1 INTRODUÇÃO
O equilíbrio entre o direito à propriedade e a preservação do meio ambiente é um desafio constante no ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição Federal de 1988 estabelece, no artigo 5º, XXII, o direito à propriedade, mas condiciona seu exercício à função social, delineando limites para sua utilização. Essa relação se estende ao meio ambiente, cuja proteção se tornou um imperativo legal e social.
A compreensão da função social da propriedade, aliada à preservação ambiental, ganha relevância diante da necessidade de harmonizar interesses individuais e coletivos. O artigo 182 da Constituição Federal destaca a interdependência entre a função social da propriedade urbana e o plano diretor, enquanto o artigo 186 estabelece critérios para o cumprimento da função social em imóveis rurais, incluindo a preservação dos recursos naturais.
Nesse contexto, o Código Civil, em seu artigo 1228, parágrafo 1º, reforça a responsabilidade do proprietário em utilizar a propriedade de maneira a preservar o equilíbrio ecológico, a flora, a fauna e outros elementos fundamentais. Surge, então, a necessidade de conciliar o exercício do direito de propriedade com a proteção ambiental, visando o bem comum.
A presente análise destaca a importância do Registro de Imóveis como instrumento para a verificação do cumprimento das exigências legais relacionadas ao meio ambiente. A publicidade das informações ambientais nas matrículas contribui não apenas para a fiscalização, mas também para o planejamento ambiental, permitindo uma atuação mais eficaz na defesa dos interesses coletivos e na proteção do patrimônio natural.
Em paralelo, é crucial compreender o histórico do direito ambiental no Brasil, que, embora tenha tido suas bases fortalecidas a partir da década de 1970, ainda demanda constante aprimoramento. A promulgação de leis como a Política Nacional do Meio Ambiente e a Constituição de 1988 reflete o reconhecimento da importância da proteção ambiental para as presentes e futuras gerações.
No desenvolvimento deste artigo, serão explorados os desafios e avanços na integração entre a proteção do meio ambiente e o exercício do direito de propriedade, ressaltando a contribuição do Registro de Imóveis nesse cenário, e contextualizaremos esse debate no contexto histórico do direito ambiental no Brasil.
2. A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE E A PUBLICIDADE IMOBILIÁRIA
A CRFB/88 concedeu a todos o direito de ter propriedade, havendo aí uma garantia constitucional, prevista no artigo 5º, XXII, CF/88. No mesmo sentido, dispõe o inciso XXIII do artigo 5º que instituiu: “a propriedade atenderá a sua função social”.
Verifica-se que, o legislador ao instituir o instituto da função social da propriedade não o fez pensando que assim haveria a exclusão do direito à propriedade privada. Cumpre ressaltar e que não mudou, é que o caráter da propriedade continua sendo de natureza privada, porém, o particular não pode usá-la de qualquer jeito, mesmo a propriedade sendo sua, haja vista que a propriedade deve ser utilizada em prol do interesse do bem comum.
Assim sendo, o direito à propriedade não é absoluto, visto que o proprietário pode usar, gozar e dispor do seu bem, desde que não fira o direito da comunidade. que não foi intenção do constituinte ao prever a função social da propriedade, excluir o direito de propriedade privada.
Contudo, o ministro Gilmar Ferreira Mendes (2004, p. 157) adverte que o legislador:
Deve preservar, porém, o núcleo essencial (Wesensgehalt) do direito de propriedade, constituído pela utilidade privada e, fundamentalmente, pelo poder de disposição. A vinculação social da propriedade que legitima a imposição de restrições, não pode ir ao ponto de colocá-la, única e exclusivamente, a serviço do Estado ou da comunidade.
Verifica-se na própria Constituição Federal em seu artigo 182, parágrafo 2º, que há uma relação de dependência entre o princípio da função social da propriedade e o plano diretor, já que o mencionado artigo dispõe que: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
Em relação aos imóveis rurais, prevê o artigo 186, da Constituição Federal prevê:
A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores.
(…)
Nota-se expressamente no artigo 1228, parágrafo 1º, Código Civil (Lei n°. 10.406/02), a consagração de tal concepção que menciona:
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
É perceptível que, para haver o cumprimento da função social da propriedade é necessário que, o proprietário deverá preservar primeiramente o meio ambiente, pensamento este sedimentado na lei e na decisão jurisprudencial, estabelecendo uma punição para o proprietário, mesmo que não seja ele quem praticou o crime ambiental, à recuperação do dano ambiental.
Danos ao meio ambiente – Proprietário de imóvel rural – Mera alegação de desconhecimento da exploração por outrem – Legitimidade passiva “ad causam” – Danos ao meio ambiente efetivamente constatados – Responsabilidade civil “objetiva”. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Apelação Cível 1.0107.03.900299-6/001 – Comarca de Cambuquira).
Segundo repetidas jurisprudências deste Tribunal Estadual, e do Superior Tribunal de Justiça, a natureza da responsabilidade civil por danos ao meio ambiente é objetiva, independentemente de culpa, se justificando no fato de que o responsável por ter gerado o risco ambiental é quem deverá arcar com os danos que se originaram da atividade exercida.
Frente aos problemas da degradação ambiental e do não cumprimento da função social da propriedade, seria importante que o que for de informação acerca dos imóveis fossem publicizadas, por meio da averbação na matrícula no Registro de Imóveis, a fim de que os responsáveis pela fiscalização e planejamentos ambientais tivessem conhecimento do que fato estava acontecendo na propriedade, para assim se prontificar para defender esse bem de uso comum, e proteger os direitos e interesses particulares.
Assim sendo, é inegável a importância do Registro de Imóveis para averiguar se as exigências previstas em lei, foram cumpridas, por meio da publicidade das informações que tratem sobre o meio ambiente e que respingam sobre os bens imóveis.
Acompanhando as novidades que surgiram quanto ao Registro de Imóveis, verifica Flauzilino Araújo dos Santos (2010, p. 327):
A natureza primordial da atividade registrária decorre de sua vocação estabilizadora da harmonia social, das relações negociais imobiliárias e dos incidentes destas decorrentes, por meio da publicidade registral que emerge dos fundamentos do Estado Democrático de Direito com efeito erga omnes em busca da manutenção ou reposição da paz social. […] É dentro desse contexto que os livros do Registro de Imóveis estão abertos como repositórios, notórios e acessíveis, de atos e fatos que de alguma forma possam repercurtir no direito de propriedade e na função social imobiliária, cujo pronunciamento é marcado por signo peremptório por força dos chamados princípios registrais.
É possível entender que o sistema jurídico reservou importante papel aos registradores na preservação do meio ambiente, que, via publicidade das averbações realizadas nos livros de Registros, oferecerão à sociedade informações ambientais relevantes acerca da propriedade, sendo possível também aferir, se a função social está sendo cumprida ou não pelo proprietário do imóvel.
Tendo em vista o novo conceito de propriedade, limitando o seu uso em função de exigências sociais, ambientais e econômicas, espera-se também nova postura do Oficial de Registro, na medida em que tem responsabilidades com a preservação do meio ambiente, que proporcionará melhor qualidade de vida atendendo as necessidades de gerações atuais e futuras.
2.1 HISTÓRICO SOBRE O DIREITO AMBIENTAL NO BRASIL
Desde à época do descobrimento do Brasil, datado dos anos de 1500 até o ano de 1916, que foi quando surgiu o Código Civil, não havia iniciativas legislativas que tratassem sobre a preservação do meio ambiente ou da biodiversidade. No máximo, foram previstas formas para que os recursos naturais não fossem extintos. Até mesmo no Código Civil de 1916 não havia muita preocupação com o direito ambiental, visto que o diploma legal revogado se atentava mais em proteger o direito de vizinhança, para que as fontes alheias não fossem poluídas. Neste compasso, afirma Milaré (2015, p. 234-237):
Toda essa legislação antiga, complexa, esparsa e inadequada, deixava imune (se é que não incentivava) o esbulho do patrimônio natural, despojado do seu caráter de bem comum e tratado ignominiosamente como propriedade privada, gerido e explorado sem escrúpulos, com discricionariedade acima de qualquer legislação coerente, de qualquer interesse maior.
O marco inicial que fez com que o Direito Positivo Brasileiro começasse a dar uma maior atenção para as questões relacionadas ao meio ambiente foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em junho de 1972 na cidade de Estocolmo, Suécia, que na ocasião contou com a participação de 113 países, 250 organizações não governamentais e organismos da Organização das Nações Unidas (ONU). A partir de então, marcos importantes na Legislação Brasileira em relação à tutela e conservação do meio ambiente ocorreram, que podem ser representados pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei n. 6.938/1981, Lei da Ação Civil Pública, Lei n. 7.347/1985, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a Lei dos Crimes Ambientais, Lei n. 9.605/1998 (MILARÉ, 2015, p. 243).
No que concerne à definição do meio ambiente, antes mesmo da previsão na Constituição Federal de 1988, já houve várias legislações esparsas que trouxeram o conceito legal do bem difuso em debate, de acordo com o art. 3º, I, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente:
Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas; (BRASIL, 1981).
Ainda, o meio ambiente é conceituado como “bem de uso comum do povo”, sendo assim, não pode ser utilizado para e com fins comerciais, nem pode ser tomado por ninguém (MACHADO, 2013, p. 121). Sendo assim, para Luís Paulo Sirvinskas, o meio ambiente não pode ser classificado como público nem privado, mas sim, como um bem difuso, que é o intermediário entre o público e o privado (SIRVINSKAS, 2008, p. 49).
Fora o conceito trazido pelo texto constitucional do que seria meio ambiente, é nítido ao verificar os artigos da Constituição Federal de 1988, que há uma grande proteção do bem jurídico em destaque. A exemplo do que foi mencionado, cita-se a previsão de propositura de ação popular, trazida no art. 5º, inciso LXXIII, permitindo que qualquer cidadão ingresse com a referida ação com o intuito de anular ato lesivo ao meio ambiente (BRASIL, 1988).
Além disso, o texto constitucional, no seu artigo 129, inciso III, atribui ao Ministério Público a função de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do meio ambiente (BRASIL, 1988).
Para entender melhor as nuances do direito ambiental, o que visa estudar, proteger, qual a sua finalidade, é imperioso o estudo dos princípios que norteiam a ciência jurídica em comento.
2.2 PRINCIPIOLOGIA AMBIENTAL
Os princípios de uma disciplina são importantes para que ela se torne autônoma e assim possa se situar no contexto político, histórico, social e cultural em que se encontra.
Neste sentido, os princípios encontram fundamentação e apoio nas declarações de direito internacional, que segundo aponta o professor Paulo Afonso Leme Machado (2013, p.65):
Cresce a potencialidade de seus princípios tornarem-se normas costumeiras, quando não se transformarem em normas jurídicas oriundas de convenções. Uns princípios serão constitutivos do próprio Direito Ambiental e outros princípios serão instrumentais, destinando-se a viabilizar os princípios constitutivos.
Pelo que se verifica, o direito ambiental tem autonomia, a qual foi garantida pelos princípios constitucionais, que em verdade fazem parte dos princípios da Política Global do Meio Ambiente.
2.2.1 Princípio da Equidade Intergeracional
Este princípio pode ser considerado um supra princípio, do qual emana todos os outros princípios do direito ambiental, partindo da ideia de que o meio ambiente é um bem de uso comum do povo, e assim, deve ser protegido, para que as futuras gerações possam desfrutar dos recursos naturais proteção do meio ambiente. Com isso, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225 consagrou o preceito de que compete ao Poder Público e a sociedade em geral o dever de defender e preservar o meio ambiente para as futuras gerações.
3 CONCLUSÃO
O embate entre o direito à propriedade e a preservação do meio ambiente é um desafio que a sociedade e o ordenamento jurídico brasileiro enfrentam continuamente. A Constituição Federal de 1988, ao reconhecer o direito à propriedade, condiciona-o à função social, estabelecendo uma conexão intrínseca entre a propriedade e o bem comum. Paralelamente, a proteção ambiental se tornou uma necessidade legal e social incontestável.
A compreensão da função social da propriedade ganha destaque, especialmente quando consideramos a interdependência entre o direito de propriedade urbana e o plano diretor, conforme estipulado no artigo 182 da Constituição Federal, e os critérios estabelecidos para imóveis rurais, conforme previsto no artigo 186. O Código Civil reforça a responsabilidade do proprietário em preservar elementos fundamentais como flora, fauna e equilíbrio ecológico.
A responsabilidade civil por danos ambientais, conforme jurisprudência consolidada, é objetiva, impondo ao responsável pelo risco ambiental o ônus de reparar os danos decorrentes de suas atividades. Diante dos desafios da degradação ambiental e do não cumprimento da função social da propriedade, a publicidade das informações ambientais nas matrículas do Registro de Imóveis surge como uma ferramenta fundamental.
O Registro de Imóveis, ao disponibilizar informações sobre o cumprimento das exigências legais relacionadas ao meio ambiente, não apenas facilita a fiscalização, mas também contribui para o planejamento ambiental, permitindo uma atuação mais eficaz na defesa dos interesses coletivos e na proteção do patrimônio natural. A atuação dos registradores, nesse contexto, assume um papel significativo na preservação do meio ambiente.
Ao analisarmos o histórico do direito ambiental no Brasil, observamos um percurso de evolução, marcado por marcos legais importantes a partir da década de 1970. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em 1972, foi um catalisador para a atenção crescente às questões ambientais. A promulgação de leis como a Política Nacional do Meio Ambiente e a Constituição de 1988 reflete o reconhecimento da importância da proteção ambiental para as atuais e futuras gerações.
Os princípios do direito ambiental, fundamentados em declarações de direito internacional, são essenciais para a autonomia dessa disciplina. O princípio da equidade intergeracional, em particular, destaca-se como um supra princípio, norteando a proteção do meio ambiente como um bem de uso comum do povo, incumbindo à sociedade e ao Poder Público a defesa e preservação para as futuras gerações.
Em suma, a integração entre a proteção do meio ambiente e o exercício do direito de propriedade exige uma abordagem equilibrada e consciente. O Registro de Imóveis, ao fornecer transparência e publicidade às questões ambientais, desempenha um papel crucial nesse processo, contribuindo para uma gestão mais responsável e sustentável dos recursos naturais e para a construção de um futuro ambientalmente equitativo.
4 REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação. Brasília, DF: Presidência da República, 1981.
BRASIL. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Institui a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Brasília, DF: Presidência da República, 1985.
BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1998.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 12. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Registro de imóveis e meio ambiente. São Paulo: Saraiva, 2010.