Morte na Papuda e Estado de Exceção

14/12/2023 às 10:05
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“Vagas Estrelas da Ursa”, como no filme célebre de Luchino Visconti, ainda incertas e distantes, anunciam que pode haver um fim mais breve para o Estado de Exceção em que vivemos e cuja expectativa era de se estender por décadas.

1. Depois da morte no pátio do Complexo Penitenciário da Papuda, em 20.11.2023, de um preso provisório pelas invasões de 8 de janeiro, que pediu insistente tratamento médico, comprovando que padecia de doenças graves e sequelas da Covid, sem que houvesse apreciação do ministro relator Alexandre de Moraes, por mais de dois meses depois do encaminhamento de laudo comprobatório pela Polícia Federal, embora constasse parecer favorável da Procuradoria da República, talvez tenha surgido uma consciência súbita de que nosso país está imerso em um Estado de Exceção, resultado de uma singular ideologia da justiça legiferante, concebida pelo min. Gilmar Mendes e adotada pelo min. Dias Toffoli e pelo próprio min. Moraes, sendo esse o núcleo ativo ao qual aderiu o min. Roberto Barroso, como seu justificador, desde que tal estranho tipo de consulado foi anunciado pelo “Inquérito do Fim do Mundo”, que tem como fiadores os colegiados do Tribunal Superior Eleitoral, do Supremo Tribunal Federal, do Conselho Nacional de Justiça e do CNMP.

2. Os fatos da implantação do Estado de Exceção vêm sendo praticados dentro e fora do Inquérito 4871/2019, instaurado através de portaria do min. Dias Toffoli, com base em dispositivo regimental de alcance restrito, mas que recebeu a alcunha de “Inquérito do Fim do Mundo”, dada em entrevista pelo min. Marco Aurélio, em 2020, o qual proferiu o único voto vencido, reconhecendo (1) a ilegalidade de sua iniciativa ex officio, (2) do procedimento inquisitório adotado pelo próprio órgão julgador e (3) do manifesto objeto visado de promover a desmobilização política.

Tais fatos não precisam ser recapitulados, pois todos são recentes e de conhecimento público, e envolvem (1) a anulação de processos julgados nas várias instâncias judiciárias, (2) a revogação da coisa julgada sem ação rescisória ou revisão criminal, (3) a cassação de mandatos, (4) as prisões cautelares, (5) as interdições de uso de meios de comunicação, (6) a indisponibilidades de bens e outras medidas de efeito terminativo ou peremptório.

3. Imediatamente após o óbito de Cleriston Pereira da Cunha, aos 46 anos, no pátio da Papuda, em Brasília, o Senado Federal aprovou a PEC 8/2021, que limita a concessão de julgamentos antecipatórios singulares, isto é, por um só ministro do Supremo, chamados sem muita técnica de decisões monocráticas.

A inadequação no uso dessa expressão parece clara ao se recorrer à nomenclatura usada no estudo científico da política, pois não pode haver atuação monocrática em um regime democrático, uma vez que monocracia tem o sentido óbvio de governo de um, ou seja, guarda um expressivo vínculo com o absolutismo.

O resultado da votação no Senado foi de 52 votos favoráveis e 18 contrários, sendo que, dentre os favoráveis, contam-se parlamentares de quase todos os partidos, incluindo os da base governamental.

Caso a concessão ocorra durante o recesso forense, sempre contra texto de lei, a convalidação pelo colegiado (e, portanto, a vigência da liminar) deverá ocorrer em 60 dias e, em qualquer caso, o julgamento de mérito em 6 meses.

4. Na ‘Justificação da Proposta’, conforme revela a ‘Agência Senado’, consta o levantamento de que, entre 2012 e 2016, foram concedidas pelo STF 833 decisões ditas monocráticas, em caráter cautelar, ou seja, 80 por ministro em média, enquanto o julgamento de mérito teve de aguardar – também em média – por dois anos.

A PEC em trâmite repete os termos de anterior, que havia sido derrotada.

Portanto, alguma mudança de percepção houve.

Ainda assim, é impróprio dizer que a iniciativa restringe os poderes do Supremo, como se vê na imprensa, pois antes ordena um procedimento que vem sendo caótico e acaba patrocinando a ideologia que bem merece ser classificada como política do proveito.

5. Também foi ‘ressuscitada’ nestes dias a PEC 16/2019, que estabelece o mandato de 8 anos para exercício do cargo de ministro do STF, e ela passou a despertar grande interesse parlamentar.

Desde logo poderia ser reconhecido, sem maior dificuldade, que as características de mandato, com prazo fixo, colidem com os preceitos constitucionais relativos à garantia da vitaliciedade e ao direito de acesso, sendo que este não depende de delegação ou outorga de voto, nem guarda semelhança com os cargos de governo e representação parlamentar, ou seja, do mando político em uma República, que é temporário, pelas próprias características do regime.

6. Ocorre que foi o próprio Supremo Tribunal Federal quem sabotou as garantias históricas da magistratura, que vêm sendo reafirmadas nas nossas sucessivas Constituições.

Quando o min. Luiz Fux outorgou sem lei o direito à percepção de um “auxílio moradia”, somente para juízes em atividade, ele mutilou diretamente, com o seu cajado de profeta, duas garantias, a da irredutibilidade e a da vitaliciedade.

A primeira, porque os proventos de aposentadoria foram diminuídos, pela via da consequência, criando classes de juízes que não estão distinguidas na lei.

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A segunda, porque a vitaliciedade deixou de significar, como sempre aconteceu, a manutenção de igual tratamento decorrente do cargo, tanto pelo exercício passado como pelo presente, de modo que desapareceu a equiparação plena, pois ela passou a ser temporária e ocasional.

7. Até hoje é mais do que embaraçoso - é francamente vergonhoso -, falar em como esse penduricalho, que acabou com mais de um século da unidade da tríplice garantia republicana da magistratura, serena e indiscutível, foi revogado.

Depois que caiu o auxílio moradia, vieram outras prebendas, cada qual mais teratológica, sendo que a última é obra do min. Roberto Barroso, pela concessão de licenças de 10 dias por mês, conversíveis in pecunia, o que se tornou fonte de uma hostilidade sem precedentes da sociedade civil, da imprensa e dos outros setores despeitados da nossa numerosa nomenklatura contra os magistrados em geral.

Um jornalista de prestígio chegou a escrever em “O Estado de S. Paulo” que 'é mais fácil a família Bragança voltar ao poder em nossa República do que os doutores perderem seus penduricalhos...'

Contudo, tudo isso já se encontrava analisado por Thorstein Veblen em sua “Teoria da Classe Ociosa”, publicada em 1899, onde expõe que o consumo conspícuo marca a distinção e a dominação entre as classes sociais, fundando assim o que ficou conhecido como a escola que mereceu o expressivo nome de economia institucional.

Como o exemplo do Supremo desafia o imaginário predatório, os outros muitos tribunais estaduais e federais passaram a editar as regras mais inverossímeis para justificar seus avanços no Erário, por via de resoluções.

O próprio Supremo julgou há poucos dias inconstitucional penduricalhos auto atribuídos pelo Ministério Público, por via de resolução do CNMP, outro órgão que se coloca como pilar de sustentação do Estado de Exceção.

Enquanto isso, a Procuradoria Geral da República ficou acéfala de titular por cerca de dois meses.

Assim, é bem provável que o MP, em revanche ao que o STF decidiu, passe a invocar (quando penduricalhos alheios forem questionados) a lei que efetivamente funciona no Brasil, formulada com inexcedível precisão pelo cronista Stanislaw Ponte Preta, personagem do jornalista Sérgio Porto: “ou restaure-se a moralidade, ou locupletemo-nos todos”.

8. Entretanto, parece que está assentado na Biologia, que a reprodução frenética é um recurso utilizado pelas espécies ameaçadas de extinção, assim como a regeneração de órgãos em certos répteis, que assim fogem dos predadores.

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

Logo, uma reação fisiológica se estabelece quando o desequilíbrio chega ao ponto de comprometer a preservação.

É neste exato ponto que estamos em relação à nossa democracia.

Por isso, mostra-se significativo que a proposta de uma CPI do Abuso de Autoridade no STF, apresentada no Congresso Nacional, já tenha recolhido 152 assinaturas favoráveis, faltando apenas 19 para que seja instalada.

9. O presente Estado de Exceção concebido pela “teoria” da jurisdição legiferante do min. Gilmar Mendes e posto em execução pelos ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Benedito Gonçalves e Luis Felipe Salomão, entre muitos outros mais envergonhados, mas essenciais para a sustentação do que é insustentável, sob justificativas conjunturais de conveniência ideológica e política, tanto quanto de miséria jurídica, talvez possa estar indicando que essa febre nefanda também seja breve.

Retrocedemos ao exercício do poder político, no domínio do Estado e no controle do governo, concebido na Primeira República pelo presidente Campos Sales, com as suas Comissões de Legitimação dos eleitos, e de reescolha, pelos que já estavam entronizados no mando, dos que poderiam compartilhar dele, de maneira que o senador Pinheiro Machado destacou-se como o condestável da República por muitos anos, por executar a chamada “política da degola”, e foi morto por isso.

10. Quem olha o firmamento como o ser humano sempre fez, tentando nele encontrar algum sentido para o que seja um pouco mais permanente na sua história errante, desde que – em incontáveis gerações – os primeiros Australopithecus ergueram seus olhos indagadores para o céu, talvez hoje perceba que as ‘Vagas Estrelas da Ursa’ já emitem pequenos sinais de que - como lembrou Galileu Galilei para nunca mais ser esquecido -, num tempo em que tudo parecia estático e impositivo demais, ‘eppur si muove’.

Luiz Fernando Cabeda

P.S.: No entanto, a posição histórica do STF sobre condições prisionais era outra, curiosamente defendida pelo min. Gilmar Mendes, contra o voto do min. Alexandre de Moraes, como no Recurso Extraordinário 580.252, de 16.02.2017, que pode ser acessado no site do STF.

Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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