A relação do dispositivo com as razões de decidir e a transcendência dos motivos determinantes.

03/01/2024 às 15:38
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O presente estudo busca trazer esclarecimentos sobre a eficácia da fundamentação de um acórdão que nega provimento a um recurso criminal e a transcendência da motivação das razões de decidir frente a um aparente conflito com a tese acusatória. 

Em razão da complexidade do tema, será feita a exemplificação de um caso hipotético, para facilitar a compreensão. 

Inicialmente, necessário esclarecer que a sentença penal deverá conter os elementos essenciais constantes no art. 381 do Código de Processo Penal – com exceção dos casos de competência do Juizado Especial Criminal (Lei nº 9.099/1995), no qual é dispensado o relatório: 

Art. 381.  A sentença conterá:

I - os nomes das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-las;

II - a exposição sucinta da acusação e da defesa;

III - a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;

IV - a indicação dos artigos de lei aplicados;

V - o dispositivo;

VI - a data e a assinatura do juiz. 

O acórdão – julgamento colegiado proferido pelos tribunais (art. 203 do CPC) –, em síntese, deverá conter os mesmos elementos essenciais, respeitadas as devidas adaptações, visto que se trata de um julgamento colegiado, proferido por Tribunais e, em sua maioria, em grau recursal. 

Porém, a título de estudo, o Tribunal Superior Eleitoral, em seu Glossário Eleitoral, esclarece os requisitos de um acórdão, o qual deverá ser composto de ementa, relatório, motivação (ou fundamentação) e dispositivo, ou seja, acrescenta a ementa aos requisitos essenciais. 

De todos os elementos essenciais, o dispositivo, parte final da sentença/acórdão, consiste na conclusão do raciocínio jurídico, o posicionamento do julgador sobre a questão examinada. 

Nesse sentido, vale trazer a lição de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero (2020, p. 440) acerca do dispositivo da sentença (igualmente aplicável ao acórdão): 

O dispositivo é o local em que o juiz afirma se acolhe ou não o pedido do autor e, em caso de acolhimento, o que deve ser feito para que o direito material seja efetivamente realizado. Assim, por exemplo, o juiz pode, na parte dispositiva da sentença, ao acolher o pedido formulado, condenar o réu a pagar certa soma em dinheiro ou ordenar o réu a fazer ou a não fazer ou mesmo determinar a entrega de determinada coisa. Como a parte dispositiva é aquela que dá resposta ao pedido do autor, ela também é chamada de conclusão da sentença. O dispositivo é o comando que rege a vida das partes e exprime como essas devem se comportar diante do caso concreto

Por se tratar de elemento essencial, a audiência do dispositivo acarreta a inexistência do ato (sentença/acórdão). A respeito do tema, leciona Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 1.615) que a ausência de dispositivo é vício gravíssimo, até mesmo pela conclusão lógica de que uma decisão sem dispositivo não é propriamente uma decisão, já que nada decide. Por isso, é tratada pela doutrina como hipótese de inexistência jurídica do provimento judicial, que deve ser tratado como um não ato

Superado esse ponto, cabe destacar que as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 102, § 2º, da CF).  

Marcio André Lopes Cavalcante (2015) leciona que a eficácia contra todos e o efeito vinculante desmembram-se em seu aspecto subjetivo (quem são os atingidos pela decisão) e objetivo (quais partes da decisão terão efeito vinculante), sendo que, neste aspecto, existem as teorias restritiva e extensiva. 

Para a teoria restritiva, apenas o dispositivo da decisão terá efeito vinculante, enquanto para a extensiva, os motivos determinantes (ratio decidendi) da decisão também terão efeito vinculante. 

Com efeito, a teoria da transcendência dos motivos determinantes é a extensiva, sustentando que, além do dispositivo, os fundamentos determinantes da decisão também seriam dotados de efeito vinculante. 

Ocorre que o STF, no julgamento da Reclamação 8.168/SC, fixou a tese de que não admite a teoria da transcendência dos motivos determinantes, e sim a teoria restritiva. 

Esclarecidos esses aspectos necessários ao estudo, passa-se a exemplificação de um caso hipotético para melhor compreensão: 

Fulano foi denunciado por homicídio duplamente qualificado, por ter matado Beltrano por motivo fútil (ciúmes da amizade de sua namorada com a vítima) e mediante recurso que dificultou a defesa da vítima (esperou-a em local ermo, atacou-a de surpresa, desferindo-lhe vários tiros, inclusive após Beltrano ter caído no solo, sem ter condições eficazes de se defender, fugir ou pedir socorro). 

A sentença de pronúncia acolheu a tese acusatória, pronunciando Fulano nos termos da denúncia – acolheu todas as razões das qualificadoras. 

Interposto Recurso em Sentido Estrito, buscando a absolvição sumária ou, alternativamente, a impronúncia ou desclassificação para homicídio simples, o Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso defensivo, por unanimidade, acompanhando o voto do relator. 

No dispositivo do acórdão desse caso hipotético, apenas constou que foi negado provimento ao recuso, sem qualquer ressalva. Todavia, no voto do relator (acompanhado pelos seus pares) houve uma série de considerações acerca das qualificadoras, tendo o relator afirmado que o homicídio era duplamente qualificado, tanto pelo motivo fútil, quanto pelo recurso que dificultou a defesa do ofendido, porém, em relação a esta qualificadora, afirmou existir pelo fato de o acusado ter desferido vários tiros na vítima após esta ter caído no solo, sem ter condições de fugir em busca de socorro – não mencionou o fato de o crime ter ocorrido em local ermo, nem de o acusado ter desferido os tiros de surpresa – sendo omisso ao fato de ter ocorrido em local ermo e de surpresa. 

Pois bem, em havendo omissão, contradição, ambiguidade ou obscuridade entre as razões da decisão (existentes no voto) e o dispositivo (que negou provimento ao recurso, sem qualquer ressalva), deveriam ser opostos embargos de declaração (art. 382 do CPP) e, caso não acolhidos, o respectivo recurso às Cortes Superiores, contudo, o acórdão transitou em julgado (não foram opostos embargos declaratórios, nem recursos). 

Posteriormente, o caso é submetido a júri, porém, antes dos debates, a Combativa Defesa se insurge quanto à quesitação, requerendo que, em relação ao recurso que dificultou a defesa da vítima, seja questionado especificamente aos jurados se a qualificadora existiu em razão de o acusado ter desferido vários tiros na vítima após esta ter caído no solo, sem ter condições de fugir em busca de socorro, sem que houvesse qualquer menção ao fato de o crime ter ocorrido em local ermo e de o acusado ter se utilizado do fator surpresa

Assim, pode-se perceber que a tese defensiva, nesse momento, busca fazer valer do motivo que levou o TJ a manter a qualificadora – vários tiros com a vítima caída – e a omissão – quanto ao local ermo e à surpresa –, em detrimento de seu dispositivo – que negou provimento ao recurso, sem qualquer ressalva. 

Ou seja, busca-se invocar os fundamentos (e omissões) da decisão (acórdão do TJ) como seu dispositivo, tal como a transcendência dos motivos determinantes para decisões da Suprema Corte 

Porém, entende-se que tal entendimento não deve prosperar, pois o dispositivo da decisão (acórdão) tem força vinculativa dentro do processo no qual foi proferido, não havendo transcendência das razões de modo a suplantar o determinado na parte dispositiva da decisão, tanto que, apesar das considerações, o TJ, no caso hipotético, negou provimento ao recurso defensivo escorando-se em um dos argumentos para a manutenção da qualificadora. 

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E, desse modo, a omissão em tratar do local do crime e da surpresa não retiram esses fatos da fundamentação da qualificadora de recurso que dificultou a defesa da vítima, pois inexiste carência ou omissão na fundamentação (do acórdão). 

Nesse sentido, frisa-se que a decisão considera-se fundamentada quando escorada em fundamentos suficientes para afirmar suas conclusões (art. 93, inc. IX, da CF), sendo desnecessário o enfrentamento de todas as teses defensivas ou reafirmação de todas as razões existentes na tese acusatória para a manutenção da qualificadora – pois uma (os tiros com a vítima caída) já bastava. 

Inclusive o STJ possui entendimento consolidado nesse sentido: 

(...) VI - Conforme entendimento pacífico desta Corte “o julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão”. A prescrição trazida pelo art. 489 do CPC/2015 confirma a jurisprudência já sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, “sendo dever do julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida”. [EDcl no MS 21.315/DF, relatora Ministra Diva Malerbi (Desembargadora convocada TRF 3ª Região), Primeira Seção, julgado em 8/6/2016, DJe 15/6/2016.]. (...). (AgInt no AREsp 1382885/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/04/2021, DJe 29/04/2021). (grifou-se). 

Logo, caso o TJ entendesse que a qualificadora deveria ser mantida com base em uma única circunstância – tiros na vítima caída –, deveria ter assim decidido, julgando o Recurso em Sentido Estrito parcialmente procedente para afastar as demais circunstâncias que fundamentavam a qualificadora.  

Em suma: estando o dispositivo da decisão de acordo com sua fundamentação, o fato de esta não enfrentar todas as questões ventiladas pela parte não enseja sua omissão, nem mesmo dá margem para que essa ausência de enfrentamento às questões venha a ser utilizada como argumento para suplantar o dispositivo da decisão, similarmente ao que ocorre com a transcendência dos móvitos determinantes.  

Referências Bibliográficas: 

BRASIL. Constituição Federal. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Consulta em 14 Fev. 2023. 

BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Consulta em 14 Fev. 2023. 

BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Consulta em 14 Fev. 2023. 

_______, Tribunal Superior Eleitoral. Glossário Eleitoral explica o conceito de acórdão. Disponível em <https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Abril/glossario-eleitoral-explica-o-conceito-de-acordao#:~:text=Elementos%20do%20acórdão,se%20resumem%20os%20pontos%20fundamentais.>. Acesso em 14 Fev. 2023. 

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Manual do processo civil. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. 

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed. Salvador: JusPodivm, 2020. 

CAVALCANTE. Marcio André Lopes. O STF não admite a teoria  da transcendência dos motivos determinantes. Disponível em <https://www.dizerodireito.com.br/2015/12/o-stf-nao-admite-teoria-da.html>. Acesso em 14 Fev. 2023. 

_______, Supremo Tribunal Federal, Rcl 8168, Relator(a): ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 19/11/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-037  DIVULG 26-02-2016  PUBLIC 29-02-2016. 

______, Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1382885/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/04/2021, DJe 29/04/2021. 

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