No início, tudo era importação. Os navios vindos da Europa e da América do Norte logo que ancoravam nos portos brasileiros eram tributados com mão de ferro. A principal fonte de renda do Estado era a tributação sobre a importação, chegando a cerca de 60% das receitas totais do setor público.
A Constituição de 1988 transformou profundamente o cenário. Ao instituir de maneira competente as linhas gerais da tributação, permite que legisladores, advogados, aplicadores e fiscais trabalhem com equipamentos seguros e andem sob terra firme ao discutir débitos e créditos tributários.
Ainda assim, a zona grise é enorme e permite discussões infindáveis sobre competência para tributar, instituir e arrecadar tributos. Mais especificamente, impostos.
O grande Aliomar Baleeiro, ao tratar da "Teoria dos Ingressos Públicos", afirma que
"para auferir o dinheiro necessário à despesa pública, os governos, pelo tempo afora, socorrem-se de uns poucos meios universais: a) realizam extorsões de outros povos ou recebem doações voluntárias; b) recolhem as rendas produzidas pelos bens e empresas do Estado; c) exigem coativamente tributos ou penalidades; d) tomam ou forçam empréstimos; e) fabricam dinheiro metálico ou de papel".
Metodologia milenar de obtenção de fundos para financiamento de interesses públicos, de nenhum desses meios foge o Brasil. Recebe doações ou contribuições - quando não mais coerente a extorsão, tributa a renda, exige tributos, penaliza com força de multa, força empréstimos compulsórios e fabrica papel.
Existem três formas inquestionavelmente ortodoxas de arrecadação de recursos para o governo:
Impostos: São gerados por situações específicas (hipótese de incidência + fato gerador) estabelecidas por lei. Eles não estão diretamente vinculados a nenhum gasto específico e são direcionados para o bolo da receita a ser repartida futuramente.
Taxas: São receitas públicas que estão vinculadas à função de polícia do Estado e utilização efetiva ou potencial de serviços públicos por parte dos contribuintes.
Contribuições de melhoria: São cobradas quando os contribuintes obtêm benefícios diretos ou indiretos de obras públicas.
Aqui, recentemente, com a CFRB/88 temos as controversas Contribuições Sociais. Muitos consideram impostos e, portanto, não vinculadas, mas assentou-se a noção de que não são. A partir de 1988, surge a CSLL, sobre lucro líquido, cuja constitucionalidade foi briga hercúlea nos tribunais. Em 1990, aumenta-se a alíquota do Finsocial (Cofins) e amplia-se o escopo do PIS. De 1997 para frente a linha sobe efetivamente: IOF vai de 6% para 15%, aumenta-se as alíquotas de IRPF, Imposto de Renda, IPI automobilístico e IOF câmbio.
Justificável a posição de um governo com nova moeda e perspectivas de crescimento. Também justificável por uma constituição que dá ao Estado papel redentor.
O que não se justifica é que, de lá pra cá, tivemos duas reformas previdenciárias, uma administrativa e nada de se conceber uma reforma tributária.
Vivemos diuturnamente um verdadeiro tango fiscal. Reduz-se uma alíquota qualquer em Minas, amplia a base de cálculo no Ceará, zera a alíquota de ICMS das geladeiras brancas em Extrema/MG, reduz ISSQN em Nova Lima e Betim, irresignada, reduz ainda mais. O tango se torna uma verdadeira guerra, cujos canhões de ICMS confundem os contribuintes e os RETs (Regimes Especiais de Tributação) são o tiro de misericórdia na concorrência. Não se busca elevar a receita pela alíquota, mas pela quantidade de arrecadação. Para piorar, a maior parte dos tributos são pagos na origem.
A reforma tributária, veio tarde, mas veio. O Sistema Tributário Ideal levaria em conta uma verdadeira homogeneização da tributação sobre mercadorias e serviços, base única do IVA, revisão dos benefícios fiscais, fim da tributação sobre folha de pagamento e queda das alíquotas pra empresas devido à modalidade de capital.
O texto que temos em mãos é mais modesto. Simplifica o sistema tributário, criando o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), para englobar o ICMS e o ISS e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) para substituir o PIS, o PIS-Importação, a Cofins e a Cofins-Importação. Além disso, visa expurgar os RETs e determina terminantemente que o tributo será arrecadado no fim. Segundo portal da Câmara, CBS e o IBS serão cobrados no local em que ocorrer o consumo (princípio do destino) e serão não cumulativos. A PEC propõe a criação de um Imposto Seletivo para desestimular o consumo de produtos e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.
Embora modesto, é suficiente. Por que Minas iria reduzir ICMS para aglutinar empresas em seu território se os produtos serão pagos no local final para onde forem enviados? A alíquota mineira de pouco importará para os produtos enviados à Bahia e vice-versa. O fim dos RETs é outra medida interessantíssima, que permitirá maior competitividade e transparência entre os contribuintes.
Uma das inovações que merecem destaque em relação às diversas versões anteriores das propostas tributárias é a concessão de isenções do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) para os itens que integram uma cesta básica nacional de alimentos, cujos componentes serão delineados mediante legislação complementar.
Para além dessa medida, o texto também contempla outras formas de isenção, que variam de 100% a 60% das alíquotas, desde que haja um aumento correspondente nas alíquotas aplicadas a outros produtos, visando restabelecer o equilíbrio na arrecadação entre as diferentes esferas federativas (federal, estadual ou municipal).
Os setores agraciados por tais benefícios incluem serviços ligados à educação e saúde, fármacos, equipamentos médicos, transporte coletivo de passageiros, insumos agropecuários, produções artísticas e culturais, bem como gêneros alimentícios destinados ao consumo humano. A definição precisa dos tipos de serviços e produtos contemplados nesses setores será estabelecida por meio de uma lei complementar.
Não se mexerá na Zona Franca de Manaus e tampouco na autonomia dos entes para determinar suas parcelas do IBS.
Outro ponto interessante é o cashback, que na reforma tributária tem como objetivo reduzir desigualdades de renda, devolvendo parte dos tributos cobrados nos bens e serviços à população. A implementação desse conceito ainda carece de definições importantes, como critérios de participação, público-alvo, valores de reembolso, que serão estabelecidos por lei complementar. Além disso, o Senado ainda fará uma análise acurada a respeito do benefício.
Bernard Appy, secretário extraordinário de Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, afirma que a medida visa equilibrar a carga tributária entre diferentes camadas sociais, aliviando o peso dos impostos sobre os itens consumidos pelas camadas mais pobres da população.
A ideia inicial era reonerar a cesta básica para todos e devolver os impostos aos grupos mais vulneráveis. Atualmente, produtos da cesta básica já são isentos de tributos federais, e cada estado possui alíquotas próprias de ICMS. O modelo de cashback idealizado visaria uma política mais centralizada, permitindo a cobrança de impostos de todos, com a devolução de impostos para os mais necessitados, evitando benefícios fiscais desnecessários para a população que não precisa deles na cesta básica.
A questão é: como definir a quota de cashback de cada contribuinte? Como verificar notas fiscais? Qual será o teto do cashback? Infelizmente, sinto que será uma espécie de ramificação do Bolsa Família, valor fixo recebido por cidadãos cadastrados em determinado programa. Muito mais poderosa, efetiva e coerente é a completa desoneração da cesta básica. E que seja uma cesta gorda.
Entendo que Appy está equivocado ao defender tão ativamente o cashback, cujo funcionamento se limita aos aeroportos canadenses. Reonerar a cesta básica e devolver um valor incerto futuramente pode sangrar os pobres e não tocará os ricos.
Gosto, por outro lado, do Imposto Seletivo. O Imposto Seletivo (IS) é uma taxa adicional que será aplicada a certos produtos considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, tais como agrotóxicos, cigarros e bebidas alcoólicas. As alíquotas serão determinadas através de uma Lei Complementar. Além disso, o IS será utilizado para manter a competitividade da Zona Franca de Manaus, abrangendo produtos que são fabricados fora dessa região.
É relevante destacar que o IS fará parte da base de cálculo do IBS e CBS, assim como do ICMS e ISS durante a fase de transição. Se aprovado de forma definitiva já em 2023, o processo de transição dos tributos antigos para os novos terá início em 2026, com alíquotas iniciais de 0,9% para a CBS e 0,1% para o IBS, para evitar surtos nos contribuintes. A partir de 2027, a CBS entrará em vigor com uma alíquota que ainda será determinada, e os tributos PIS/Pasep e Cofins serão extintos.
Certamente haverá diversos benefícios para setores específicos e, sobretudo quanto ao IBS, o repasse para Estados e Municípios servirá de fundamento para brigas nada agradáveis entre os entes federativos. A reforma dos ingressos abala as bases do federalismo fiscal e reconstrói os princípios do federalismo. Com União segurando o bastão de definir por lei complementar as diretrizes do IBS, os demais entes federativos ficam acuados. Afinal, ninguém quer ser mensalista.
Sacha Calmon, em 2015, dizia que o federalismo brasileiro reflete a evolução do país, uma vez que a CFRB/88 promoveu grande descentralização das formas de ingresso de receitas tributárias, conferindo maior autonomia aos estados e municípios, antes vistos como periféricos. Segue dizendo que à hipertrofia política e econômica da União se sobrepôs a distrofia nos quadros da República. Isso está mudando.
A troca de ingressos prevista na tão esperada reforma tributária deve ser seguida por rigorosa política de repartição de receitas. O federalismo precisa da reforma, mas também precisa de segurança. Me lembro muito bem de quando o Rio de Janeiro, ferido até os ossos pela instabilidade econômica, foi tratado como inadimplente pela União, jogado às traças por não cuidar dos repasses devidos. A União, por outro lado, quando deve, pouco se preocupa. O mesmo vale para a relação entre estados e municípios.
O que vem por aí não sabemos. Mas podemos comemorar que a reforma finalmente está acontecendo e que não mais estaremos, contribuintes, sob a chuva de facas que é a complexidade do sistema tributário nacional.
Arrebata Aliomar ao falar da utopia do imposto único:
Seria difícil obter-se um imposto que atingisse eficazmente todos os contribuintes em sua imensa diversidade profissional. O imposto de consumo seria regressivo e real. O de renda, inaplicável aos pequenos rendimentos e àquelas profissões em que remunerações se param intermitentemente, como honorários médicos, serviços prestados anonimamente, etc. ou negócios de caráter esporádico ou pouco aparentes. Claro que o Fisco se precipitaria sobre a riqueza ostensiva, sobretudo a imobiliária, e seriam esmagados alguns grupos, enquanto outros lograriam fugir ao ônus.
E com tantas incertezas vivemos a reforma. A única certeza é de que nada será como antes.
E não se enganem. Copiar a Europa não funcionará.
• CARRIJO, Flávia Lopes. Reforma tributária no Brasil: impactos na vida do cidadão. 2022. 30 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Contábeis) -- Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2023.
• DE ABREU, D. A.; PEREIRA, W. C.; URQUIZA, P. Os impactos da Reforma Tributária no ambiente social e corporativo / Impacts of Tax Reform on the social and corporate environment. Brazilian Applied Science Review, [S. l.], v. 6, n. 1, p. 87–106, 2022. DOI: 10.34115/basrv6n1-007. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BASR/article/view/43349. Acesso em: 8 oct. 2023.