes, e as atas de registro de preços firmados em decorrência do disposto no caput serão regidos, durante toda a sua vigência, pela norma que fundamentou a sua contratação.
Vê-se que os textos se coadunam com a regra prevista no art. 191, da Lei nº 14.133/2021, que prevê que, até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193 (atualmente, 29 de dezembro de 2023, por força da Lei Complementar nº 198/2023), a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso. Além da regra constante no parágrafo único, do art. 191, que prevê que, caso a Administração opte por utilizar a legislação antiga, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.
Em que pese o art. 191 não fazer referência às atas de registro de preços (visto que ata de registro de preços não é contrato), já entendíamos que, ao permitir que, uma vez instruído o processo licitatório para registro de preços, optando-se pela utilização da Lei nº 8.666/93, pela Lei nº 10.520/02 e pelo Decreto nº 7.892/2013, tal regra de permanência da vigência da ata de registro de preços aplicada aos contratos também seria utilizada. Senão, não haveria lógica, por exemplo, um órgão optar por realizar um pregão pela Lei nº 10.520/02, em 01.10.2023, e a ata só ter vigência até dia 29.12.2023; estaríamos diante de uma situação ilógica não permitir que a ata permanecesse com sua vigência normal.
Pois bem, voltando ao previsto no art. 38 e parágrafo 1º, do Decreto nº 11.462/2023, caso, por exemplo, um determinado órgão ou entidade, tenha realizado um pregão para registro de preços, com fundamento na Lei nº 10.520/02, sendo regido, também, pelo Decreto nº 7.892/2013, e a ata tenha início de vigência em 01.08.2023, tendo sua vigência até 31.07.2024, essa ata de registro de preços poderá ser utilizada pelo órgão gerenciador e órgãos participantes até 31.07.2024, para contratar, sendo a contratação regida pela Lei nº 8.666/93; inclusive, regras de vigência, repactuação, reajuste, reequilíbrio econômico-financeiro da contratação.
Outro exemplo, também utilizando a regra do art. 191 e parágrafo único, e do Decreto nº 11.462/2023, caso a licitação ocorra dia 20.12.2023, regida pela legislação antiga, mesmo que a ata de registro de preços seja assinada dia 01.03.2024, há a possibilidade de utilização pelo órgão gerenciador e órgãos participantes, considerando que o edital foi publicado antes do dia 29.12.2023.
E, por fim, outro exemplo que poderá ocorrer, pela permissão do art. 38, do Decreto nº 11.462/2023, é que, caso a Administração opte no processo licitatório pela utilização da legislação antiga para um determinado pregão para registro de preços, em 01.11.2023, mesmo a licitação ocorrendo em 01.02.2024, desde que o edital seja publicado até 29.12.2023, poderá ser firmada ata de registro de preços e, em seguida, a contratação, pelo órgão gerenciador e participantes, mesmo não estando mais vigentes a Lei nº 8.666/93, nem o Decreto nº 7.892/2013. Podendo, por exemplo, a ata ter vigência de 01.04.2024, até 31.03.2025.
Concluímos, então, para as três situações, nas quais estão no processo licitatório o órgão gerenciador e órgãos participantes, que a regra do Decreto nº 11.462/2023, que permite a utilização da ata de registro de preços após 29.12.2023, é, tranquilamente, aplicável.
Mas, e quanto à utilização dessa ata de registro de preços, dos exemplos acima por órgão não participantes, os “caronas”? Sempre será possível sua utilização?
O CAUTELA NA UTILIZAÇÃO DE ATAS DE REGISTRO DE PREÇOS POR “CARONA”, APÓS FIM DA VIGÊNCIA DO DECRETO Nº 7.892/2013
Antes de adentrarmos à discussão, propriamente, importante lembrar as definições de “órgão ou entidade não participante”, o conhecido “carona”, trazidas no inciso XLIX, do art. 6º, da Lei nº 14.133/2021, e no inciso V, do art. 2º, do Decreto nº 11.462/2023:
Lei nº 14.133/2021
Art. 6º ...:
XLIX - órgão ou entidade não participante: órgão ou entidade da Administração Pública que não participa dos procedimentos iniciais da licitação para registro de preços e não integra a ata de registro de preços;
Decreto nº 11.462/2023:
Art. 2º....:
V - órgão ou entidade não participante - órgão ou entidade da Administração Pública que não participa dos procedimentos iniciais da licitação para registro de preços e não integra a ata de registro de preços;
Nas duas definições, está claro que o órgão ou entidade não participante, o conhecido “carona”, é aquele órgão que surge após homologação do procedimento licitatório e quando a ata de registro de preços já está vigente, considerando que esse personagem não integra do processo licitatório e, logicamente, a referida ata.
Não há como se falar em órgão “carona” antes da existência da ata de registro de preços.
Referida interpretação é reforçada pelo próprio texto do § 2º, do art. 86, da Lei nº 14.133/2021, e do art. 31, ao preverem que, durante a vigência da ata, os órgãos e as entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal que não participaram do procedimento de Intenção de Registro de Preços (procedimento prévio à licitação, para se saber qual órgão tem interesse em participar da licitação e, consequentemente, da ata de registro de preços resultante dela) poderão aderir à ata de registro de preços na condição de não participantes.
Para tanto, os órgãos não participantes, deverão apresentar justificativa da vantagem da adesão, inclusive em situações de provável desabastecimento ou de descontinuidade de serviço público, demonstrar a compatibilidade dos valores registrados com os valores praticados pelo mercado, e realizar consulta prévia ao fornecedor registrado na ata de registro de preços, se este tem interesse em fornecedor o objeto da ata de registro de preços ao órgão não participante, e, realizar consulta ao órgão gerenciador da ata de registro de preços, que, mediante os limites para adesão constantes, tanto na Lei nº 14.133/2021, quanto no Decreto nº 11.462/2023, poderá concordar e autorizar a utilização da sua ata de registro de preços pelo órgão não participante.
Vemos, então, que, para utilização da ata de registro de preços pelo “carona”, não há obrigatoriedade do fornecedor registrado aceitar, nem mesmo, do órgão gerenciador permitir sua utilização.
Há, obrigatoriamente, uma fase de planejamento para o órgão “carona”; inclusive, entendemos que a discussão acerca da vantajosidade deva ocorrer nos Estudos Técnicos Preliminares que, ao final, poderá trazer como melhor solução a adesão à referida ata de registro de preços e a todas as regras da contratação, inclusive, constantes no Termo de Referência da licitação aderida.
Motivo, inclusive, pelo qual, entendemos que, no processo de adesão do órgão não participante, não haverá Termo de Referência construído por esse; mas, uma vez confirmada a adesão, o “carona” observará o cumprimento das regras contidas no Termo de Referência da licitação que resultou na ata de registro de preços aderida.
Entendemos ser ilógico o órgão “carona” construir um Termo de Referência próprio, se, ao aderir à ata de registro de preços, a lógica é que as regras do Termo de Referência da licitação aderida é o que já atende à necessidade, como sendo a melhor solução.
Não há adesão sem planejamento prévio que se conclua, por meio dos Estudos Técnicos Preliminares, que a melhor solução para atendimento da necessidade do “carona” é a adesão a uma ata de registro de preços.
Seguindo a nossa discussão, observamos, então, que o órgão não participante, em não participar da licitação e dos procedimentos iniciais, inclusive, da fase de planejamento do órgão gerenciador, não constará no Termo de Referência nem no edital.
Dessa forma, observando o trouxemos no tópico anterior, não haverá, para esse referido órgão não participante a automática utilização do Decreto nº 7.892/2013, visto que, como o órgão gerenciador, responsável pela licitação, será quem, no processo licitatório, declarará a opção por licitar pela legislação antiga, sendo o edital publicado até 29.12.2023, observando o art. 38, do Decreto nº 11.462/2023, e art. 191, da Lei nº 14.133/2021, a única contratação, nesse momento, que permanecerá pela legislação antiga, será a contratação do órgão gerenciador e dos órgãos participantes. Afinal, até a existência da ata de registro de preços, inexiste a figura do “carona”.
No entanto, temos a seguinte regra, prevista no texto do § 2º, do art. 38, do Decreto nº 11.462/2023:
§ 2º As atas de registro de preços regidas pelo Decreto nº 7.892, de 2013, durante suas vigências, poderão ser utilizadas por qualquer órgão ou entidade da Administração Pública federal, municipal, distrital ou estadual que não tenha participado do certame licitatório, mediante anuência do órgão gerenciador, observados os limites previstos no referido Decreto.
Referido texto do decreto pode nos levar a entender que, mesmo após o fim da vigência da Lei nº 8.666/93, as atas de registro de preços regidas por referida lei, tendo como regras regulamentadoras o Decreto nº 7.892/2013, podem ser utilizadas por quem não fazia parte do processo licitatório, no qual consta a opção pode adoção da referida legislação pelo órgão gerenciador e órgãos participantes.
Mas, será que, em todas as situações, poderá ocorrer referida adesão?
Vejamos em exemplos práticos:
Primeiramente, na situação onde o órgão gerenciador optou por licitar e contratar pela legislação antiga, conforme art. 191, tendo o pregão sido realizado em 01.08.2023, e a ata de registro de preços vigente a partir de 01.11.2023. Havendo a existência da ata de registro de preços antes mesmo do prazo final de vigência da legislação antiga.
Nessa hipótese, caso a fase de planejamento da contratação do órgão carona ocorra até 29.12.2023, estando clara a vantajosidade na adesão à referida ata, mediante os procedimentos já tratados acima, concluindo-se, ao final do seu planejamento, que a adesão à ata de registro de preços é a melhor solução, e, caso a autoridade competente opte, claramente, no processo pela utilização da ata de registro de preços, que, por sua vez, tem fundamento na legislação antiga, entendemos ser possível a concretização da contratação, mesmo que a contratação ocorra em janeiro de 2024.
Em que pese, nem os art. 191 e parágrafo único abordarem a situação de contratação por adesão à ata de registro de preços, interpretamos, de forma extensiva, que o ponto principal é a opção da autoridade competente, após a comprovação da vantajosidade em aderir.
Outra situação, no entanto, entendemos não ser possível a utilização da ata de registro de preços por órgão não participantes, mesmo com a permissão do Decreto nº 11.462/2023. Que seria a situação na qual a opção pela adesão ocorra após 29.12.2023, exatamente, com fundamento na própria regra para adesão e no art. 191, da Lei nº 14.133/2021. Explicamos:
Como já nos posicionamos, para ser realizada a adesão, o órgão não participante deverá discutir, na fase de planejamento, se aquela solução registrada é a que lhe atende e, uma vez, concluindo que sim, a autoridade competente emitirá posicionamento definindo que a opção escolhida foi a adesão à referida ata de registro de preços, regida, no nosso exemplo, pelo Decreto nº 7.892/2013, que regulamento o SRP da Lei nº 8.666/93.
Mas, vejam: o art. 191, da Lei nº 14.133/2021 determina que opção pela escolha da legislação a ser seguida deverá ocorrer até 29.12.2023, enquanto vigente, ainda, a Lei nº 8.666/93. Após essa data, não existe mais opção em contratar pela legislação antiga, se o órgão não estava integrando o processo licitatório e já havia sido lançado o edital até 29.12.2023.
Como já comentamos, não existe órgão “carona” antes da existência da ata e, logicamente, não há como haver um planejamento desse órgão discutindo uma adesão de uma ata inexistente.
Nesse sentido, então, não há possibilidade de, por exemplo, em janeiro de 2024, após ser realizado o Estudo Técnico Preliminar para se discutir a necessidade e as soluções possíveis, se optar por aderir a uma ata regida pelo Decreto nº 7.892/2013, cuja licitação foi fundamentada na Lei nº 8.666/93 ou, no caso de pregão, pela Lei nº 10.520/02.
Entendemos que, mesmo o Decreto nº 11.462/2023 permitindo a utilização, durante sua vigência, das atas de registro de preços regidas pelo Decreto nº 7.892/2013 por órgão não participantes do processo licitatório inicial, não tem como esse órgão optar por seguir as regras dessa licitação após 29.12.2023, simplesmente, porque essa é a regra clara do art. 191, da Lei nº 14.133/2021.
Não há como optar por utilizar a legislação antiga após 29.12.2023.
Referida interpretação é extensiva à situação, por exemplo, da licitação ser publicada até 29.12.2023, ocorrendo em janeiro de 2024, com a ata assinada em fevereiro de 2024, mesmo que pela legislação antiga, pela mesma razão: como o órgão não participante não está presente no processo licitatório inicial, não há como aplicar a regra do parágrafo único do art. 191 e não há como ele optar antes de 29.12.2023.
CONCLUSÃO
Observamos, então, que, de acordo com a situação construída no processo licitatório inicial, a possibilidade de adesão a atas de registro de preços regidas pelos Decreto nº 7.892/2013, mesmo com a permissão do Decreto nº 11.462/2023, deverá observar o caso concreto específico.
Não há, entendemos, como padronizar a utilização, para qualquer situação, dessa ata de registro de preços, por um órgão não participante, visto que temos as regras de limitação de prazo de opção constantes no art. 191, da Lei nº 14.133/2021, em conjunto com o prazo determinado pelo art. 193.
Nesse sentido, é fundamental que os órgãos que vislumbram, sempre, que a adesão à ata de registro de preços será sempre a melhor solução, sem demandar estudo necessário acerca da viabilidade da adesão, o façam e optem até 29.12.2023. Após essa data, entendemos não ser possível optar por utilizar, como órgão não participante, de atas regidas pelo Decreto nº 7.892/2013.