Sumário: Introdução. 1. Dos erros do passado aos erros do presente. 2. Do homem cordial aos amigos do Coronel. 3. Novos Tempos e Nossa Revolução, seria o fim do “coronelismo” no Brasil ou a substituição dos personagens do Poder? Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
Resumo: O presente artigo introduz uma reflexão sobre as obras clássicas de Sérgio Buarque de Holanda e de Victor Nunes Leal, elaboradas na primeira metade do século XX, como um presságio do contemporâneo sistema político brasileiro, no que se refere, em linhas gerais, aos aspectos patriarcas, personalistas e frágil operosidade ideológica, típicos dos “coronéis”, apontando para um processo cíclico de dependência política e de divisão dos fundos financiadores através de lideranças partidárias regionais, estaduais e nacionais, em detrimento de um sistema fundado na meritocracia, nos bons projetos de políticas públicas e na consecução do interesse público. Desenvolve a premissa que o voto, instrumento do exercício da cidadania e garantidor substancial do princípio democrático, deva estar acompanhado das boas práticas institucionais previstas na adequada hermenêutica das normas presentes na lei das eleições, assim como nas normas constitucionais sobre o tema. Provoca-se o debate sobre o modelo de sociedade que estamos construindo, do sistema político contemporâneo e sobre as consequências deletérias de nossas escolhas através das lentes dos autores por suas obras clássicas. Com o aprendizado sobre as origens do Brasil, da sociedade e da política brasileira descritas contribui-se para a compreensão das incorreções do pretérito, das mazelas do presente, assim como das oportunidades para o êxito, em um futuro próximo, no compromisso fraterno para com o Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Colonização. Coronel. Sociedade. Política brasileira.
Abstract: This article introduces reflection on how the classic works of Sérgio Buarque de Holanda and Victor Nunes Leal developed in the first half of the 20th century, as an omen of the contemporary Brazilian political system, with regard, in general terms, to the patriarchal, personalistic and fragile ideological aspects typical of the “coronéis”, pointing to a cyclical process of political dependence and division of financing funds through of regional, state and national party leaders, to the detriment of a system based on meritocracy, on good public policy projects and on achieving the public interest. It develops the premise that voting, an instrument for exercising citizenship and a substantial guarantor of the democratic principle, must be accompanied by good institutional practices provided for in the proper hermeneutics of the norms present in the election law, as well as in the constitutional norms on the subject. The debate is provoked on the model of society we are building, on the contemporary political system and on the deleterious consequences of our choices through the lens of the authors and their classic works. With the learning about the origins of Brazil, society and Brazilian politics described, it contributes to the understanding of the mistakes of the past, the ills of the present, as well as the opportunities for success, in the near future, in the fraternal commitment to with the democratic rule of law.
Key words: Colonization. Colonel. Society. Brazilian politics.
INTRODUÇÃO
Sérgio Buarque de Holanda2 trata em sua obra clássica, construída na década de 30, da formação social, política e econômica nacional a partir do retrato segmentado do processo de colonização em longo caminho até o cotidiano da sociedade da primeira metade do século XX, através de uma visão convergente dos diversos aspectos históricos. Nesse cenário, o leitor é desafiado a entender a sociedade a partir de um pensamento multifacetado da colonização e da estruturação social com grandes desafios estruturais originados da forma negligente e imperita, em diversos aspectos relatados nas obras, de se realizar o processo de cultivo da terra e de gestão das atividades urbanísticas estruturantes. Esta provocação intelectual torna-se mais desafiadora quando aplicamos à realidade da sociedade contemporânea, em tempos de virtualidade e de embates ideológicos sobre o sistema político brasileiro e sobre as opções que se apresentam. Seríamos herdeiros das mazelas de nossos descobridores?
Nesse contexto, Victor Nunes Leal3 reforça que o pilar da economia da primeira metade do século XX eram os Coronéis, donos dos latifúndios, que exercitavam suas atividades diversas com grande autonomia e prestígio, constituindo-se um importante agente na construção das bases eleitorais de toda uma estrutura de poder através de um sistema de barganha entre o poder público e o poder privado, utilizando-se do prestígio como um instrumento de manipulação de uma sociedade fragilizada pela miséria e pela desinformação. Trata-se de tempos antigos que retratam uma realidade atual, mesmo em uma época em que os instrumentos tecnológicos introduziram o amplo acesso à informação, produzindo um conteúdo diário, impossível para o rádio da época, contudo, informação não é, necessariamente, conhecimento e este não é, necessariamente, educação, dessa forma, os coronéis “mudaram de profissão”, os instrumentos da miséria e da desinformação foram alterados, do cavalo ao caminhão, dos rádios à televisão, da televisão ao ambiente digital onde continuam os senhores da notícia, mas agora com a concorrência do cidadão protagonista.
Nesse contexto, construiu-se um sistema elitista partidário que, em grande medida, atua como tradicional agente interno do sistema eleitoral brasileiro, contribuindo para a manutenção do paradigma historicamente desigual, muito similar aos “tempos do rádio”, influenciado por interesses majoritários em detrimento dos grupos minoritários, não por serem numericamente superiores, muito pelo contrário, os “minoritários” são uma multidão de cidadãos, aqueles sem influência no sistema de interesses consolidados nas mais diversas áreas e de enorme força silenciosa, contudo, enfrentando uma ensurdecedora indiferença da elite distante dos valores representativos ou fraternos presentes nas normas fundamentais da Carta Republicana de 1988 e, em alguma medida, já permeados nas Constituições de 1934 e de 1946 contemporâneas às obras.
No consolidado sistema de representatividade atual, no significativo gerúndio de obstrução das fontes reais de poder, realiza-se a reflexão, a partir das obras clássicas de Raízes do Brasil e do Coronelismo, Enxada e Voto, sobre o retrato do sistema político-partidário dos tempos “modernos”, estabelecendo-se a nada virtuosa conexão entre o processo de formação da nação brasileira, desde a origem da sociedade patriarcal, personalista e latifundiária relatada pelos autores, até o sistema eleitoral atual e das práticas utilizadas pelos partidos políticos no compartilhamento do poder, das verbas e da busca de votos, amparadas na miséria ou na manipulação da informação, mesmo em tempos de normativo avançado, liderado por nossa Constituição de grandes qualidades.
1. DOS ERROS DO PASSADO AOS ERROS DO PRESENTE
A “Lei das Eleições”4 e a “Lei dos Partidos Políticos”5 representam o núcleo normativo do sistema político eleitoral, encorados nas normas constitucionais que tratam do tema e, dessa forma, este arcabouço legislativo está fundado nos princípios norteadores da Administração Pública, tratam-se da impessoalidade, eficiência, moralidade, publicidade e legalidade, além dos demais princípios expressos ou implícitos que norteiam as ações dos agentes na missão da consecução do interesse público, contudo, a obra Raízes do Brasil apresenta o mecanismo aristocrático se manifestando em uma pseudodemocracia, reproduzindo heranças advindas dos tempos da colonização, cita-se, ao autêntico rigor do português da época, o relato do autor:
“Tôda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios. E a verdade é que, bem antes de triunfarem no mundo as chamadas idéias revolucionárias, portugueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade específica, a injustiça social de certos privilégios hereditários. O prestígio pessoal, independentemente do nome herdado, manteve-se continuamente nas épocas mais gloriosas da história das nações ibéricas.” 6
Os partidos políticos constituem-se mediadores entre a política e o povo, elaborando e traduzindo as ideologias rumo à prosperidade coletiva. Da utopia à realidade, na Grécia e na Roma antiga, grupos de pessoas se reuniam para compartilhar ideias, de certo seria o início dos grupos politicamente organizados em ideologias, origem dos agentes mediadores atuais, os partidos políticos. Na Inglaterra, terra da “Magna Carta” e da revolução gloriosa, assim como de grandes pensadores como Bacon, Locke e Spencer, nasce os partidos de Wrig, liberais e Tory, conservadores, no advento da revolução inglesa do século XVII. Nos Estados Unidos os Federalistas e os Republicanos em época pós-independência, na França jacobinos e girondinos e no Brasil Império, o Partido Liberal e o Partido Conservador.7Já sobre a origem da execrável, resistente e muito presente corrupção no sistema político, provavelmente, não há relatos... ou seria de quando o homem concordou sobre um tema ou sobre uma finalidade de cunho coletivo e organizacional?
Trata-se de uma instituição com personalidade jurídica de direito privado, conforme a lei n. 6015/73 - a “Lei dos Registros Públicos” - constituído junto ao Registro Civil de Pessoas Jurídicas, adquirindo personalidade jurídica e formalizando-se através do registro de seu estatuto perante o TSE.8 No entanto, as implicações que envolvem o cotidiano atual reafirmam a profunda herança da pessoalidade em detrimento da eficiência, assim como da ligação visceral do interesse pessoal como elemento de obstrução à consecução de políticas públicas de interesse coletivo. Gilmar Ferreira Mendes indica que os partidos políticos são agentes essenciais para a formação da vontade política no que concerne ao processo eleitoral.9
Nesse contexto, Celso Ribeiro Bastos disserta que partido político seria uma “organização de pessoas reunidas em torno de um mesmo programa político com a finalidade de assumir o poder e de mantê-lo ou, ao menos, de influenciar na gestão da coisa pública através de críticas e oposição”.10 A Constituição da República trata exclusivamente dos partidos políticos no seu art.17, inaugurando o capítulo V – “DOS PARTIDOS POLÍTICOS”:
“Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:”11
Nos dias atuais existem o inverossímil número de 31 partidos políticos no Brasil, segundo o TSE.12 Estes possuem dois fundos financiadores, o Fundo Eleitoral e o Fundo Partidário, o que justifica e traduz o entendimento do injustificável excesso de partidos políticos, levantando-se a reflexão sobre a impossibilidade de haver tantas ideologias políticas que alicercem tão elevado número de partidos.
Vitor Nunes Leal em sua obra clássica “Coronelismo, Enxada e Voto” já apresentava as notórias suspeitas populares sobre a motivação para tão elevado número de agremiações políticas, substancializadas na luta por verba distribuída pelo Estado, provedor dos “dinheiros” advindos dos tributos pagos pela “plebe”. Os exemplos são conhecidos, cita-se as emendas do relator, veículo de “bilhões” distribuídos à parlamentares e seus projetos discricionários viabilizados pelos ministérios. Quais seriam os critérios aplicados para a escolha dos beneficiários? Enquanto isso, em outro Poder, o Judiciário mantém-se, muitas vezes, “sentado” em pilhas de processos sobre autoridades, em sua última ou única instancia de súplicas. Reflete-se os tempos retratados pelo autor:
“Por isso mesmo, o “coronelismo” é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras...Outras vezes, o chefe municipal, depois de haver construído, herdado ou consolidado a liderança, já se tornou um absenteísta. Só volta ao feudo político de tempos em tempo, para descansar, visitar pessoas da família ou, mais frequentemente, para fins partidários. A fortuna política já o terá levado para uma deputação estadual ou federal, uma pasta de secretário, uma posição administrativa de relevo, ou mesmo em emprego rendoso na capital do Estado ou da República.”13
Tem-se como certo que o ser humano não nasce sabendo sobre qualquer coisa, a não ser o que o seu código genético lhe indique como caminho ou seu instinto lhe aponte como rumo para sobrevivência, nesse sentido, o cidadão deve aprender o significado de representatividade como de tantas outras coisas extraordinárias. Este processo de aprendizagem exige a participação de múltiplos agentes e a implementação de políticas públicas.
Nessa ordem, percebe-se que o caótico sistema político brasileiro, tem origem certa e precocemente descrita nas obras estudadas, desde a disparidade entre as opções espanholas do ladrilhador até as ações portuguesas dos aventureiros durante o processo de colonização da vasta área das américas, na organização urbanística, na produção de estruturas educacionais, no gerenciamento de crises institucionalizadas e nos modelos integradores adotados, cita-se:
“O afã de fazer das novas terras mais do que simples feitorias comerciais levou os castelhanos, algumas vezes, a começar pela cúpula a construção do edifício colonial. Já em 1538, cria-se a Universidade de São Domingos, A de São Marcos, em Lima, com os privilégios, isenções e limitações da de Salamanca, é fundada por cédula real de 1551, vinte anos apenas depois de iniciada a conquista do Peru por Francisco Pizarro. Também em 1551 é a cidade do México, que em 1553 inaugura seus cursos. Outros institutos de ensino superior nascem ainda no século XVI e nos dois seguintes, de modo que, ao encerrar-se o período colonial, tinham sido instaladas nas diversas possessões de Castela nada menos de que vinte e três universidades, seis das quais de primeira categoria (sem incluir México e Lima). Por esses estabelecimentos passara, ainda durante a dominação espanhola, dezenas de milhares de filhos da América que puderam, assim, completar seus estudos sem precisar transpor o Oceano.”14
2. DO HOMEM CORDIAL AOS AMIGOS DO CORONEL
Importante relato literário deu-se na exteriorização de Sérgio Buarque de Holanda sobre “ homem cordial”, pois introduz a ideia de que o trato da coisa pública, ao contrário da capacidade de gerenciamento e da habilidade técnica do agente público para o desenvolvimento de atividade determinada e de finalidade mandamental, muito estaria alicerceada na falta de disciplina, de ritualismo ou de meritocracia, substituídos pelo excesso de bons tratos e pela mais profunda “confusão” entre o profissional e o pessoal, descrito em na sua obra:
“O Estado, não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que teve os seus adeptos mais entusiastas durante o século décimo nono.”15
Entende-se, com moderada facilidade, o problema da chamada falta de ideologia partidária, talvez pela “modesta” quantidade de três dezenas de organizações políticas representativas ou talvez pela motivação diversa da vocação em perseguir a consecução do interesse público, o desenvolvimento social, econômico e cultural, ou mesmo de políticas públicas propulsoras de educação, saúde, segurança, trabalho, dentre outros direitos fundamentais inseridos no metaprincípio da dignidade humana e, nesse contexto, Victor Nunes Leal ensina:
“A outra face do filhotismo é o mandonismo, que se manifesta na perseguição de adversários: “para os amigos pão, para os inimigos pau”. As relações do chefe local com seu adversário raramente são cordiais. O normal é a hostilidade.”16
Percebe-se, nos dias atuais, o sistema de liberação de emendas do relator e das emendas parlamentares individuais impositivas segue o fluxo de avanços na aprovação das pautas estipuladas pelo governo. Nessa ordem, o ilustre autor já retratava a prática da reciprocidade político-partidária e a correlação interesse-amizade-recursos em detrimento da qualidade-meritocracia-interesse público:
“E assim nos aparece esse aspecto importantíssimo do “coronelismo”, que é o sistema de reciprocidade: de um lado, os chefes municipais e os “coronéis”, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante do Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça.”17
3. NOVOS TEMPOS E NOSSA REVOLUÇÃO, SERIA O FIM DO “CORONELISMO” NO BRASIL OU A SUBSTITUIÇÃO DOS PERSONAGENS DO PODER?
O Brasil atual retrata um gerúndio de cinco séculos, materializando-se no contemporâneo Estado Democrático de Direito consolidado pela Carta Republicana de 1988 e estabelecido sob os alicerces do metaprincípio da dignidade humana e direitos fundamentais afluentes, substrato da virtuosa história do nosso povo. Índios, portugueses, africanos e tantos outros povos que contribuíram acompanhados pelo sofrimento, força, angustias, sangue, saudades, revoltas, trabalho, experiências, habilidades, culturas, sonhos e paixões convergindo na formatação do nosso Estado virtuoso de muitas coisas, onde prevaleceu a democracia. Nesse mesmo contexto, Celso Mori disserta:
“A própria democracia, como regime político, não é um conceito acabado, completo. É uma ideia em continua construção. Surgiu através de um longo aprendizado civilizatório das diferentes organizações sociais da espécie humana. A mais antiga memória que se tem desse processo concentra-se na Grécia. Mas desde a Grécia – onde a democracia era uma relação entre os iguais que compunham a elite dos homens livres e proprietários, com exclusão de várias categorias sociais – até os dias de hoje, a democracia evolui, em um continuo processo de transformação.”18
Novos tempos exigem um novo pensar sobre o significado de democracia, além do “votar”, embora este verbo “cidadão” seja o marco civilizatório, humanístico e desenvolvimentista, mais importante para o exercício da cidadania, advento tardio para o voto feminino que prevaleceu apenas em 1933, tempos de Sergio Buarque e de Holanda e de Victor Nunes Leal, sendo ainda mais “atrasado” para os negros brasileiros, consolidando-se em 1965. Sem dúvida que os nossos “Novos Tempos” de Raízes do Brasil apresenta-se distante dos conceitos doutrinários tradicionais, nesse sentido, Sérgio Buarque Holanda ensina:
“Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente êsses princípios té onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incomoda, confirmando o nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos direitos e ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, alvo da luta da burguesia contra a aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos.”19
Complementa o autor:
“Saint Hilaire, que por essa época anotava suas impressões de viagem pelo interior brasileiro, observa que, no Rio, as agitações do liberalismo anteriores ao 12 de janeiro foram promovidas por europeus e que as revoluções das províncias partiram de algumas famílias ricas e poderosas. “A massa do povo – ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: Não terei a vida toda de carregar a albarda?20
Celso Mori21 disserta que o conceito de democracia se transformou ao longo do tempo e, mesmo hoje, não é absoluto. Lembra que a democracia grega durou 180 anos e retratava uma realidade da polis de 300 mil pessoas, onde metade era escravo, outra parte mulheres, crianças e estrangeiros, modelo muito similar ao Brasil até os muitos anos do século XX, no que se refere a seleção impropria daqueles que seriam cidadãos.
Aponta-se que grande responsabilidade pode se atribuir aos que poderiam fazer a diferença e se omitiram durante importante período de nossa história até os dias atuais. O “sistema” é poderoso, segmentos de poder isolam-se e distanciam-se daqueles que entendam não estar à altura de integrar o seleto ambiente de influência e de proteção, seja político, jurídico, empresarial, midiático ou intelectual, nada pode embaraçar o virtuoso espaço sob pena de “cancelamento” automático. Esta realidade opera-se através da omissão de algumas grandes personalidades e se estabelece orquestrada por cegueira provocada, por silêncio não tão inocente e pela acomodação frente a vontade da elite – da nova aristocracia – mesmo daqueles de valioso valor construído por extrema meritocracia, mas agindo ou se omitindo pelo mesmo modus operandi, pois talentosos e hábeis que são, depois de tantas lutas e abstinências, não operam, em regra, contra o sistema que agora pertencem, por qualidades, amizades, hereditariedades e habilidades, estabelecendo-se no topo da estrutura organizacional, algumas vezes, com requintes dos séculos XVI, XVII, XVIII, XIX e XX descritos nas obras.
Nossos políticos, nosso povo e nossas mazelas, nesse sentido, um Brasil de poucas oportunidades, políticas públicas ineficientes, baixo desenvolvimento social, equidade, educação e fraternidade, do “homem cordial” ao refino trato de Sergio Buarque de Holanda: “para os amigos pão, para os inimigos pau”.22Percebe-se que “a nossa revolução” representa interesses de um grupo de poder, estabelecido no topo da pirâmide social, ou seja, na direção inversa daqueles que, realmente, necessitam de mudanças estruturais emergenciais.
O trato do autor pressagia a realidade atual, o poder político é, ciclicamente, transferido de grupos majoritários para novos grupos majoritários, em uma interminável substituição de poder. Da aristocracia à burguesia, dos portugueses burgueses aos coronéis tupiniquins, destes aos deputados, senadores, agentes públicos e empresários. Ambientes diversos, áreas variadas e de convergência certa no compartilhamento do poder.
O “Homem Cordial”, o “Filhotismo”, o “Mandonismo”, o Latifundiário, assim como os Jurisconsultos, citados nas obras, modernamente, andam escoltados por assessores, circulam em carros oficiais, frequentam festas de grande requinte, viajam para os paraísos de nosso mundo, debatem assuntos em sua restrita e bem selecionada “bolha”, eliminando todos aqueles que se levantam contra as “cartilhas” e narrativas bem elaboradas. Neste cenário, pelo que costumamos ler sobre o passado e vivenciar no presente, real ou digital, compreende-se a grandeza destas obras e a coragem de seus autores.
O reflexo da insatisfação popular com a política brasileira é facilmente observado pelo mais relapso cidadão. A noção de representatividade encontra-se desgastada pela falta de acesso aos serviços públicos e a deficiente prática de políticas públicas materializadoras de soluções, além da pouca identificação do cidadão com as vagas ideologias partidárias, um triste retrato da sociedade contemporânea e do desperdício de possibilidades e de oportunidades em diversas direções.
Por certo, os autores descrevem características que herdamos e se manifestam-se na falta de disciplina, no excesso de personalismo, na busca por ganhos fáceis, na desorganização urbanística, na cordialidade como meio de conquistas mais rápidas e menos procedimentais, contudo, mantém-se a certeza que desta mistura de “muitas coisas” prosperou um povo que fez da miscigenação, da diversidade cultural, das riquezas naturais, da resiliência, da criatividade, da pluralidade de ideias, da tolerância religiosa, do desejo de prosperar, da mentalidade conciliadora, dentre outros atributos desta sociedade brasileira, esculpiu-se uma nação poderosa, rica em pessoas e em belezas originárias, além de fixar-se dentre as maiores economias globais, muito graças ao espírito empreendedor e a cultura agrária criativa daqueles que trabalharam e prosperaram desde os tempos dos latifúndios retratados em Raízes do Brasil e “Coronéis e enxadas e voto” até os dias atuais. Só precisamos agora, incrementar nossas grandes qualidades e virtuosa esperança com “doses” substanciais de equidade e de fraternidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MORI, Celso Cintra. O voto democrático. São Paulo: Emanuense, 2022.
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HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963.︎
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997.︎
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HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. cit., p.08.︎
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. A evolução histórica dos partidos políticos. Disponível em: https://www.tse.jus.br/institucional/escola-judiciaria-eleitoral/publicacoes/revistas-da-eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-6-ano-3/a-evolucao-historica-dos-partidos-politicos. Acesso em: 17 abr. 2023.︎
BRASIL. Lei n.16.015, de 31 de dezembro de 1973. Institui a Lei dos Registros Públicos. Disponível em: https: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 17 abr. 2023.︎
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BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.︎
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p.275.︎
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. 56. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. Art. 17.︎
BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Partidos políticos registrados do TSE. Disponível em: https://www.tse.jus.br/partidos/partidos-registrados-no-tse/registrados-no-tse. Acesso em: 17 abr. 2023.︎
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. cit., p.40,41 e 42.︎
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. cit., p.90.︎
Ibid., p.129.︎
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. cit., p.61.︎
Ibid., p.63 e 64.︎
MORI, Celso Cintra. O voto democrático. São Paulo: Emanuense, 2022, p.87.︎
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. cit., p.153.︎
Ibid., p.154.︎
MORI, Celso Cintra. O voto democrático. cit.︎
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. cit., p.61.︎