Prisão em Flagrante X Solução de Continuidade

03/01/2024 às 15:36
Leia nesta página:

A presente análise busca trazer esclarecimentos, principalmente quanto ao mito das 24 horas para a prisão em flagrante e à solução de continuidade durante as buscas ao agente responsável pela prática de um crime. 

Inicialmente, a Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. LXI, estabelece que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei

Pela leitura atenta do referido dispositivo, sobretudo pela conjunção alternativa ou senão em flagrante delito ou por ordem escrita –, conclui-se que a prisão em flagrante não exige prévia ordem judicial. 

Em razão disso, o ordenamento jurídico, a nível infraconstitucional, estabelece seu conceito e requisitos para que o Estado (Brasil, no caso), por meio de seus agentes públicos, não cometa abusos efetuando prisões inconstitucional/ilegais. 

Dessa forma, após a prisão em flagrante, será lavrado pela Autoridade Policial o Auto de Prisão em Flagrante (APF), que será remetido ao Poder Judiciário para análise de sua legalidade. Tendo ocorrido a prisão sob a forma da lei (e da CF/88), o APF será homologado, porém, havendo ilegalidade, será relaxado, podendo o agente ser eventualmente posto em liberdade – aqui vale lembrar que, mesmo sendo uma prisão, em tese, ilegal, estando presentes os requisitos e pressupostos da prisão preventiva, esta poderá ser decretada. 

Esclarecidos tais pontos, observa-se que o Código de Processo Penal conceitua flagrante delito e admite a prisão do agente nas seguintes hipóteses: 

Art. 302.  Considera-se em flagrante delito quem:

I - está cometendo a infração penal;

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. 

Espécies: 

Flagrante próprio (real, perfeito ou verdadeiro): 

Previsto art. 302, inc. I, do CPP, ocorre quando o agente é flagrado praticando a conduta descrita no tipo penal, durante o iter criminis, hipótese na qual, pode, até mesmo, ser impedido de consumar a infração penal, conforme explica o Aury Lopes Júnior (2020, p. 938). 

Ou quando o agente acaba de cometer o verbo nuclear (inc. II, do art. 302, do CPP), porém não se faz necessário ter ocorrido o resultado (o qual depende da espécie de crime). Não há lapso temporal relevante entre a prática do crime e a prisão (LOPES JÚNIOR. 2020, p. 938). 

Flagrante impróprio (irreal, imperfeito ou quase flagrante): 

Previsto no inc. III, do art. 302, do CPP, quando o agente é perseguido logo após a prática do delito. Importante referir que inexiste critério legal para definir o quanto em tempo corresponderia a expressão “logo após”, pois dependerá o caso concreto (PACCELI. 2021, p. 670). No entanto, a doutrina majoritária sustenta que a perseguição ao agente deverá ser imediata a prática do crime, não importando sua duração. 

Flagrante presumido (ficto ou assimilado):

Hipótese do art. 302, inc. IV, do CPP, quando o agente é perseguido logo após a prática do delito e encontrado “logo depois”, na posse de instrumentos que presumam sua autoria. Exemplificando, seria o caso de a polícia, por exemplo, ter perseguido o agente, perdido seu rastro, porém, continuando em perseguição, o encontra. 

Flagrante esperado: 

Caso no qual a autoridade policial tem conhecimento de prévio da prática do delito e aguarda até que o agente inicie sua consumação (ou, até mesmo, sua conclusão) para efetuar a prisão. Segundo Norberto Avena, Esta modalidade de flagrante é válida, implicando tentativa punível ou, até mesmo, a consumação do crime (2018, p. 907). 

Flagrante retardado (diferido ou controlado): 

Previsto nas Leis nº 12.850/2013 (art. 8º) e nº 11.343/2006 (art. 53), hipóteses nas quais a autoridade policial poderá retardar sua intervenção (a prisão do agente) visando obter maiores informações e formação das provas acerca dos delitos. 

Flagrante forjado (maquinado ou armado): 

Nesse caso, inexiste crime que fundamente a prisão em flagrante do agente, pelo contrário, este é incriminado pela autoridade falsamente. 

Flagrante provocado (preparado): 

Caso no qual há atuação de um “agente provocador” que proporcione uma situação de realidade na qual o suspeito se veria compelido a repetir (já que ele é o suspeito) a infração (PACELLI. 2021, p. 673), por exemplo, a polícia provoca o agente a cometer o delito, justamente para prendê-lo em flagrante. 

Nesse caso, a prisão em flagrante é ilegal sob dois principais argumentos. Primeiro: sem a atuação do “agente provocador” não seria cometida a infração penal. Segundo: a Autoridade Policial está preparada para efetuar prontamente a prisão, tratando-se de crime impossível. 

A solução de continuidade na perseguição/busca: 

A solução de continuidade na perseguição/busca representa a interrupção desta, desconfigurando, portanto, a situação de flagrante delito. 

Em outras palavras, Autoridade Policial, embora tenha iniciado a perseguição/busca do agente logo após a prática delitiva, interrompe-a. Dessa forma, ainda que venha a retomar as buscas pelo agente e logre encontrá-lo, operou-se a solução de continuidade (a perseguição/busca deixou de ser ininterrupta). 

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Por outro lado, se a perseguição ou busca ocorrer de forma contínua, ainda que perdure por horas, ou mesmo dias, inexistirá solução de continuidade. Nessa toada, a lição de Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 1.034): 

Como a lei não define o que se entende por ‘perseguido, logo após’, aplica-se, por analo­gia, o disposto no art. 290, § 1º, alíneas “a” e “b”, do CPP, segundo os quais entende-se que há perseguição quando: a) tendo a autoridade, o ofendido ou qualquer pessoa avistado o agente, for perseguindo-o sem interrupção, embora depois o tenha perdido de vista; b) sabendo, por indícios ou informações fidedignas, que o réu tenha passado, há pouco tempo, em tal ou qual direção, pelo lugar em que o procure, for no seu encalço. Vale lembrar que, nessas hipóteses de perseguição, a prisão pode ser efetuada em qualquer local onde o capturando for encontrado, ainda que em outro Estado da federação, em sua casa ou em casa alheia (CPP, art. 290, caput, c/c art. 293, caput, c/c art. 294, caput).

O importante, no quase-flagrante, é que a perseguição tenha início logo após o cometimento do fato delituoso, podendo perdurar por várias horas, desde que seja ininterrupta e contínua, sem qualquer solução de continuidade. Carece de fundamento legal, portanto, a regra popular segundo a qual a prisão em flagrante só pode ser levada a efeito em até 24 (vinte e quatro) horas após o cometimento do crime. Isso porque, nos casos de flagrante impróprio, desde que a perseguição seja ininterrupta e tenha tido início logo após a prática do delito, é cabível a prisão em flagrante mesmo após o decurso desse lapso temporal. Ex: acusado que estava sendo medicado em emer­gência de hospital, em razão de tiros que o atingiram quando perseguido pela Polícia, logo após o fato, ocasião em que foi preso. (grifou-se). 

A questão das 24 horas: 

Normalmente é comum vermos pseudojuristas – alguns diplomados, inclusive –, afirmarem que “após 24 horas não haverá mais flagrante”, porém, conforme exposto, inexiste previsão legal quanto a qualquer lapso temporal que venha a descaracterizar a situação de flagrante

Portanto, quando o agente não é preso em flagrante durante a prática delitiva, porém, logo após esta, é iniciada sua perseguição ou busca, de forma contínua (sem solução/interrupção), sua prisão em flagrante será legal, pois o agente permanecerá em situação de flagrância.  

Referências Bibliográficas 

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Consulta em 22 Jan. 2023. 

BRASIL. Código de Processo Penal – Dec. Lei nº 3.689/1941. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Consulta em 22 Jan. 2023. 

BRASIL. Lei º 12.850/2013. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>. Acesso em 22.01.2023.

BRASIL. Lei nº 11.343/2006. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 22.01.2023. 

Pacelli, Eugênio. Curso de processo penal. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2021. 

Lopes Junior, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. 

Avena, Norberto. Processo penal. 10. ed. São Paulo: MÉTODO, 2018. 

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2020. 

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