Trabalhando os conceitos
A posse e a propriedade são construtos culturais no âmbito da regulação coativa da vida social, concebidos e impostos por elites dominantes nas sociedades hierarquizadas. No estágio evolutivo dos caçadores-coletores, sequer fazia sentido algum membro do bando ou grupo social ocupar isoladamente uma gleba para tê-la sob seu exclusivo domínio. Era inconcebível que alguém, com exclusão dos outros membros de seu grupo, usasse, gozasse e dispusesse com exclusividade das coisas como bens de produção seus ou de sua unidade familiar.
Porém, a certa altura do estágio da domesticação dos animais e das plantas e do melhoramento dos instrumentos de produção, tornaram-se possíveis a demarcação de território, a sedentarização, estratificação social, ocupação de áreas de produção por indivíduos de certos estrados sociais, e a organização de meios de defesa frente a grupos invasores para espoliação, dominação e/ou escravização. Com isso, surgiram, ao longo de alguns milênios (entre 10.000 e 3.000 a.c) as especializações sociais: sacerdotes, guerreiros, governantes, agricultores, artífices e servidores. O resultado de tudo não é algo espontâneo da natureza; foi criação do homem, a qual muda no tempo e no espaço, a depender das adaptações necessárias à sobrevivência.
Propriedade e posse são ordenações coativas das relações entre as pessoas relativamente à disponibilização das coisas (móveis e imóveis; bens de produção e bens de consumo). Na essência, são regulações do que é permitido às pessoas, com exclusão das outras, em relação a uma coisa determinada. Assim, o proprietário pode usar, gozar e dispor da coisa com exclusão das demais pessoas; o possuidor exerce esses poderes na coisa, fora o de alienação, ainda que possa transferir a posse como tal. Não por acaso surgiram esses arranjos sociais; conceberam-se para atender uma função social: ordenação das relações das pessoas em relação às coisas suscetíveis de utilização com exclusividade.
Para emergir a posse exige-se uma postura singular de quem ocupa a coisa: não basta estar na coisa imóvel ou com a coisa móvel, é preciso que também que se sinta como dono dela. A ocupação é de fácil constatação por um dado físico exteriorizado, mas o ânimo de dono, por ser uma situação interior, é de mais difícil constatação. Daí, diferentemente do que ocorre na caraterização da propriedade, a lei faz sua identificação por exclusão: não é possuidor quem ocupa a coisa em certas situações definidas legalmente. É o que faz o Código Civil (...)
Não é possuidor aquele que ocupa a coisa:
a) por ordem, autorização ou tolerância de outrem: quem se relaciona com a coisa nessa condição não pode ser tido como dono dela; no seu trato com a coisa obedece a outrem, o que exclui o ânimo de dono;
b) mediante violência (ocupação com uso de força ou de ameaça), clandestinidade (às escondidas) ou ardil (com artimanhas): quem assim se conduz em relação à coisa evidencia que tem ciência de que a coisa é de outrem, pelo que não poderá tê-la como sua;
c) por um direito pessoal ou real limitado (pode usar a coisa e dela gozar), porque a ocupação se dá por um vínculo jurídico estabelecido com quem legitimado a formá-lo; enquanto vigente o vínculo, está autorizada a detenção da coisa; e, findo o vínculo, emerge o dever de restituí-la a quem a concedeu; se inerte este na retomada, a partir daí pode emergir posse em favor do detentor.
Na situação “c”, tem-se tecnicamente detenção. Essa situação não significa posse indireta, como tem sido pensado e ensinado. A dita posse indireta, ainda que corrente, é tecnicamente inexata: a noção de posse indireta anula o conceito de posse, pois o detentor, enquanto vigente o vínculo pelo qual ocupa a coisa, mas em situação de exclusão do ânimo de dono; na realidade, não pode pretender ter a coisa como sua; portanto, não é possuidor. Assim, a ocupação da coisa em razão de um vínculo jurídico é tecnicamente detenção jurídica. É o caso do locatário, do comodatário, do usufrutuário, do devedor-fiduciante etc.
Visto isso, cumpre conferir as teorias que, no século 19, tentaram estabelecer seu conceito. A propósito, formaram-se duas teorias acerca do tema, de Savigny e de Ihering. E até hoje, prolonga-se a discussão sobre ser a posse um direito real.
Essas percepções podem ser entendidas assim: para Savigny, a posse compreende dois elementos: um físico, dito “corpus” (ocupação – no sentido estar em ou com – a coisa) e um psíquico, o “ânimo” (disposição de dono da coisa); para Ihering, a posse se revela no exercício de poderes inerentes à propriedade (ver art. … do Código Civil/2002). A análise técnico-legal da posse mostra que a percepção de Ihering é inexata: o detentor jurídico de uma coisa (por exemplo: o locatário), ainda que use e goze dela (exerça, assim, poderes inerentes à propriedade), não é possuidor.
Os conceitos legais
As noções de posse e propriedade, como visto, se entrecruzam. Possuidor é quem se apresenta como dono de uma coisa por exercer nela alguns dos poderes enfeixados na propriedade. Mas, em razão de sua natureza peculiar, a disciplina legal da posse tem um modo próprio de formulação: em vez de se definir o que é posse, enunciam-se as situações fáticas que excluem o ânimo de dono. São situações incompatíveis com o sentir dono.
Poderes ou faculdades do possuidor e do detentor
A relação pessoa-coisa, vista da perspectiva do direito real, apresenta a seguinte gradação: detenção, posse e domínio. Ao possuidor a ordem jurídica confere um plexo de poderes, entre os quais se destacam:
a) colher os frutos da coisa;
b) ser indenizado de benfeitorias feitas na coisa;
c) usar as ações específicas para defesa da posse (aos meros detentores se conferem as ações possessórias por uma concessão da lei, não porque sejam possuidores; as ações do detentor bem que poderiam ser outras);
d) adquirir o domínio após certo lapso de tempo estabelecido em lei (usucapião), situação reconhecível em ato que formaliza o domínio.
A doutrina tradicional
Na doutrina tradicional, a percepção da posse é confusa:
Qualquer direito subjetivo tem origem em um fato jurídico. Todavia, a polêmica despertada pela natureza da posse – fato ou direito – é intensificada pela inexistência de uma terminologia capaz de distinguir o fato jurídico que lhe dá origem do direito subjetivo que o secunda. Exemplificando: a morte (fato jurídico stricto sensu) provoca o direito subjetivo de suceder; o contrato (negócio jurídico) desencadeia o direito subjetivo ao credito. Nada obstante, na matéria em relevo, o fato jurídico posse desencadeia o direito de possuir, independentemente de qualquer cogitação sobre a propriedade. (Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosevald. Direitos reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ed. 2, p. 34-35)
A expressão posse é ambígua e designa tanto o fato jurídico que, na norma, é descrito como antecedente do direito aos interditos ou à aquisição por usucapião como a faculdade de agir em defesa de seus interesses, quando ameaçados ou lesionados.
[...]
E nesse sentido da faculdade de agir também se emprega a expressão “propriedade”. A qual desses significados corresponderia a essência do conceito é questão metafísica, sem qualquer relevância tecnológica. (Fábio Ulhoa Coelho. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 16/17)
Tanto a posse como a propriedade são inegavelmente fatos juridicamente valorados e seus efeitos no mundo jurídico estão disciplinados na lei: a propriedade – que tem os modos de aquisição estabelecidos na lei – é o vínculo pessoa-coisa que, em razão dela, confere ao titular os poderes de usar, gozar e alienar a coisa (art. 1.228 do Código Civil); posse é relação pessoa-coisa em situações que oportunizam captasse a presença do ânimo de dono.
A relação pessoa-coisa só se converte em vínculo jurídico (propriedade ou posse) quando a pessoa em relação à coisa atende a determinados requisitos da lei. Assim, se a pessoa adquire a coisa pelo modo e nas condições estabelecidas na lei, torna-se proprietário; de igual modo, se a pessoa ocupa/tem a coisa em situação não excludente do ânimo de dono, torna-se possuidor.
Pontue-se, pois, que a posse é um direito: trata-se de uma situação juridicamente relevante, pois, como a propriedade, é apta a irradiar poderes e faculdades juridicamente defensáveis.
Classificação das posses
Se tecnicamente conceituada, a noção de posse dispensa um emaranhado de classificações sibilinas, até mesmo contraditórias. Ei-las: posse direta e posse indireta; posse legítima e posse ilegítima; posse justa e posse injusta; e posse de boa-fé e de má-fé.
Todas essas noções são desfigurantes do conceito técnico de posse. Posse indireta é a rigor detenção jurídica. O que pode ser ilegítima, injusta ou de má-fé é a ocupação (que envolve autorização, tolerância, violência, clandestinidade, ardil), e não a posse. Esta só emerge quando a ocupação de coisa está em sintonia com a ordem jurídica. Só o autêntico possuidor, e não o ocupante, titulariza o elenco acima descritos de faculdades e poderes. O ocupante numa dessas situações contrai deveres em relação ao possuidor ou proprietário da coisa.
Essas percepções permitem enfocar o real significado da posse, abrindo caminho ao rigoroso tratamento terminológico do tema (distinção da posse de figuras afins: ocupação, detenção, propriedade etc) e, na mesma trilha, erradicar noções rigorosamente descabidas, ou mesmo metafísicas e, por isso, estéreis. (A ciência jurídica, como qualquer saber científico, precisa despir-se do bizantinismo pré-moderno, afastando-se das discussões metafísicas).
Aplicações
A aplicação de um conceito técnico da posse permite ver que:
a) o adquirente de uma coisa móvel, não tem sua posse antes de ocorrida a tradição (transmissão física da coisa); mas, como o alienante se obrigou a transferir a coisa contra o pagamento do preço, o adquirente que paga pode promover-lhe ação adjudicatória (fala-se de ação de imissão na posse, mas é incorreto; pretende-se ocupar a coisa para exercer sobre ela os poderes do domínio; o procedimento não é possessório). Já em relação ao adquirente de coisa imóvel: efetivado o registro imobiliário do instrumento de aquisição, tem-se, por ficção legal, por operada a transmissão do domínio; por isso, se houver recusa na entrega física do imóvel, o adquirente, já titular do domínio, poderá reivindicá-lo do alienante, que passa a ocupar o imóvel ilegitimamente);
b) havendo atraso no pagamento das prestações da quantia emprestada para aquisição da coisa, o credor fiduciário tecnicamente deveria requerer a desconstituição do contrato (por força do qual o devedor fiduciante detém a coisa) cumulada com busca e apreensão; mas, por conveniência do mercado, a lei passou a admitir que, notificado o inadimplente, pleiteiem-se, de logo, a busca e apreensão e a alienação extrajudicial;
c) conceitos apropriados à exata compreensão da Súmula 487/STF ([s]erá deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base nesse for ela disputada): quem demanda a posse na condição de possuidor pode fazê-lo até em face do proprietário; mas se a disputa respeitar à posse em razão do domínio, ela não será concedida a quem não for o dono da coisa.
Assim, sem a costumeira repetição do “quem disse o quê”, numa postura escolástica de absoluto acatamento de opiniões antigas porque antigas e emanadas de autoridades do passado, apreendem-se os aspectos relevantes do fenômeno jurídico da posse e, com as ferramentas da ciência jurídica, pode-se formular a terminologia precisa ao seu trato. E, aí, chega-se ao que realmente interessa: o desnudamento de um autêntico direito real – isso mesmo, um poder jurídico sobre coisa física instituído por lei –, nascido do ato de ocupar (no sentido de estar em/com) a coisa em situação, na forma da lei, que não exclua o ânimo de dono.
Concluindo, acresça-se que, na disciplina do tema posse, o Código Civil (CC), tanto o atual quanto o anterior, carrega muito dos defeitos de percepção da doutrina tradicional.