Visões contrastantes da Constituição Brasileira de 1988: entre utopias, distopias e retrotopias.

18/12/2023 às 02:06
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VISÕES CONTRASTANTES DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988: ENTRE UTOPIAS, DISTOPIAS E RETROTOPIAS.

RESUMO – A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, marcada por sua abrangência progressista e garantia de direitos fundamentais, é alvo de múltiplas interpretações que refletem expectativas utópicas, temores distópicos e anseios por um retorno idealizado ao passado. O presente artigo explora a percepção multifacetada da Constituição de 1988, investigando as visões utópicas que a enaltecem como um marco de conquistas sociais e direitos individuais, bem como as perspectivas distópicas que a consideram como fonte de instabilidade política e social, temendo a fragilidade institucional e crises constantes. Ademais, analisa-se o fenômeno das retrotopias, que idealizam um retorno a estruturas e valores fincados no passado, buscando uma suposta estabilidade perdida. Essas perspectivas muitas vezes propõem revisões constitucionais sob a alegação de restaurar supostas "glórias" do passado, confrontando os avanços e princípios contemporâneos consagrados na Constituição de 1988. O estudo revela como as diferentes visões da Constituição brasileira refletem não apenas debates políticos e jurídicos, mas também aspirações sociais, ideológicas e históricas. Compreender essas perspectivas contrastantes é fundamental para a reflexão sobre os rumos do Estado de Direito no Brasil e para o fortalecimento de um sistema constitucional que responda aos desafios do presente sem perder de vista os ideais democráticos e os direitos fundamentais consagrados na Carta Magna de 1988.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição Federal de 1988. Utopia. Distopia. Retrotopia.

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 tem sido um divisor de águas na história política, social e jurídica do país, construindo um espectro abrangente de interpretações que partem da exaltação de suas conquistas progressistas chegando ao temor de seus supostos riscos e desafios. Nesse encadeamento, emerge um panorama complexo de visões que pendulam entre a esperança utópica, o receio distópico e a nostalgia retrotopiana.

O presente estudo apresenta uma análise aprofundada das perspectivas contrastantes que envolvem a Constituição de 1988, buscando desvendar os diversos prismas através dos quais ela é percebida e interpretada pela sociedade brasileira. Ao explorar essas visões, busca-se não somente compreender as dinâmicas políticas, sociais e jurídicas que moldam essas concepções, bem como contextualizá-las dentro do panorama histórico e cultural do Brasil pós-ditadura militar.

Este estudo crítico das utopias, distopias e retrotopias relacionadas à Constituição de 1988 proporcionará uma compreensão mais dilatada das expectativas, receios e aspirações que permeiam o debate público e as esferas acadêmicas e políticas do país. Através dessa investigação, pretende-se contribuir para um entendimento mais refinado e específico das complexidades que envolvem a interpretação e aplicação da Constituição, vislumbrando caminhos para robustecer os valores da democracia e a realização dos direitos consagrados na Carta Magna brasileira.

2 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

Promulgada em 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil, é a lei fundamental do país (o topo da pirâmide hierárquica de Hans Kelsen) e representa um marco na história brasileira por motivos diversos. Consagrada como "Constituição Cidadã", foi concebida após um tortuoso período de ditadura militar, que se estendeu desde 1964 até o ano de 1985, e marcou a transição para que os ventos da democracia voltassem a soprar no Brasil.

Além disso, pode-se afirmar que muitos são os anseios que consubstanciam a Carta Magna brasileira: desde aspirações cimentadas no capitalismo, como o direito de propriedade, até pretensões socialistas que incorporam ao conceito de propriedade privada a ideia de que, para cumprir sua função constitucional, a propriedade terá irremediavelmente de atender a uma função social.

Enfim, pendulam na Constituição ideais veementemente contraditórios que podem engendrar múltiplas perspectivas quanto à sua compreensão, bem como sua interpretação.

3 UTOPIAS

Conforme Bronislaw Baczko1, utopia seria a representação imaginada de uma sociedade que se opõe à existente, seja pela organização outra da sociedade tomada como um todo; seja pela alteridade das instituições e das relações que compõem a sociedade como um todo; seja pelos modos outros segundos os quais o cotidiano é vívido. Em suma, a melhora de uma sociedade a partir da pretensão de uma realidade com a obliteração dos seus aspectos negativos e desdobramentos de aditamentos positivos.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, apresenta elementos que refletem uma busca por uma sociedade mais justa e igualitária, incorporando certos aspectos utópicos. Conquanto não se trate exatamente de utopias, a Constituição de 1988 delineia uma série de princípios e diretrizes que idealizam um país mais inclusivo, democrático e em concordância com ideais suscitados e enraizados nos direitos humanos.

Pode-se dizer que a atual Lei Maior do Brasil garante uma extensa lista de direitos fundamentais, como a igualdade entre homens e mulheres, a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, a liberdade de consciência e de crença, a inviolabilidade de domicílio, a igualdade perante a lei, o acesso à informação, entre outros. Esses direitos buscam criar uma sociedade mais justa e igualitária, aspecto de modo habitual e frequente associado às utopias.

A Constituição também traz, também, preocupações ambientais, estabelecendo a preservação do meio ambiente como um dever do Estado e de todos os cidadãos. Essa abordagem reflete uma visão utópica de uma sociedade em harmonia com a natureza; ela também promove a participação popular, estabelecendo instrumentos como plebiscito, referendo e iniciativa popular para permitir a atuação direta dos cidadãos na tomada de decisões políticas. Esse modelo de democracia participativa se assemelha a ideais utópicos de uma sociedade onde todos têm voz e participação ativa na governança vigente.

Ainda que não sejam utopias no sentido estrito, os princípios e diretrizes (supracitados) consolidados na Constituição de 1988 refletem ideais de uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva, alinhados a aspirações utópicas de um mundo definitivamente melhor. Todavia, a efetivação plena dessas convicções muitas vezes enfrenta desafios e requer esforços contínuos por parte da sociedade e do Estado para serem materializados.

4 DISTOPIAS

De acordo com Segundo Rabkin (1983)2, do conceito de distopia subtendem-se os medos e as esperanças universais e o complexo de emoções que mobilizam e impactam o indivíduo, provocando-o a refletir sobre o futuro.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, apesar de ser um documento que expressa princípios democráticos e garantias fundamentais, não prediz diretamente distopias, entretanto algumas de suas lacunas e desafios podem ser interpretados como potenciais fundamentos para contextos distópicos.

Independentemente dos princípios de igualdade e justiça social, o Brasil ainda encara profundas desigualdades econômicas e sociais. A desigualdade de renda, acesso à educação de qualidade, saúde e moradia continuam sendo um desafio, o que poderia ser considerado um elemento distópico dentro de uma sociedade que busca a equidade.

A Carta Magna brasileira estabelece, também, princípios para a garantia da segurança pública e do bem-estar dos cidadãos. Porém, a persistência da violência urbana, a falta de efetividade no combate ao crime organizado e a sensação de insegurança em diversas regiões do país podem ser vistos como um potencial cenário distópico.

Seguindo o encadeamento de ideias, embora preveja mecanismos de controle e punição para atos (ação ou omissão) de corrupção, a realidade é que a corrupção política e administrativa persevera na sociedade brasileira. A sensação de impunidade para certos grupos políticos ou econômicos, além da fragilidade de algumas instituições de controle, podem ser interpretadas como elementos que contribuem para um horizonte plenamente distópico.

Pode-se afirmar também que, apesar de ser um documento robusto, a efetividade das instituições democráticas previstas na Constituição pode ser desafiada por crises políticas, polarização e fragilidade nas estruturas de governança, abrindo espaço para cenários distópicos de instabilidade institucional.

Em síntese, ainda que a Constituição de 1988 seja um marco importante na garantia de direitos e na consolidação da democracia no Brasil, suas lacunas, falhas na implementação e desafios persistentes podem ser interpretados como potenciais elementos que contribuem para quadros reais de distopias, representando desafios a serem enfrentados objetivando alcançar uma sociedade mais justa e equitativa.

4 RETROTOPIAS

Zygmunt Bauban3, na sua obra Retrotopia, entende o título-vocábulo como algo do passado que poderia ser aplicado no presente a fim de resolver algum problema existente. A título de exemplo: trazer de volta a Ditadura Militar intencionando solucionar os problemas acarretados pela insegurança pública, como também pela corrupção política.

Pode-se dizer também que retrotopias são conceitos que remetem a ideias ou propostas que buscam restaurar ou retornar a um estado anterior, muitas vezes idealizado, em oposição ao progresso ou à mudança. Há elementos, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que podem ser interpretados como tentativas de resgate ou preservação de características antecedentes.

A Carta Magna de 1988 reforça e amplia diversas garantias sociais e direitos trabalhistas que, em certa medida, são interpretados como um resgate de conquistas sociais do passado. Elementos como a valorização do trabalho, a proteção do salário mínimo, a garantia de férias remuneradas e a previdência social têm raízes em conquistas históricas do movimento trabalhista no Brasil. Na linha de raciocínio que se segue, constata-se, também, que a Constituição de 1988 estabelece diretrizes para a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais. Essa preocupação pode ser interpretada como um esforço para resgatar valores e práticas mais próximas da relação harmoniosa com a natureza, algo presente em culturas e modos de vida anteriores à industrialização. Outro exemplo apregoa que a Constituição de 19884 estabelece diretrizes para a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais. Essa preocupação pode ser interpretada como um esforço para resgatar valores e práticas mais próximas da relação harmoniosa com a natureza, algo presente em culturas e modos de vida anteriores à industrialização.

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Em resumo, a Constituição de 1988, ao estabelecer garantias e direitos fundamentais, reflete um movimento que, em alguns aspectos, busca resgatar ou preservar valores, conquistas sociais e práticas que remetem a um passado idealizado, adaptando-os à realidade contemporânea. Esses elementos podem ser considerados como tentativas de retrotopias, ao buscarem resgatar aspectos positivos de momentos anteriores da história brasileira.

CONCLUSÃO

A análise das visões contrastantes em torno da Constituição Brasileira de 1988 denota não apenas a complexidade intrínseca a esse documento fundador, mas também as múltiplas camadas de expectativas, receios e anseios que permeiam a sociedade brasileira. As utopias, distopias e retrotopias que se entrelaçam na interpretação dessa Lei Maior refletem não somente debates políticos e jurídicos, como também revelam anseios sociais, culturais e históricos que moldam a percepção coletiva.

A utopia associada à Constituição de 1988 ressoa como um ideal a ser constantemente buscado, um horizonte de justiça social, garantia de direitos e consolidação da democracia. Por outro lado, as distopias evidenciam os desafios enfrentados, como a fragilidade institucional, a corrupção e as crises recorrentes, suscitando preocupações legítimas sobre a estabilidade do Estado de Direito.

A emergência das retrotopias, por sua vez, sinaliza um movimento de resgate de valores supostamente perdidos, apontando para um anseio por uma estabilidade idealizada, muitas vezes desconsiderando as transformações sociais e políticas ocorridas desde a promulgação da Constituição.

Nesse enredo, a compreensão e conciliação dessas perspectivas distintas tornam-se basilares para a pavimentação de um caminho que propicie a efetivação dos princípios democráticos e dos direitos consagrados na Constituição de 1988. É imperativo que os debates sobre eventuais reformas constitucionais ou interpretações divergentes se pautem no respeito aos valores fundamentais, na busca pela justiça social e na consolidação de instituições sólidas que assegurem, de forma cimentada e concreta, a cidadania e a democracia.

Para dizer o essencial, a Constituição de 1988 permanece como um espelho das esperanças, temores e aspirações da sociedade brasileira. Sua interpretação plural reverbera não apenas os desafios da modernidade, como também aponta para os rumos que podem orientar a construção de um futuro mais justo, inclusivo e democrático para todos os brasileiros.

REFERÊNCIAS

BACZKO, Branislaw. 1978. Lumières de lutopie. Paris: Payot.

BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016].

RABIKIN, E. S. No place else: explorations of utopian and dystopian fiction alternatives. Southern Illinois University Press, 1983.


  1. BACZKO, Branislaw. 1978. Lumières de lutopie. Paris: Payot.

  2. RABIKIN, E. S. No place else: explorations of utopian and dystopian fiction alternatives. Southern Illinois University Press, 1983.

  3. BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

  4. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016].

Sobre o autor
Antonio Claudio Goes de Sousa

Bacharel em Direito com especialização em Direito Penal e Processo Penal, bem como em História Militar, Direitos Humanos e Sociais e Linguagens.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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