Busco com a publicação desse escrito, e aqui falo na primeira pessoa, debater a problemática da industrialização da prestação jurisdicional a partir da experiência na advocacia, onde é possível experimentar essa questão de perto.
O ponto que aqui se debate certamente é vivenciado pela esmagadora parcela da advocacia nacional. Alguns intitulam-se como advogados especialistas em tribunais superiores e imagino que não devam vivenciar dessa agonia, atuando em processos pontuais e muito específicos.
Ao revés, a minha militância, como dizem, se dá nos tribunais e juízos “inferiores” espelhando a atuação cotidiana de um legítimo advogado de “piso”.
Observações a parte, aqui não será debatida doutrina ou jurisprudência, mas sim experiências profissionais.
Do mesmo modo, não se está a criticar julgadores. O que se busca é a reflexão de como se encontra a situação do jurisdicionado e da advocacia frente ao modo de trabalhar do Poder Judiciário.
A determinação do cumprimento de metas e a sua fiscalização transforma um trabalho extremamente delicado e particular em um ofício estatístico.
O processo que antes se referia a vida de uma pessoa, sempre com suas peculiaridades trasmudou-se em apenas um número, que deve ser julgado com celeridade e amoldar-se a decisões vinculantes, que na maioria das vezes não leva em conta uma questão diferente constante dos autos.
Repito, cada processo hospeda um caso concreto, sempre composto de ao menos uma particularidade inconfundível, contendo ali a vida de uma pessoa, de uma família.
Optou-se por sacrificar o direito, a vida de um indivíduo em prol da produtividade, do atingimento de metas e da conquista de selos. Um cara crachá que despreza a importância de julgar o bem da vida de alguém. Todo processo possui uma característica única.
Diversas vezes quando dos despachos com os magistrados, em que pese ser importante destacar àqueles que realmente se importam com o caso concreto, a maioria escuta, diz entender, mas no momento em que profere sentença ou voto se esquece daquela nuance, enquadrando o caso na vala comum, forçando a incidência de uma tese vinculante, digamos parecida, jamais idêntica, fato que acaba por fulminar o direito da parte podendo causar irremediáveis danos, tudo pela almejada celeridade.
Nem a lei, por mais completa e ampla que seja, é capaz de prever todas as situações possíveis amparadas pelos seus dizeres, quem dirá um precedente ou tese judicial, sendo algo temerário condenar juízes e desembargadores que se esforçam para, da maneira mais justa possível, estabelecer nuances e diferenças entre os casos, deixando de aplicar determinado precedente ou demorando um pouco mais na prolação de sua decisão.
Não se está aqui a defender o desrespeito ao sistema de precedentes imposto pelo CPC/15, mas sim atentando para o fato de que a industrialização da prestação jurisdicional, com a imposição de metas e de uma prejudicial e exacerbada fiscalização, atrapalha o espírito da magistratura em se debruçar nos casos, privilegiando o cumprimento de diretrizes estatísticas, algo diametralmente oposto a uma justa prestação jurisdicional.
O ofício de julgar não permite intervenções externas, sendo necessário que o magistrado detenha-se ao caso como se seu fosse, com diligência e cuidado, ao passo que a sua decisão terá efeitos diretos na vida das partes, não devendo enxergar o processo apenas como um número que precisa brevemente deixar o gabinete.
Desse modo é possível se notar, e digo isso sem expor qualquer tribunal ou juízo, apenas repassando o que vejo na prática, que a imersão do magistrado no caso concreto se revela cada dia mais superficial, em razão da possibilidade de enquadrar o julgamento em um precedente assemelhado, mas que desconsidera importantes questões em prol da celeridade.
Além disso, em grau elevado, as divergências e os debates colegiados se fazem cada vez mais raros.
Na última sessão em que estive presente, em mais de uma oportunidade presenciei advogados da tribuna praticamente suplicarem por um pedido de vista dos vogais, em razão de existirem pontos absolutamente distintos e relevantes nos autos, sequer analisados.
Assim, há uma resistência cada vez maior ao debate e a mudança de posicionamento, ao pedido de vista que é um fator que a lei franqueia ao julgador para que possa se deter melhor aos autos, inclusive ao próprio relator, tudo em razão da celeridade das sessões de julgamento, bem como o cumprimento das metas estipuladas aos tribunais.
No Superior Tribunal de Justiça, raros são os casos em que um recurso é julgado no ambiente presencial, no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios é direito do advogado, garantido regimentalmente, o pedido de retirada de pauta virtual para colocação em pauta presencial, visando a oportunidade de realizar a sustentação oral ou levantar uma questão de ordem.
Em que pese essa possibilidade, os debates são cada vez mais raros, presidentes de turmas indagam, após a sustentação oral do advogado, se os componentes do quórum mantêm seus votos afim de proclamar rapidamente o resultado, sem sequer permitir as razões do voto do relator, o que denota flagrante ilegalidade.
Nega-se provimento aos recursos sem ao menos expor as razões, fato que tolhe por completo toda e qualquer, justa e necessária intervenção do patrono.
Desse modo, a prática que vem sendo adotada se amolda aos julgamentos virtuais, tornando-se inócua qualquer intenção de destaque e realização de sustentação oral.
Não se leva mais em consideração a posição dos advogados que conhecem profundamente os autos, abrindo mão o julgador de analisar com mais profundidade o processo pois para isso teria de levá-los ao gabinete, refletindo em mais trabalho além de atrapalhar o trabalho da engrenagem judicante industrial.
Porém, importante se faz uma observação. A carga de trabalho atual perante os tribunais pátrios dificulta que os magistrados conheçam de todos os processos, a fundo, em que vão votar.
A situação revela-se crítica, e confesso não vislumbrar uma solução a curto prazo para a questão.
O incentivo a autocomposição, as soluções extrajudiciais de soluções de conflitos, a arbitragem, a mediação, a conciliação, nem com tudo isso foi possível se diminuir o número assombroso de demandas ativas.
Outrossim, o desestímulo ao ato de recorrer com multas e jurisprudência defensiva – digo ofensiva, também não foi capaz de reduzir a carga recursal, sendo inerente, cultural, o ato de litigar e recorrer por mais baixas que sejam as chances de sucesso, até mesmo, algumas vezes, sem que haja fundamento para isso. São fatores que ajudam a incrementar os obstáculos aqui discutidos.
A meu ver, outro grande fator que corrobora o ora alegado, absolutamente negativo, foi a extinção da figura do revisor no processo civil brasileiro.
Atualmente, o quórum é composto por um relator e seus vogais que, caso assim desejem, sequer são obrigados ou possuem qualquer espécie de fiscalização de que de fato analisarão os autos, basta dizer em sessão as palavras mais ouvidas por qualquer advogado nos dias de hoje: “com o relator”.
É como se ocorresse o julgamento unipessoal no próprio colegiado
Os dois lados da moeda possuem as suas justificativas, longe de mim ter qualquer legitimidade para imputar culpa ao Poder Judiciário em razão do que vem acontecendo nas sessões de julgamento, apenas uma reflexão para a classe dos advogados, que se vê cada dia mais desprestigiada, devendo a Ordem dos Advogados do Brasil se manifestar ante tudo o que vem se reportando acerca do assunto.