Os 12 trabalhos de Hérculos e a velha novidade da vedação a cumulação das funções na nova Lei de licitação – Lei 14.13321

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Hércules, foi filho de Zeus com uma de suas amantes, Alcmena, fato descoberto por Anfitrião que, na ocasião, decidiu queimar a própria esposa e o filho que ela carregava no ventre. Zeus, porém, interviu e impediu, o que despertou consideravelmente a ira de Hera, mulher de Zeus, já que o deus supremo havia proclamado que, o próximo filho da casa de Perseu seria corado rei em Micenas.

Hera, ao descobrir promessa, fez com que Euristeu nascesse prematuramente, antes de Hércules, portanto, desde o antes do seu nascimento Hércules foi perseguido por Hera, tendo que livrar-se de suas armadilhas, porém, já adulto, Hercules sucumbiu em um momento de ira contra Hera e acabou matando a própria esposa e seus filhos.

Arrependido, decidiu procurar o Oráculo, de quem recebeu orientação para servir ao seu irmão pelo período de 12 anos, o qual por sua vez o orientou a fazer 12 trabalhos, o que ficou conhecido como, os 12 trabalhos de Hércules.

Provavelmente, você deve tá se perguntando qual a relação entre o mito dos 12 trabalhos de Hércules e a Nova Lei de Licitação, Lei 14.133/2021? Em tese, a Lei é a antítese perfeita daquilo que foi anunciado pelo ato heroico de Hercules.

A nova lei de licitação veda a cumulação de trabalho por único servidor na cadeia de contratação, ou seja, estabeleceu aos Entes e demais previsto no art. 1º, norma principiológica no seu art. 5º, a saber, o Princípio da Segregação das Funções enquanto parâmetro normativo a ser observado, portanto, inadmite-se na Nova Lei ato heroico de designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos na formação e desenvolvimento das contratações.

Ocorre que, a ideia de segregação enquanto oposição do acumulo de funções não é basicamente uma inovação jurídico-institucional da Lei 14.133/2021, antes mesmo de sua aplicação na cadeia de contratação de bens e serviços pelos observantes obrigatórios, já havia orientações por normas secundarias e jurisprudência dos órgãos de controle, com atenção especial nos julgados do Tribunal de Contas da União.

Desde o ano de 1992 há registros de julgados em que envolvam de maneira principal ou secundária a Segregação de Funções enquanto tópico objeto do julgamento, ainda no ano em comento, pelo menos 4 julgados trataram do tema, hoje, totalizam mais de 3.271 julgados, sendo que 23 constam na base de jurisprudência selecionada, 12 julgados em boletim jurisprudencial, 5 Julgados Informativos em licitação em contratos.

Ao contrário do que se pode imaginar, não é a Nova Lei de Licitação o lugar de nascimento do Princípio da Segregação das Funções, desde antes é aplicado em face da Administração Pública, contudo, tem-se forjado paulatinamente longo das últimas 3 décadas sua aplicação em face das licitações e contratos.

Para melhor compreensão, como dito alhures, já no ano de 1992 pelo menos em 4 oportunidades o Princípio em comento foi ventilado, desde então, com uso rotineiro junto a Administração, podendo-se observar que na última década o ano em que menos foi citado em sua jurisprudência foi 2015, pelo menos 154 vezes o Princípio da Segregação das Funções foi utilizado, já 2020 foi o ano em que mais foi citado em julgamentos do TCU, pelo menos 204 oportunidades.

O gráfico 1, mostra a acomodação vertiginosa do Principio da Segregação das Funções na jurisprudência do TCU, destaque para média acima dos duzentos julgamentos a partir de 2020.

Em relação aos Ministros ainda em exercício, a utilização do Princípio da Segregação das Funções como fundamento jurídico do julgamento aparece em algumas oportunidades, cabendo menção por ordem crescente aos seguintes: Augusto Nardes, 205; Marcos Bemquerer, 209; Aroldo Cedraz, 229; Augusto Sherman, 279 e por fim, o campeão de votos com fundamento na Segregação das Funções, Benjamin Zymler, 293.

O quadro gráfico 2 abaixo é representativo da atuação dos ministros do TCU ainda em exercício.

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Em relação a aplicação principiológica no âmbito de licitação e contratação pública, enunciado 1647/2010 já definia a segregação de funções como aplicável nos casos de pregoeiro tentar cumular função de autoridade competente:

Acórdão 1647/2010-TCU-Plenário, TC-Processo 012.538/2009-1, rel. Min. Benjamin Zymler, 14.07.2010 ENUNCIADO. Pregão eletrônico: 2 – Segregação das funções - pregoeiro versus homologador do certame Ainda no que se refere ao levantamento de auditoria realizado na Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, com o objetivo de conhecer o conjunto de sistemas informatizados que compõem ou subsidiam o portal www.comprasnet.gov.br, no qual são realizados os pregões eletrônicos dos órgãos e entidades integrantes do Sistema de Serviços Gerais (Sisg), a equipe de auditoria destacou a possibilidade de atribuição simultânea, a um usuário do Comprasnet, dos perfis 'pregoeiro' e 'homologador'. Todavia, o usuário homologador "é aquele que decide os recursos não acatados pelo pregoeiro e, neste caso, o responsável pela adjudicação do objeto da licitação". Para a equipe de auditoria, portanto, não caberia o acúmulo de tais atribuições, pregoeiro e homologador, em um mesmo certame, tendo em conta as atribuições deste último agente, em face de diversos dispositivos legais. Desse modo, a equipe propôs determinação à SLTI que incluísse regra de negócio no Comprasnet que "impossibilite que, para um dado certame, um mesmo usuário atue como pregoeiro e como autoridade competente". A proposição, acolhida pelo relator em suas razões de decidir, foi aprovada pelo Plenário do Tribunal. Acórdão n.º 1647/2010-Plenário, TC-012.538/2009-1, rel. Min. Benjamin Zymler, 14.07.2010.

A evolução em relação ao tema seguiu e impôs de maneira taxativa a impossibilidade de cumulação de funções no âmbito dos processos licitatórios. Observa-se que, não há apenas uma distinção de utilização do sistema pelo pregoeiro cumulando a função de autoridade competente, mas, trata-se de uma aplicação extensível do Princípio da Segregação ao âmbito geral, inclusive, pra municípios em que membros da comissão de licitação também figuravam como chefe de compras, ou seja, era responsável pela elaboração do edital e também pelo julgamento das propostas, conforme segue julgado 686/2011:

Acórdão 686/2011-TCU-Plenário, TC-Processo 001.594/2007-6, rel. Min-Subst. André Luís de Carvalho, 23.03.2011. Na realização de processos licitatórios deve ser observada a segregação de funções não se admitindo o acúmulo de atribuições em desconformidade com tal princípio. Por intermédio de representação, foram trazidas informações ao Tribunal a respeito de possíveis irregularidades ocorridas em procedimentos licitatórios para a aquisição de medicamentos pela Secretaria Municipal de Saúde do Município de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo. Diversas condutas adotadas pelos responsáveis pelas licitações examinadas mereceram a reprovação do relator, em especial, a condição de um dos membros da Comissão de Licitação, que, ao mesmo tempo, seria Chefe do Setor de Compras do órgão. Tal situação seria inadequada, pois o referido membro, ao exercer a dupla função de elaborar os editais licitatórios e de participar do julgamento das propostas, agiria em desconformidade com o princípio de segregação de funções. Em consequência, por conta dessa circunstância, propôs o relator a expedição determinações corretivas ao Município de Cachoeiro do Itapemirim, de maneira a evitar falhas semelhantes nas futuras licitações que envolvam recursos públicos federais, em especial a inobservância da segregação de funções. Acórdão nº 686/2011-Plenário, TC-001.594/2007-6, rel. Min-Subst. André Luís de Carvalho, 23.03.2011.

Tamanho amadurecimento, inibe não apenas a participação de agentes de contratação no desempenho de funções dúplices, mas impõe restrição de participação também de contratados que devam obrigatoriamente desempenhar funções diferentes, porque não dizer conflitantes entre si, a exemplo da gestão de monitoramento ambiental e desenvolvimento de algum serviço de risco ambiental, julgado, 4204/2014 abaixo:

Acórdão 4204/2014-TCU-Segunda Câmara, TC Processo 014.783/2013-2, relatora Ministra Ana Arraes, 12.8.2014. Em observância ao princípio da segregação das funções, não se deve permitir, em certames licitatórios para a contratação de serviços de monitoramento ambiental, a participação de empresa já contratada para a execução de outros serviços que podem causar impacto no ambiente a ser monitorado. Representação oferecida por sociedade empresária questionara possíveis irregularidades em edital de concorrência lançado pela Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) para contratação de empresa visando a implantação e execução de programa de monitoramento ambiental de áreas dragadas do Porto de Santos/SP. A representante alegara que o instrumento convocatório vedou a participação no certame de empresas que estivessem executando obras de dragagem no mencionado porto, situação que não encontraria amparo legal, restringiria indevidamente a competição e ofenderia os princípios constitucionais da isonomia e da liberdade de trabalho. Alegara, ainda, que o monitoramento ambiental da dragagem não poderia ser confundido com a fiscalização da atividade de dragagem e que o art. 54 da atual Lei dos Portos (Lei 12.815/13) permitiria a execução da dragagem e a realização do monitoramento ambiental pela mesma empresa. A relatora, ao examinar o caso, afirmou que o objetivo primordial da licitação em questão "é a implantação de monitoramentos que forneçam subsídios para gerenciamento ambiental e estabelecimento de orientações e procedimentos que promovam minimização dos possíveis impactos ambientais decorrentes das atividades de dragagem". Aduziu que, embora não se possa "confundir o monitoramento ambiental com a atividade específica de fiscalização das obras de dragagem, é necessário observar que a contratação abrangerá atividades de natureza essencialmente fiscalizatória, voltadas, por óbvio, a aspectos ambientais". Assim, em sintonia com a posição defendida pela unidade técnica, sustentou que não há irregularidade na vedação imposta pela Codesp, pois a disposição do edital "origina-se no princípio da segregação de funções e destina-se a evitar possíveis distorções tanto no cumprimento das atividades de monitoramento ambiental quanto nas de dragagem". Para alicerçar o seu posicionamento, a condutora do processo lançou mão de disposições contidas no termo de referência do certame e apontou que elas "evidenciam o risco de conflito de interesses entre o responsável pelo controle ambiental e o executor da dragagem, com consequente prejuízo às atividades contratadas pela Codesp". Desse modo, concluiu que a vedação à participação no certame de empresa já contratada para execução de obras de dragagem apresenta-se não apenas legítima, mas necessária para salvaguardar a independência dos responsáveis pelas ações de monitoramento ambiental. Por fim, transcrevendo o art. 54 da Lei dos Portos, asseverou que, ao contrário do alegado pela representante, o mencionado dispositivo não autoriza a contratação de uma mesma empresa para execução de serviços de dragagem e de monitoramento ambiental. Do que expôs a relatoria, a Segunda Câmara, dentre outras deliberações, conheceu da Representação e, no mérito, considerou-a improcedente, indeferindo pedido para adoção de medida cautelar. Acórdão 4204/2014-Segunda Câmara, TC 014.783/2013-2, relatora Ministra Ana Arraes, 12.8.2014.

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Na tônica da Segregação de função impõe-se enquanto ônus ao exercício de boas práticas administrativas que, as funções de fiscalização e supervisão também são exercidas por profissionais distintos, é o enunciado 2296/2014:

Acórdão 2296/2014-TCU-Plenário, TC Processo 001.359/2009-2, relator Ministro Benjamin Zymler, 3.9.2014. As boas práticas administrativas impõem que as atividades de fiscalização e de supervisão de contrato devem ser realizadas por agentes administrativos distintos (princípio da segregação das funções o que favorece o controle e a segurança do procedimento de liquidação de despesa. Pedidos de Reexame interpostos por gestores da Superintendência Regional do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes no Estado do Paraná (Dnit/MT) requereram a reforma de deliberação do TCU pela qual os responsáveis foram condenados ao pagamento de multa em razão, dentre outras irregularidades, da "emissão fraudulenta dos Boletins de Desempenho Parciais, a partir da inclusão de dados falsos no Sistema de Acompanhamento de Contratos (SIAC)". Ao analisar o ponto, o relator, reiterando o exame realizado pelo relator a quo, consignou que houve "irregularidades nos procedimentos de aprovação das medições, no tocante à identificação dos verdadeiros responsáveis pela fiscalização dos contratos e à segregação de funções no que tange a essa atividade". Destacou que a fiscalização empreendida pelo Dnit nos contratos envolvidos "não cumpriu os normativos internos do próprio órgão nem as portarias de designação de fiscalização". Nesse sentido, ressaltou o relator que quem atestou a execução dos serviços não foi o fiscal designado pelo órgão, mas o Chefe do Serviço de Engenharia, "que, além de não comparecer a campo para verificar a real execução das obras, deixou de exercer o trabalho de supervisão do fiscal, conforme impõe o Regimento Interno e o princípio da segregação de funções". Em relação a alegação dos recorrentes de que "a superintendência do DNIT participou apenas da fase de liquidação, sendo as demais fases da despesa (empenho e pagamento) realizadas por outras áreas", ressaltou o relator que a segregação das etapas de liquidação e pagamento "não elimina a necessidade, inclusive por imposição regimental, de separação das atividades de fiscalização e atesto dos serviços realizados e, em seguida, de supervisão dos trabalhos anteriores". Por fim, concluiu pela improcedência das alegações recursais quanto ao ponto, consignando que "as boas práticas administrativas, impõem que as atividades de fiscalização, descritas na Norma Dnit 097/2007 - PRO, e de supervisão, conforme o Regimento Interno do Dnit, devem necessariamente ser realizadas por agentes administrativos distintos, o que favorece o controle e, portanto, a segurança do procedimento de liquidação de despesa". Seguindo o voto da relatoria, o Plenário do Tribunal manteve a sanção imposta aos recorrentes. Acórdão 2296/2014-Plenário, TC 001.359/2009-2, relator Ministro Benjamin Zymler, 3.9.2014.

Por fim e não menos importante, julgado do ano de 2022, Acórdão 2146/2022-TCU-Plenário, Representação, Relator Ministro Aroldo Cedraz, a atribuição, ao pregoeiro, da responsabilidade pela elaboração do edital cumulativamente às tarefas de sua estrita competência afronta o princípio da segregação das funções e não encontra respaldo no art. 3º, inciso IV, da Lei 10.520/2002 nem no art. 17 do Decreto 10.024/2019.

Portanto, parece não existir nada de novo na utilização do Principio da Segregação em relação a Administração Pública, contudo, observa-se vertiginoso crescimento do fundamento, inclusive no ambiente da cadeia de contratação em processos licitatórios, ainda na vigência da Lei 8.666/93. Ainda assim, aprouve ao legislador incutir no texto da Nova Lei de Licitação - 14.133/2021 o rol de princípios a serem observados pelos agentes de contratação, dentre eles, ganha contorno de norma principiológica expressa a Segregação das Função. A está, cabe a dura tarefa de impor limite ao heroísmo ilegal de agentes na cadeia de contratação. Não, a Nova Lei de Licitação não admite o mito de Hercules, ou seja, veda mais de um trabalho ou função por agente, imagina 12.

REFERÊNCIAS

PLANALTO. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14133.htm. Acesso em: 05 dez. de 2023.

TCU. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/pesquisa/jurisprudencia. Acesso em: 05 dez. de 2023.

Sobre os autores
Ivandro Menezes

É Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (PPGCS/UFCG). Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba (PPGCI/UFPB). Especialista em Direito Constitucional pelo Centro Universitário de João Pessoa - Unipê. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Carlos Henrique Alves Limeira

Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande (PPGCP/UFCG). Professor da Faculdade Pio Décimo de Canindé do São Francisco (FAPIDE). Procurador do Município de Santa Brígida. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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