A presente análise surgiu a partir de questionamentos recebidos sobre a possibilidade de um servidor público receber salário inferior ao mínimo nacional ou de ter seu salário reduzido em virtude de lei superveniente – o caso concreto versa acerca de um projeto de lei municipal que, em tese, busca a revisão do salário mínimo (municipal) para um valor que, caso aprovado sem emendas, ficará abaixo do salário mínimo nacional (R$ 1.302,00).
Embora não tenha sido possível a consulta ao projeto da referida lei – até o momento não divulgado no sítio eletrônico da Câmara de Vereadores de tal Município –, o tema é de interesse a toda a classe de agentes públicos.
De início, cumpre destacar que, ao contrário do que muitos pensam, os servidores públicos são de extrema importância ao país, garantindo o funcionamento de serviços que, via de regra, não são voltados a geração de lucro – atividades para as quais não haveria interesse da iniciativa privada – e, também contrariando essa ideia de muitos, não são bem remunerados. Conforme pesquisa realizada pelo IPEA, em 2017, o salário médio dos servidores públicos municipais no Brasil era de R$ 2.900,00, porém tal média também não traduz a realidade, visto que dependerá de cada município, sendo que, naqueles interioranos, as remunerações são bem mais baixas.
Ingressando no mérito, sabe-se que a União, os Estados e os Municípios são entes federativos, dotados de autonomia própria, materializada por sua capacidade de auto-organização, autogoverno, autoadministração e autolegislação. Vale anotar, contudo, que a autonomia dos entes federativos deve respeitar a competência constitucionalmente definida, delimitada e assegurada (LENZA, 2020, p. 351), ou seja, sua autonomia para legislar deve respeitar Constituição Federal.
O art. 7º, inc. IV, c/c art. 39, § 3º, da Constituição Federal garante aos servidores públicos dos 3 Poderes, em todas as esferas de governo, a garantia de percepção de salário não inferior ao mínimo nacional:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
(...)
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes.
(...)
§ 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.
Impossibilidade de redução de salários:
Nesse ponto, o § 1º do art. 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal traz a seguinte redação:
Art. 23. Se a despesa total com pessoal, do Poder ou órgão referido no art. 20, ultrapassar os limites definidos no mesmo artigo, sem prejuízo das medidas previstas no art. 22, o percentual excedente terá de ser eliminado nos dois quadrimestres seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro, adotando-se, entre outras, as providências previstas nos §§ 3º e 4o do art. 169 da Constituição.
§ 1o No caso do inciso I do § 3º do art. 169 da Constituição, o objetivo poderá ser alcançado tanto pela extinção de cargos e funções quanto pela redução dos valores a eles atribuídos. (grifou-se).
Todavia, essa previsão para redução de vencimentos, dentre tantas outras disposições da LRF, foi alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.238, tendo o Supremo Tribunal Federal proferido a seguinte decisão, relativamente ao objeto do nosso estudo:
(...) 6. ARTIGO 23, § 1º, PROCEDENTE PARA DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL, SEM REDUÇÃO DE TEXTO. 6.1. Irredutibilidade do estipêndio funcional como garantia constitucional voltada a qualificar prerrogativa de caráter jurídico-social instituída em favor dos agentes públicos. Procedência ao pedido tão somente para declarar parcialmente a inconstitucionalidade sem redução de texto do art. 23, §1º, da LRF, de modo a obstar interpretação segundo a qual é possível reduzir valores de função ou cargo que estiver provido. 6.2. A irredutibilidade de vencimentos dos servidores também alcança àqueles que não possuem vínculo efetivo com a Administração Pública. (...). (grifou-se).
Em outras palavras, a previsão contida na LRF que autorizava a redução de salários dos servidores públicos pra adequação das contas públicas foi declarada inconstitucional, de modo que tal prática restou vedada.
Desse modo, considerando que a decisão proferida em sede de ADI – controle abstrato de constitucionalidade – deve ser seguida por toda a administração pública, em todas as esferas de governo, não há, atualmente, possibilidade de redução do valor nominal dos salários dos servidores públicos que estejam em exercício.
Impossibilidade de salário inferior ao mínimo nacional:
A questão também chegou ao STF (RE 694.659/RS), caso no qual servidoras públicos municipais (empregadas domésticas mensalistas), que tinham carga horária de 20h semanais e remuneração de meio salário mínimo nacional, ajuizaram ação de cobrança contra o Município de Seberi/RS, buscando a condenação deste ao pagamento de salário equivalente ao mínimo.
No julgamento, com repercussão geral reconhecida (Tema 900), a Suprema Corte proferiu a seguinte tese:
Tema 900: É defeso o pagamento de remuneração em valor inferior ao salário mínimo ao servidor público, ainda que labore em jornada reduzida de trabalho.
Além disso, vale destacar outro trecho da ementa, segundo o qual a leitura conjunta do art. 7º, inciso IV, e do art. 39, § 3º, da CF/1988 não admite outra interpretação que não a garantia do mínimo existencial para os integrantes da administração pública direta e indireta, com a fixação do menor patamar remuneratório admissível nos quadros da administração pública.
Portanto, se no caso de servidores públicos que possuem jornada de trabalho inferior à 40h semanais não podem receber salários inferiores ao mínimo nacional (nem mesmo proporcionalmente), resta óbvio que nenhum servidor público com carga horária completa o poderá, visto que teses proferidas em sede de repercussão geral também vinculam a administração pública de todas as esferas de governo.
Em suma: mesmo que, eventualmente, venha a ser aprovada alguma lei que fixe a remuneração de servidores públicos em patamar abaixo do salário mínimo nacional, esta será flagrantemente inconstitucional, pois é vedado tanto a redução de salário (para os já ocupantes de cargos públicos), quanto a remuneração inferior ao SMN.
Referências Bibliográficas:
UOL ECONOMIA. Servidor ganha 'demais'? Na verdade, funcionalismo é desigual como o Brasil. Disponível em <https://economia.uol.com.br/noticias/deutsche-welle/2020/09/03/servidor-ganha-demais-na-verdade-funcionalismo-e-desigual-como-o-brasil.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 29 Jan. 2023.
BRASIL. Constituição Federal. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Consulta em 06 Jan. 2023.
BRASIL. Lei Complementar 101/2020. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm>. Acesso em 29 Jan. 2023.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24 ed. São Paulo: Saraiva Educação.
______, Supremo Tribunal Federal. ADI 2238, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 24/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-218 DIVULG 31-08-2020 PUBLIC 01-09-2020 REPUBLICAÇÃO: DJe-228 DIVULG 14-09-2020 PUBLIC 15-09-2020.
______, Supremo Tribunal Federal. RE 964659, Relator: DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 08/08/2022, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-174 DIVULG 31-08-2022 PUBLIC 01-09-2022.