O presente estudo visa trazer esclarecimentos acerca da possibilidade ou não de interrupção no fornecimento de energia elétrica e água, em razão do inadimplemento, para estabelecimentos que prestam serviços essenciais e contínuos.
Embora seja um assunto pacificado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, e inalterado mesmo com o advento da Lei nº 14.015/2020, ainda há casos nos quais algumas concessionárias têm efetuado a interrupção no fornecimento de energia elétrica e água a hospitais, postos de saúde e escolas, por exemplo.
Inicialmente, o fornecimento de água/energia elétrica para estabelecimentos que prestam serviços essenciais, como um hospital, é regulado pelo Código de Defesa do Consumidor, pois, ainda que se tratem de bens destinados à sua atividade fim – uso de energia elétrica e água para realização de uma cirurgia, por ex. –, aplica-se a mitigação da teoria finalista, equiparando-se a unidade hospital a consumidor, em razão de sua hipossuficiência perante às concessionárias de fornecimento daqueles bens.
Nesse sentido é a Edição 39 da Jurisprudência em Teses do STJ:
O Superior Tribunal de Justiça admite a mitigação da teoria finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor - CDC nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), apesar de não ser destinatária final do produto ou serviço, apresenta-se em situação de vulnerabilidade.
E a lição de Claudia de Lima Marques (2010, p. 87):
Realmente, depois da entrada em vigor do CC/2002 a visão maximalista diminuiu em força, tendo sido muito importante para isto a atuação do STJ. Desde a entrada em vigor do CC/2002, parece-me crescer uma tendência nova da jurisprudência, concentrada na noção de consumidor final imediato (Endverbraucher), e de vulnerabilidade (art. 4º, I), que poderíamos denominar aqui de finalismo aprofundado. É uma interpretação finalista mais aprofundada e madura, que deve ser saudada. Em casos difíceis envolvendo pequenas empresas que utilizam insumos para a sua produção, mas não em sua área de expertise ou com uma utilização mista, principalmente na área de serviços, provada a vulnerabilidade, conclui-se pela destinação final de consumo prevalente. Essa nova linha, em especial do STJ, tem utilizado, sob o critério finalista e subjetivo expressamente a equiparação do art. 29 do CDC, em se tratando de pessoa jurídica que comprove ser vulnerável e atue fora do âmbito de sua especialidade, como hotel que compra gás. Isso porque o CDC conhece outras definições de consumidor. O conceito-chave aqui é o de vulnerabilidade. (grifou-se).
Partindo-se desse ponto, disciplina o CDC, em seu art. 22, que os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Ademais, em face da essencialidade do serviço prestado pelo órgão público inadimplente, a interrupção do fornecimento de energia elétrica/água não traria apenas desconforto ao prestador de serviços inadimplente, mas uma sucessão de violações de direitos fundamentais da população que necessita de tais serviços – a exemplo de usuários se serviços hospitalares, haverá verdadeiro risco à vida.
Em reforço, o STJ possui entendimento consolidado no sentido de que serviços essenciais, como é o caso dos prestados por hospitais e escolas, não devem sofrer interrupção em virtude de corte no fornecimento de energia, o que, por analogia, também deve ser aplicado em relação ao corte de água:
(...) Quando o devedor for ente público, não poderá ser realizado o corte de energia indiscriminadamente em nome da preservação do próprio interesse coletivo, sob pena de atingir a prestação de serviços públicos essenciais, tais como hospitais, centros de saúde, creches, escolas e iluminação pública. (...). (STJ. 2ª Turma. AgRg no Ag 1329795/CE, Rel. Min. Herman Benjamin,julgado em 19/10/2010).
(...) A suspensão do serviço de energia elétrica, por empresa concessionária, em razão de inadimplemento de unidades públicas essenciais - hospitais; pronto-socorros; escolas; creches; fontes de abastecimento d'água e iluminação pública; e serviços de segurança pública -, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, despreza o interesse da coletividade. (...). (STJ. 2ª Turma. AgRg no AREsp 543.404/RJ, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 12/02/2015). (grifou-se).
Por fim, também vale frisar que o corte de serviços essenciais, tais como água e energia elétrica, pressupõe o inadimplemento de conta regular, sendo inviável, portanto, a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos (STJ. 1ª Turma. AgRg no Ag 1320867/RJ, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 08/06/2017). Logo, mesmo que não se trate de serviço público essencial, a interrupção de fornecimento de água/energia elétrica deve ser fundamentada em débitos recentes.
Dessa forma, água potável e energia elétrica, além de fundamentais à manutenção de condições dignas de vida e saúde, quando essenciais a prestação de serviços de caráter público, também essenciais, como é o caso da prestação de serviços de educação (escolas) e médico-hospitalares (hospitais, postos de saúde, etc.), por ex., não poderão ter seu fornecimento interrompido em razão de inadimplência, devendo as concessionárias buscar o adimplemento por outras vias, como eventual renegociação de dívida ou, até mesmo, ação de execução.
Referências:
BRASIL. Lei nº 8.987/1995. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>. Acesso em 16 Mar. 2023.
BRASIL. Lei nº 8.987/1995. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm>. Acesso em 16 Mar. 2023.
BRASIL. Lei nº 13.460/2017. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13460.htm>. Acesso em 16 Mar. 2023.
BRASIL. Lei nº 14.015/2020. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14015.htm>. Acesso em 16 Mar. 2023.
______, STJ. Jurisprudência em Teses, Ed. 39. Disponível em <https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/doc.jsp?tipo=JT&livre=consumidor+por+equipara%E7%E3o&b=TEMA&p=true&thesaurus=JURIDICO&l=20&i=2&operador=E&ordenacao=MAT,@NUM>. Acesso em: 16 Mar. 2023.
MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010.
CAVALCANTE, Marcio Andre Lopes. Lei 14.015/2020: dispõe sobre a interrupção e o restabelecimento de serviços públicos em virtude de inadimplemento. Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2020/06/lei-140152020-dispoe-sobre-interrupcao.html#:~:text=Em%20palavras%20mais%20simples%2C%20o,que%20ele%20seja%20previamente%20avisado>. Acesso em: 16 Mar. 2023.
______, STJ. 2ª Turma. AgRg no Ag 1329795/CE, Rel. Min. Herman Benjamin,julgado em 19/10/2010.
______, STJ. 2ª Turma. AgRg no AREsp 543.404/RJ, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 12/02/2015.
______, STJ. 1ª Turma. AgRg no Ag 1320867/RJ, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 08/06/2017.