O jurássico Pronasci-II

29/12/2023 às 17:56
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Há alguns dias, referindo-me ao lançamento do Pronasci-II, escrevi o artigo “Mais do mesmo”, para leitura e qualificada apreciação dos nobres leitores.

Em resposta, a Coordenação desse programa me informou que está aberta a receber sugestões e propostas concretas, caso eu as tenha. Tenho, sim! Aliás, quero crer que isso se constituiu no núcleo de meu texto anterior, mas assim não foi entendido. Lamento, por não ter sido suficientemente claro!... Numa síntese, meu entendimento é de que estamos diante de um problema amplo demais para ser tratado por um programa mínimo. Daí, o Pronasci-II ser inadequadamente restritivo, absolutamente raso e assustadoramente sectário.

Por quê?

Inadequadamente restritivo, em razão de o título sugerir que seria abordado o espectro da violência, mas ficou, meramente, na “Prevenção, Controle e Repressão da Criminalidade” e, ainda assim, selecionando (priorizando) apenas duas frentes, num espectro enorme: “Ação Policial, Prevenção e Integração de jovens em situação de risco”. Se houvesse uma taxonomia da violência, esse programa estaria abordando apenasmente duas espécies do final de um considerável conjunto.

Além disso, esse programa, que pretendeu apresentar propostas inovadoras, audaciosas para reduzir a insegurança no Brasil, mostra-se um programa pretensioso, pois as propostas de solução não estão restritas, unicamente, à área de sua competência. Ao contrário, o Pronasci-II, ao insistir em elencar e financiar ações de fundo social, que deveriam ser realizadas e coordenadas por ministérios específicos, invade área de competência alheia. 

Oportuno lembrar que a matriz de “insegurança” no Brasil é a violência, bipartida em violência da exclusão social e violência da criminalidade. E, para a Policiologia, a violência é uma grave manifestação de uma vulnerabilidade ou ocorrência aguda de uma ameaça. Logo, é um fenômeno social multifacetado, interdisciplinar, que, então, não deve ser tratado apenas por um Ministério – o da Justiça – ou por um dos Poderes – o Executivo.

Vale dizer, a contenção (a eliminação é impossível) dessa violência deve ser resultante de um esforço sistêmico, sinérgico, sincrônico decorrente de princípios e diretrizes, fixados em Políticas Públicas de Estado (não de Governo, nem de partidos), específicas para as duas vertentes acima citadas, desdobradas em planos, projetos e programas.

Provavelmente, a origem desse equívoco está no fato de não se ter claras as conceituações de Segurança Pública e de Defesa Social, núcleos do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, há pouco atualizado, versão 2021-2030, que nos remete aos objetivos da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social. Além de impróprios, os títulos de todos esses documentos são redundantes, visto que há um entendimento (errôneo?) vigente de que Segurança Pública é prevenção, contenção e repressão da criminalidade e a Defesa Social é prevenção do crime, repressão vigorosa das infrações e tratamento do delinquente. A óptica policiológica diverge desses postulados!...      

Voltando às vertentes, quanto à primeira, constata-se que, mesmo timidamente, algumas políticas públicas de inclusão têm tido relativo sucesso, particularmente na redução da desigualdade econômica, ainda que o Estado deixe de produzir políticas universais para trabalhar com políticas compensatórias, mediante pequenas concessões aos mais necessitados, tipo “cestas básicas” de saúde, educação, previdência, habitação etc.

     Quanto à redução da violência da criminalidade, com ênfase na criminalidade violenta, nada a festejar, quando se depara com elevados índices, inquietante e preocupantemente acima da média mundial. Isso vem ocorrendo em razão de esquematização, de estruturação equivocada desse problema, o que, evidentemente, conduz a soluções inadequadas ou insuficientes e/ou paliativas.

O programa é absolutamente raso, pois tangenciou a violência, isto é, não a tratou com a devida profundidade para obter um real diagnóstico desse fenômeno social. Causa e efeito não foram alvo de análise profunda, mas a causalidade (vértice, para onde fluem causas e refluem efeitos, espaço em que trabalha a Polícia) mereceu amplo destaque.

As ações apresentadas estão voltadas, quase que exclusivamente, para a redução da insegurança subjetiva, ou seja, para os crimes mais visíveis, mais midiáticos, sem, contudo, abordar aquele que mais corrói o corpo social: o crime organizado, em suas maléficas vertentes – Contrabando e Descaminho, Corrupção, Crimes contra a ordem econômica, Desmatamento, Falsificação de remédios, Fraudes financeiras, Furto e roubo de veículos, Grupos de extermínio, Jogos proibidos, Lavagem de dinheiro, Mineração irregular, Roubo de cargas, Roubos a bancos, Sequestro, Sonegação fiscal e Tráfico de animais, armas, crianças, drogas ilegais, mulheres, minerais, órgãos humanos, vegetais.

Por fim, o programa é assustadoramente sectário, visto que, reitero, subliminarmente, estariam sendo fortalecidos certos componentes do discurso antipolicial: “polícia é violenta; polícia somente mata jovem negro pobre; combater o racismo estrutural na polícia; o protagonismo da polícia em casos de violência de gênero”, etc. Ou seja, uma Instituição que deve ser vista como instrumento de proteção social, sofreu uma crítica mordaz, totalmente desnecessária, como se essa Instituição tivesse aberto a Caixa de Pandora, quando, ao contrário, ela existe para garantir que a esperança seja retirada da caixa. Então, fica a pergunta: por que desconstruir, desautorizar a mais importante Instituição de salvaguarda social, que inibe vontades e obstaculiza oportunidades? Vale dizer, suas ações podem reduzir, restringir ameaças (destaque para a criminalidade), mas, jamais, acabar com  elas.

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O enunciado “Existe uma relação do social com o crime, que se alimenta da injustiça e da exclusão” é absurda. O crime ocorre por desrespeito aos valores sociais e desobediência às regras sociais. Assim, nem todo marginalizado é marginal e nem todo marginal é marginalizado.

A Violência da Exclusão Social (VES) tem sua gênese, preliminarmente, em vulnerabilidades socioeconômicas provocadas por falta, insuficiência, inadequação de políticas públicas para a área social. Essas vulnerabilidades geram crises de moradia, seguridade, fome, miséria, educação, transporte, saneamento, desemprego, desocupação, remuneração, concentração de renda, dando origem à marginalização (à margem social) e seu produto, os marginalizados.

Na sequência, a VES tem outra origem, a Distopia Estatal: ausência ou funcionamento anômalo de órgãos estatais, nos vários níveis. Essa distopia surge em virtude do agravamento da vulnerabilidade socioeconômica, pela má gestão, evoluindo para uma faixa cinzenta que resulta da superposição dessa vulnerabilidade, agravada, com uma das vertentes da vulnerabilidade sociopolítica, a falta de pertencimento, que enfraquece os valores, principalmente os constitucionais.

Num primeiro momento, vulnerabilidades socioeconômicas, decorrentes de ausência/ineficiência de políticas públicas ou de erros de gestão, não são um problema de responsabilidade da Instituição Polícia. Contudo, por desídia, sua evolução (posto de saúde sempre fechado, locais mal iluminados onde ocorrem estupros, etc.), poderá vir a sê-lo, onde as causas são esquecidas, gerando a “Polícia-Geni”, que é injusta e covardemente agredida, como se fora a origem das mazelas e das contradições sociais.

Finalizando, urge um amplo diagnóstico da violência, no Brasil, que minudencie os dois vetores acima nominados: exclusão e criminalidade. Essa pesquisa deverá ser a fundamentação para elaboração de Políticas Públicas para Contenção da Violência, contendo, minimamente, diretrizes para confecção do Plano Nacional de Contenção da Violência, fixando responsabilidades de cada Ministério. Este, sim, seria desdobrado em programas e projetos, conforme as responsabilidades peculiares a cada Ministério, cujo objetivo maior será a adoção de inúmeros procedimentos  efetivos que visem a reduzir a insegurança em nosso país.

Sobre o autor
Amauri Meireles

coronel da Polícia Militar de Minas Gerais, policiólogo, ex-professor da Academia da Polícia Militar de Minas Gerais

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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