A teoria da imputação objetiva e a sua aplicação na jurisprudência pátria

Resumo:


  • A teoria da imputação objetiva, desenvolvida por Claus Roxin, busca limitar a responsabilidade penal, evitando condenações injustas ao analisar a relação de causalidade de maneira normativa.

  • O Superior Tribunal de Justiça aplicou a teoria da imputação objetiva no HC 46.525/MT de 2006, demonstrando a possibilidade de sua utilização no direito penal brasileiro em casos específicos.

  • A jurisprudência brasileira ainda mostra resistência à adoção plena da teoria da imputação objetiva, preferindo as teorias tradicionais do crime, apesar de alguns precedentes que reconhecem sua relevância.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo

O presente artigo discute a inadequação das teorias tradicionais do crime no direito penal brasileiro para resolver casos complexos, introduzindo a teoria da imputação objetiva, elaborada por Claus Roxin, como uma abordagem alternativa. O trabalho explora brevemente a teoria da imputação objetiva e investiga sua aplicação no direito brasileiro, destacando decisões judiciais, como o HC 46.525/MT de 2006, que ilustra a utilização dessa teoria pelo Superior Tribunal de Justiça. No entanto, apesar de alguns casos pontuais, o texto destaca a resistência da jurisprudência brasileira em adotar plenamente essa teoria. O artigo aborda ainda os elementos do crime conforme o conceito analítico, com ênfase na relação de causalidade, e explora as teorias do nexo causal, incluindo a equivalência dos antecedentes e a causalidade adequada. O enfoque principal recai sobre a imputação objetiva como um limitador da responsabilidade penal, salientando sua importância na prevenção de condenações injustas. Por fim, conclui-se sugerindo a complementaridade da teoria da imputação objetiva à teoria finalista, especialmente em situações em que a relação de causalidade não é adequadamente resolvida pelas teorias tradicionais.

Palavras-chave: Direito Penal. Conceito Analítico de Crime. Teoria Finalista. Relação de Causalidade. Nexo Causal. Equivalência dos Antecedentes. Causalidade Adequada. Imputação Objetiva.

Abstract

This article discusses the inadequacy of traditional crime theories in Brazilian criminal law to address complex cases, introducing the theory of objective imputation, developed by Claus Roxin, as an alternative approach. The paper briefly explores the theory of objective imputation and investigates its application in Brazilian law, highlighting judicial decisions such as HC 46,525/MT in 2006, which illustrates the use of this theory by the Superior Court of Justice. However, despite some isolated cases, the text emphasizes the resistance of Brazilian jurisprudence to fully adopt this theory. The article also addresses the elements of the crime according to the analytical concept, with an emphasis on the causal relationship, and explores theories of causation, including equivalence of antecedents and adequate causation. The main focus is on objective imputation as a limiter of criminal responsibility, emphasizing its importance in preventing unjust convictions. In conclusion, the article suggests the complementarity of the theory of objective imputation to the finalist theory, especially in situations where the causal relationship is not adequately resolved by traditional theories.

Keywords: Criminal Law. Analytical Concept of Crime. Finalist Theory. Causal Relationship. Causation. Equivalence of Antecedents. Adequate Causation. Objective Imputation.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO. 2. ELEMENTOS DO CRIME CONFORME O CONCEITO ANALÍTICO. 2.1. O Fato Típico. A) Conduta. B) Resultado. C) Nexo Causal. D) Tipicidade. III. TEORIAS DO NEXO CAUSAL. 3.1. Teoria da Equivalência dos Antecedentes. 3.2. Teoria da causalidade adequada. 4. IMPUTAÇÃO OBJETIVA. 5. CONCLUSÃO. 6. APÊNDICE. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

1. INTRODUÇÃO

As teorias do crime utilizadas tradicionalmente pelo direito penal brasileiro não se revelam suficientes para solução da totalidade dos casos levados aos tribunais. O direito penal brasileiro, ainda de forma discreta, utiliza a teoria da imputação objetiva, elaborada pelo alemão Claus Roxin, para solucionar casos concretos.

O presente trabalho busca apresentar, brevemente, a teoria da imputação objetiva e investigar seu uso no direito brasileiro. Algumas decisões foram tomadas com base nessa teoria, como é o caso do HC 46.525/MT, em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o fez de forma inédita no ano de 2006. Essa decisão, disponibilizada no site do STJ, poder ser lida no apêndice.

Apesar do citado precedente, a jurisprudência pátria ainda é conservadora e aplica apenas as teorias do crime tradicionalmente aceitas no Brasil, mesmo em casos singulares. Por isso, apesar de encontrar um ou outro caso concreto em que se lançou mão da imputação objetiva, ainda não é possível dizer que tal teoria tem plena aceitação nos Tribunais Superiores.

Seria a teoria da imputação objetiva de Claus Roxin compatível com o direito brasileiro? Os Tribunais Superiores Brasileiros (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) aceitam sua utilização na aplicação do direito ao caso concreto?

Ao ler o presente trabalho, o leitor terá que se aprofundar nas Ciências Criminais e, no interior da Teoria do Crime, mais precisamente, na Relação de Causalidade (Nexo Causal). Dessa forma, poderá perceber que o nosso Código Penal, ao acolher como regra a teoria da equivalência dos antecedentes (art. 13, caput, CP) e, excepcionalmente, a teoria da causalidade adequada (art. 13, §1º, CP), é incapaz de resolver determinados casos dentro do sistema finalista.

A imputação objetiva é, na verdade, um limitador da responsabilidade penal e deve ser estudada a fim de que não haja aplicação inadequada da norma penal incriminadora, e o inocente sofra as penas de uma condenação injusta. Recordemos um dos ditames da justiça penal: “mais valem cem criminosos soltos, do que um inocente preso.”

2. ELEMENTOS DO CRIME CONFORME O CONCEITO ANALÍTICO OU DOUTRINÁRIO

Tomando o conceito analítico de crime como o mais completo deles, torna-se necessário, antes de mais nada, fazer a diferenciação entre a teoria tripartida, a qual considera que o crime é composto por três elementos: a) fato típico; b) ilicitude; c) culpabilidade. E a teoria bipartida, a qual considera apenas os dois primeiros como elementos do crime: a) fato típico; b) ilicitude. A culpabilidade é considerada como pressuposto para a aplicação da pena.

Assim como os eméritos juristas Guilherme de Souza Nucci, Rogério Greco, Eugênio Raul Zaffaroni, Magalhães Noronha, Heleno Cláudio Fragoso, Aníbal Bruno, José Frederico Marques, Francisco de Assis Toledo, Cezar Roberto Bitencourt, Ney Moura Teles, adotamos a teoria tripartida. Neste capítulo, apresentaremos, de forma simples e objetiva, cada um dos elementos que compõem o crime de acordo com essa teoria.

2.1. O Fato Típico: conduta, resultado, nexo causal e tipicidade

O fato típico é a adequação do comportamento humano ao modelo legal contido na previsão legal. Ocorre quando uma conduta humana (ação ou omissão) causa um resultado (modificação no mundo exterior) e há uma relação de causalidade (nexo causal) entre essa conduta e o resultado alcançado.

Dentro do fato típico encontra-se ainda a tipicidade, conceituada como a perfeita subsunção da conduta e do resultado à definição legal do delito.

A) Conduta

Conforme o sistema finalista da ação consagrado por Hans Welzel, conduta é todo comportamento humano (ação ou omissão) consciente e voluntário, dirigido a um fim.

Vale lembrar que, no sistema finalista, o dolo e a culpa integram o primeiro elemento do fato típico: a conduta. Por ser o dolo a vontade consciente de realizar os elementos do tipo penal, trata-se do elemento subjetivo do tipo. E a culpa é o elemento normativo do tipo, sua aferição depende do caso concreto, adequa-se apenas aos casos em que o crime admite a modalidade culposa.

B) Resultado

Resultado ou “evento” é a consequência provocada pela conduta do agente. Relativamente à violação da lei penal, o resultado jurídico ou normativo representa uma lesão ou exposição a perigo de lesão do bem jurídico protegido por lei. No que concerne ao resultado naturalístico ou material, o resultado provoca uma verdadeira modificação do mundo exterior, que deve ser causada pela conduta do agente.

Logo, todo crime tem resultado, já que o resultado é um dos elementos do crime. Contudo, nem todo resultado será visível ao ser humano. Apenas o resultado naturalístico modifica o status do bem jurídico protegido.

C) Nexo causal

Trata-se da relação existente entre a conduta e o resultado. Para que haja nexo causal, deve existir uma relação de causa e efeito entre a conduta praticada e o resultado alcançado.

Na doutrina brasileira, predomina o entendimento de que apenas nos crimes com resultado naturalístico é pertinente o estudo do nexo causal. Assim, ao analisar a relação de causalidade, utiliza-se como modelo os crimes materiais, em que se descreve uma conduta e um resultado naturalístico, exigindo-se a produção do último para a consumação do crime.

É no estudo sobre o nexo causal que se encontra a teoria da imputação objetiva, que será melhor abordada em capítulo à parte.

D) Tipicidade

A tipicidade é a subsunção da conduta praticada pelo agente e o modelo previsto no tipo penal da lei incriminadora. Analisar a tipicidade é verificar se o fato ocorrido corresponde a uma conduta legalmente prevista como crime ou contravenção penal.

A conduta de subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel encontra-se prevista no art. 155 do Código Penal, há, portanto, tipicidade entre a conduta e a lei penal.

3. TEORIAS DO NEXO CAUSAL

3.1. Teoria da Equivalência dos Antecedentes

Os demais nomes dessa teoria são: da conditio sine qua non; da equivalência das condições; da condição simples; da condição generalizadora. O primeiro nome listado é o mais utilizado.

Teve como seus precursores Glaser, Von Bur e Stuart Mill, em 1873. É a teoria adotada pelo Código Penal brasileiro, conforme se extrai do art. 13, caput, in fine: “Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.”

Dessa forma, por meio da teoria em estudo, causa seria todo comportamento humano, comissivo ou omissivo, que, de algum modo, concorre para a produção do resultado naturalístico. Conforme ensina Cleber Masson: “Pouco importa o grau de contribuição. Basta que tenha contribuído para o resultado material.”1

Dessa maneira, qualquer evento na linha sucessória dos fatos que contribuíram para o crime possui nexo causal. Por exemplo: A matou B com tiro de espingarda. Logo, a compra da arma também se encontra na linha dos fatos que ocasionaram a morte de B e, portanto, quem vendeu a arma também pode ser responsabilizado pelo crime de homicídio. Se se descobre que A comprou a arma a fim de matar B porque cresceu assistindo a filmes violentos, a emissora de TV X, que os transmite, também terá participação na morte de B, haja vista que A sempre assiste a esses filmes .

A teoria da equivalência leva, em última instância, ao despautério de responsabilizar os pais do responsável pelo crime, uma vez que, se não houvessem concebido o criminoso, não haveria crime. É o que se denomina de “regresso ao infinito”, pelo qual é possível retroceder à criação do homem como a causa de todos os crimes. Adão e Eva seriam os responsáveis em última análise.

O limitador dessa teoria encontra-se no “processo hipotético de eliminação”, desenvolvido por Thyrén, de acordo com o qual, retira-se a conduta investigada do desdobramento histórico tal fato, e verifica-se se o resultado naturalístico continua existindo ou se desaparece. Se o resultado depende daquela conduta, então é possível dizer que esta atuou como causa.

3.2. Teoria da causalidade adequada

Para a teoria da causalidade adequada, a causa é o antecedente necessário e adequado à produção do resultado. Considera-se adequada a conduta idônea a gerar o efeito, excluindo-se, dessa forma, os acontecimentos extraordinários, fortuitos, excepcionais, acidentais.

Von Kries, deu origem a essa teoria, também conhecida como teoria da condição qualificada, ou teoria individualizadora.

A causa adequada é aferida de acordo com os padrões do homem médio e com a experiência comum. Não basta contribuir de qualquer modo para o resultado, a contribuição deve ser eficaz.

4. IMPUTAÇÃO OBJETIVA

Ao considerarmos a teoria da imputação objetiva, devemos recordar que o direito penal visa evitar que indivíduos sejam responsabilizadas por crimes que não cometeram. A responsabilização indevida pode ocorrer por falta de análise mais cuidadosa da relação de causalidade (nexo causal).

Seria mais apropriado denominar essa teoria de “teoria da não imputação objetiva”, ou, ainda, “teoria de como evitar que se impute um crime a alguém que, objetivamente, não deveria ser punido”.

Importa salientar que não existe apenas uma teoria da imputação objetiva, trata-se, em verdade, de uma linha de pensamento que alguns autores passaram a adotar após os ensaios de Richard Honig, reunidos na obra Causalidade e Imputação Objetiva, que foi publicada em 1930. O objetivo de Honig nessa obra é resolver os problemas criados pela teoria da equivalência dos antecedentes causais e pela teoria da adequação.

Em 1962, por meio daquilo que denonimou “princípio do incremento do risco”, Claus Roxin detem-se sobre a questão acerca do aumento do risco e a falta de aumento do risco permitido. Ao considerarmos os elementos negativos e positivos de verificação da conduta da imputação objetiva, esse tópico será esclarecido.

Em 1970, Roxin desenvolve o conceito de imputação objetiva, o qual abordamos no presente trabalho. Por ser o penalista estrangeiro mais difundido em nosso país, Roxin possui verdadeiros discípulos brasileiros, como é o caso de Luís Greco.

O jurista alemão Gunter Jakobs também escreve sobre a imputação objetiva. Analisa aspectos como o risco permitido, o princípio da confiança, a proibição do regresso e a competência e capacidade da vítima.

A consequência da aplicação do princípio da confiança é a impossibilidade de responsabilizar aquele que atua conforme o cuidado objetivamente exigido. Pela proibição de regresso, um comportamento anterior considerado inócuo não pode ser considerado coautoria ou participação em conduta futura proibida, assim, um vendedor autorizado de armas de fogo não responde pelos crimes com elas cometidos, uma vez que realizou uma conduta estereotipada, normal e permitida pela ordem jurídica.

Voltando ao ensinamentos de Claus Roxin, sua preocupação não é, à primeira vista, saber se o agente atuou efetivamente com dolo ou culpa no caso concreto. Antes mesmo da análise dos elementos do fato típico (conduta, resultado, nexo causal e tipicidade), afere-se a imputação objetiva daquele caso.

O estudo da imputação objetiva, dentro do tipo penal complexo, acontece antes mesmo da análise dos seus elementos subjetivos (dolo e culpa), pois, segundo Roxin2:

A tarefa primária da imputação ao tipo objetivo é fornecer as circunstâncias que fazem de uma causação (como o limite máximo da possível imputação) uma ação típica, ou seja, que transformam, por exemplo, a causação de uma morte em um homicídio; se uma tal ação de matar também deve ser imputada ao tipo subjetivo, considerando-se dolosa, isto será examinado mais adiante.

Dessa forma, a teoria da imputação objetiva surge com a finalidade de limitar o alcance da chamada teoria da equivalência dos antecedentes causais, sem abrir mão dessa teoria contudo. Conforme explica o professor Luís Greco3:

A realização do risco, ao contrário do que pensam alguns, não substituiu a causalidade, mas a pressupõe: é impossível dizer que determinado risco se realizou no resultado, se a conduta do autor não foi sequer conditio sine qua non, ou, para utilizar a teoria mais aceita na Alemanha atualmente, condição segundo uma lei natural, do resultado.

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Por intermédio da teoria da imputação objetiva deixa-se de lado a observação de uma relação de causalidade puramente material, para se valorar outra, de natureza jurídica, normativa. Nesse sentido, afirma Fernando Galvão4:

Pode-se distinguir causalidade material de imputação objetiva. A relação de causalidade material relaciona uma conduta a um determinado resultado no plano naturalístico e constitui pressuposto para a imputação objetiva nos crimes materiais. A definição do critério a ser utilizado para estabelecer a vinculação resulta de opção político-criminal, que acolhe qualquer das diversas teorias elaboradas para a determinação da causalidade. A imputação objetiva, por sua vez, é atribuição normativa da produção de determinado resultado a um indivíduo, de modo a viabilizar sua responsabilização.

Considerando-se o aspecto prático da aplicação da imputação objetiva, conclui-se que determinada conduta tida como criminosa possui nexo causal somente se satisfizer as seguintes etapas: 1ª) análise conforme a teoria da equivalência dos antecedentes (em regra), ou causalidade adequada (como exceção); 2ª) verificação da imputação objetiva; e 3ª) verificação da causalidade psíquica (dolo ou culpa).

Na 2ª fase, que trata da verificação da imputação objetiva, analisam-se os elementos negativos e os elementos positivos da imputação objetiva.

Destacam-se dois elementos negativos da imputação objetiva: a) criação de risco juridicamente irrelevante; e b) diminuição de risco.

A “criação de risco juridicamente irrelevante” vincula-se às condutas quotidianas em que, frequentemente, assumimos o risco, tal como dirigir um veículo, ainda que se saiba que mortes acidentais no trânsito acontecem todos os dias; comprar bebida alcóolica para uma festa, apesar da possibilidade de que algum dos convidados consuma excessivamente e venha a óbito por coma alcóolico, ou por afogamento caso resolva entrar na piscina embriagado.

A “diminuição do risco” é verificada quando a conduta do agente é dirigida a finalidade de anular ou ao menos reduzir o risco que iria atingir a vítima em uma proporção mais grave. É o caso do exemplo de B que empurra A para salvá-lo de um tiro disparado em sua direção. A cai no chão e quebra o braço, ao passo que, se B não tivesse agido para diminuir o risco, poderia ter morrido em virtude do tiro.

Quanto aos elementos positivos de verificação da imputação objetiva, destaca-se: c) criação ou incremento de um risco juridicamente relevante; e d) esfera de proteção da norma com o critério de imputação.

A “criação ou incremento de risco juridicamente relevante” revela não ser suficiente que o agente tenha interferido criando qualquer tipo de risco à vítima, mostra-se necessária a criação de um risco juridicamente relevante. Se a conduta do agente não é capaz de criar um risco juridicamente relevante, ou seja, se o resultado por ele pretendido não depende exclusivamente de sua vontade, caso esse resultado aconteça, deverá ser atribuído ao acaso.

Podemos citar o exemplo de alguém que, almejando a morte de seu tio, com a finalidade de herdar-lhe todo o patrimônio, compra-lhe uma passagem aérea na esperança de que a aeronave sofra um acidente e venha a cair. Por acaso, o acidente acontece e a aeronave cai, matando o seu tio, bem como os demais passageiros. Embora fosse esse o desejo do agente, tal resultado jamais lhe poderá ser imputado, uma vez que sua conduta – comprar as passagens desejando a queda do avião – não cria um risco juridicamente relevante.

Como se percebe, em casos como esse, não há domínio do resultado por meio da vontade humana. O aumento ou a falta de aumento do risco permitido é a versão simplificada do princípio do incremento do risco, desenvolvido por Roxin, em 1962. Nos termos do preconizado princípio, se a conduta do agente não houver, de alguma forma, aumentado o risco de ocorrência do resultado, este não lhe poderá ser imputado.

Com relação à “esfera de proteção da norma”, Fernando Galvão afirma que "a relevância jurídica que autoriza a imputação objetiva ainda deve ser apurada pelo sentido protetivo de cada tipo incriminador; ou seja, somente haverá responsabilidade quando a conduta afrontar a finalidade protetiva da norma".5 Argumenta também que "existem casos em que o aumento do risco para além dos limites do permitido não acarreta imputação, pois a situação está fora do alcance da norma jurídica incriminadora".6

Um bom exemplo é o caso daquele que atropela alguém de maneira negligente e lhe causa a morte. A mãe da vítima, ao receber a notícia do acidente, começa a chorar e sofre um ataque nervoso e também falece. O que verdadeiramente importa para a solução do caso é perceber que há que se delimitar o fim protetor da norma, de forma a não alargá-lo, mesmo que haja danos secundários. Não se deve, portanto, atribuir as duas mortes àquele que atropelou (morte da vítima do atropelamento e de sua mãe), mas apenas uma (da vítima do atropelamento).

5. CONCLUSÃO

Apesar de as primeiras ideias haverem surgido há milênios, a moderna teoria da imputação objetiva está longe de ser terminada. Ainda há uma grande discussão doutrinária sobre o âmbito e os limites de sua aplicação.

No entanto, é possível notar grandes avanços em relação à teoria finalista adotada atualmente, como o princípio do incremento do risco, o princípio da confiança e a proibição de regresso.

A relação de causalidade é somente a primeira exigência da imputação objetiva, que se completa com a constatação da relevância jurídica da relação existente entre a conduta e o resultado produzido.

De acordo com o que foi exposto, podemos concluir que:

a) a imputação objetiva é uma análise que antecede a imputação subjetiva (dolo e culpa);

b) a imputação objetiva pode dizer respeito ao resultado ou ao comportamento do agente;

e) o termo mais apropriado seria o de teoria da não imputação objetiva, uma vez que a teoria visa evitar a imputação objetiva (do resultado ou do comportamento) do tipo penal a alguém;

d) a teoria da imputação foi criada, inicialmente, para se contrapor aos dogmas da teoria da equivalência, erigindo uma relação de causalidade jurídica ou normativa, ao lado daquela outra de natureza material;

e) verificada a ocorrência de algum dos elementos negativos da imputação objetiva, afasta-se o fato típico;

f) esclarecida a ocorrência dos elementos positivos da imputação objetiva, atribui-se com muito mais precisão o resultado à conduta do agente.

A partir do exposto, defendemos a adoção da teoria da imputação objetiva de forma complementar à teoria finalista, especialmente nos casos em que a relação de causalidade não consegue ser resolvida pelas teorias atualmente adotadas.

Um bom exemplo da adoção bem sucedida da teoria da imputação objetiva é o HC 46.525/MT julgado pelo STJ em 2006, que pode ser lido na íntegra no apêndice.

6. APÊNDICE

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA APLICA A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA NO HABEAS CORPUS Nº 46.525/MT

EMENTA DO HABEAS CORPUS Nº 46.525 - MT (2005/0127885-1)

RELATOR : MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA

IMPETRANTE : DALILA DE OLIVEIRA MATOS

IMPETRADO : PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO MATO GROSSO

PACIENTE : MARCELO ANDRÉ DE MATOS

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . HOMICÍDIO CULPOSO. MORTE POR AFOGAMENTO NA PISCINA. COMISSÃO DE FORMATURA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ACUSAÇÃO GENÉRICA. AUSÊNCIA DE PREVISIBILIDADE, DE NEXO DE CAUSALIDADE E DA CRIAÇÃO DE UM RISCO NÃO PERMITIDO. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA.

1. Afirmar na denúncia que "a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito" não atende

satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, "A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".

2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individualização das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva, não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.

3. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da ingestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação em risco, excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal.

4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, porquanto é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.

5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o princípio da confiança, as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência de previsibilidade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta.

6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido, em relação a todos os denunciados, por força do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal.

RELATÓRIO DO MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA:

Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, com pedido de liminar, impetrado em favor de MARCELO ANDRÉ DE MATOS – denunciado, juntamente com outras pessoas integrantes da Comissão de Formatura do Curso de Medicina da Universidade de Cuiabá (UNIC), pela suposta prática do delito tipificado no art. 121, § 3º, c/c o art. 29, ambos do Código Penal –, impugnando acórdão da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, que denegou a ordem ali impetrada (HC 11.662/2005), nos termos da seguinte ementa (fls. 427/428):

HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO EM CONCURSO DE PESSOAS. AFOGAMENTO. PRETENDIDO TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. PRETEXTADO EXAME APROFUNDADO DE PROVAS. INVIABILIDADE NA VIA ELEITA. DENÚNCIA QUE PREENCHE OS REQUISITOS LEGAIS. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA INDEMONSTRADA. INDÍCIOS DE CULPA IN OMITTENDO QUE AUTORIZAM O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL E EXIGEM FARTA INSTRUÇÃO CRIMINAL, RESPEITADOS O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA.

Impossível a análise aprofundada de provas, no augusto âmbito do habeas corpus , visando o trancamento de ação penal que apura a morte de jovem, por afogamento, em circunstâncias não esclarecidas, em confraternização realizada para número expressivo de pessoas, em que se atribui conduta culposa dos pacientes, membros da comissão organizadora, pela falta dos cuidados e medidas necessárias para festa de tamanha magnitude. Se a denúncia preenche os requisitos legais, descrevendo os indícios da existência de fato típico e antijurídico que possa ter decorrido de conduta culposa dos pacientes, na forma omissiva, não há que se falar em falta de justa causa para o prosseguimento da ação penal, indemonstrada, desde logo, havendo necessidade de apuração dos fatos em instrução criminal segura, observados os princípios do contraditório e da ampla defesa. Writ indeferido.

Sustenta a impetrante, inicialmente, falta de justa causa para a instauração da ação penal, em face da ausência do nexo de causalidade entre a morte da vítima e alguma omissão penalmente relevante que possa ser atribuída ao paciente, sendo os fatos narrados na denúncia caluniosos e tendenciosos, pois alguns jamais ocorreram e outros não condizem com a verdade.

Afirma, também, que "não houve quebra do dever de cuidado por parte do paciente e de seus colegas, notadamente porque, diante das circunstâncias, o evento era imprevisível" (fl. 12), sendo que a profundidade da piscina não apresentava risco para qualquer pessoa adulta, a vítima recebeu os primeiros socorros imediatamente, a dosagem alcoólica em seu sangue não a impediria de ter reação para evitar o afogamento e ela entrou na piscina por livre e espontânea vontade.

Assevera, ainda, que "a condição de simples membro da Comissão de Formatura é insuficiente para impingir ao paciente a condição de acusado, pois seria o estabelecimento de uma culpa em abstrato" (fl. 16), aduzindo que "não há ação imputável objetivamente ao paciente (teoria da imputação objetiva), pois a festa realizada constitui um 'risco juridicamente irrelevante' e, mais que isso, um 'risco permitido', que não tem qualquer nexo com o curso causal que levou ao resultado" (fl. 22).

Alega, por outro lado, que a denúncia é inepta, pois não houve a individualização da participação de cada denunciado, não atendendo, portanto, às exigências do art. 41 do Código de Processo Penal.

Ao final, requer, em sede de liminar, a suspensão da Ação Penal nº 118/2004, com as audiências para interrogatório marcadas para os dias 26 e 27 de setembro de 2005 e, no mérito, o seu trancamento definitivo.

O pedido formulado em sede de cognição sumária foi por mim deferido para suspender o andamento da ação penal em relação a todos os denunciados, membros da referida comissão de formatura, até o julgamento do mérito da presente impetração, dispensadas as informações (fls. 460/461).

O Ministério Público Federal, por meio de parecer exarado pelo Subprocurador-Geral da República DURVAL TADEU GUIMARÃES, opinou pela denegação da ordem (fls. 467/470).

É o relatório.

VOTO DO MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA(Relator)

Busca o Ministério Público a responsabilização criminal dos membros da Comissão de Formatura mencionada no relatório, da qual faz parte o paciente, sob a alegação de que não foram diligentes e não obedeceram às normas de segurança necessárias para a realização da festa de confraternização do Curso de Medicina da Universidade de Cuiabá, onde havia cerca de setecentas pessoas, concorrendo, assim, para o resultado morte da vítima.

Narra a denúncia que:

Há indícios nos autos que revelam que a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito. Sabe-se também que os acusados disponibilizaram para os participantes da festa grande quantidade de bebidas alcoólicas, sem o menor controle, assim como substâncias ilícitas, entorpecentes e psicotrópicas, agindo com imprudência e negligência. Outrossim, também não se preocuparam em obter alvará de autorização, necessário nos casos de realização de eventos de grande magnitude, visto que estavam presentes na festa cerca de 700 pessoas. O crime em comento deve ser enquadrado como crime de homicídio na modalidade culposa, onde todos os representantes da comissão de realização de eventos deram causa ao resultado por imprudência e negligência (art. 18, II, CP).

Inicialmente, penso que a afirmação contida na denúncia de que "a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito", não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, "A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas". Ainda que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individualização das condutas, quando se trata de delitos de autoria coletiva, não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.

Nesse sentido são os seguintes precedentes deste Superior Tribunal:

HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA E FALTA DE JUSTA CAUSA PARCIAIS. OCORRÊNCIA.

1. A denúncia que, em parte, sobre desatender o artigo 41 do Código de Processo Penal, não descrevendo a conduta de cada qual dos denunciados, vem desacompanhada de um mínimo de prova que lhe assegure a viabilidade, autoriza e mesmo determina o julgamento de falta de justa causa para a ação penal.

2. Ordem parcialmente concedida. (HC 37.695/SP, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, Sexta Turma, DJ de 26/9/2005, p. 464)

HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. NULIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA. CARACTERIZAÇÃO.

1. A denúncia, na letra do artigo 41 do Código de Processo Penal, deve conter "a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas."

2. Violado o estatuto legal de sua validade, pela imputação de participação isolada, vaga e indefinida, incluidamente estranha às demais acusações deduzidas, que impede o exercício do direito de defesa constitucionalmente assegurado (Constituição da República, artigo 5º, inciso LV), é de se ter como manifesto o vício que grava a denúncia, compromete o processo e obsta o prosseguimento da ação penal.

3. Ordem concedida. (HC 17.877/PB, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, Sexta Turma, DJ de 10/2/2003, p. 235)

CRIMINAL. HC. PECULATO E CORRUPÇÃO PASSIVA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. DEFICIÊNCIA EVIDENCIADA. LIAME ENTRE O PACIENTE E AS CONDUTAS APONTADAS COMO ILÍCITAS NÃO APONTADO. ORDEM CONCEDIDA.

Não obstante o entendimento de que, na hipótese de concurso de agentes, é prescindível a exata individualização das condutas dos envolvidos, não se pode

aceitar acusação fundada, basicamente, na condição de delegado do paciente, à época dos fatos apurados, sem a indicação de consistente liame entre o paciente e as condutas apontadas como ilícitas. Evidenciando-se o apontado prejuízo à defesa, que se sujeitava a vagas acusações, deve ser reconhecida a inépcia da denúncia no que concerne ao paciente. Ordem concedida para trancar a ação penal em relação ao paciente, por inépcia da denúncia. (HC 16.924/SP, Rel. Min. GILSON DIPP, Quinta Turma, DJ de 22/10/2001, p. 340)

PENAL. PROCESSUAL. AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. "HABEAS CORPUS" CONCEDIDO PELA ORIGEM. EXAME DE FATOS E PROVAS. RECURSO ESPECIAL.

1. É inepta a denúncia que, deixando de descrever a conduta do acusado, bem como os fatos supostamente típicos a ele imputados, inviabiliza o pleno exercício do direito constitucional da ampla defesa.

2. Pretensão de exame de provas estranha ao âmbito do Recurso Especial. Incidência da Súmula 07/STJ.

3. Recurso Especial não conhecido. (REsp 201.259/SP, Rel. Min. EDSON VIDIGAL, Quinta Turma, DJ de 27/8/2001, p. 367)

Por outro lado, nos termos do art. 13 do Código Penal, "o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa", entendendo-se esta como a "ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido". Desse modo, uma vez identificado o resultado, no caso, a morte da vítima, que constitui elemento indispensável à formulação típica do homicídio culposo, é imprescindível relacioná-lo com a ação realizada pelo agente, mediante um vínculo causal, cuja ausência acarreta a impossibilidade de imputação.

Na hipótese dos autos, não restou demonstrada a presença do nexo de causalidade na acusação feita pelo Ministério Público, no sentido de que os denunciados são responsáveis pelo homicídio culposo ocorrido, por não terem sido diligentes, deixando supostamente de obedecer às normas de segurança necessárias para a realização da festa.

A ausência do nexo causal se confirma na assertiva constante da própria denúncia, ao dizer que, "considerando-se a profundidade, altura e o biotipo da vítima, a perícia concluiu também que a piscina não apresentava riscos para uma pessoa em condições normais independentemente de saber ou não nadar, assim como as condições apresentadas pela vítima baseadas na dosagem alcoólica não impediriam a mesma de reagir para evitar o afogamento, concluindo que a mesma afogou-se em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas" (fls. 65/66).

Portanto, infere-se da narração da peça inicial acusatória que houve consentimento do ofendido na ingestão de substâncias psicotrópicas. Em casos tais, ocorre a exclusão da responsabilidade, pois se trata de autocolocação em risco, consoante afirma abalizada doutrina (D'ÁVILA, Fábio Roberto. Crime Culposo e a Teoria da Imputação Objetiva . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 71).

Desse modo, o fato de a vítima ter vindo a óbito em razão da ingestão de substâncias psicotrópicas não tem relação direta com a conduta dos acusados, o que afasta a possibilidade de aplicação da teoria da imputação objetiva.

É oportuno ressaltar as palavras do 2º voto vogal integrante do acórdão (fl.440):

Portanto, nesse aspecto há que se dizer que se a vítima sofreu o acidente porque estava drogada, infelizmente o fez spont própria , não havendo qualquer elemento nos autos que pudesse incriminar ao menos um dos membros daquela infeliz Comissão de Formatura! De se ressaltar ainda que nem mesmo que a vítima estava drogada se pode afirmar, porque a perícia não realizou o exame de urina necessário para se verificar se ela se utilizara ou não de drogas. Eis o laudo pericial: "Em função da falta de um histórico clínico e da coleta de urina (exame de uso de substância psicotrópica) da vítima, não foi possível identificar a causa do afogamento nas condições existentes" (fls. 102). E a culpa de tal exame não ser realizado não é dos pacientes. Nesse aspecto também a conclusão é: se frasco de lança perfume foi encontrado no local, que culpa teria a comissão? Será que se esperaria que os pacientes ficassem na portaria fazendo revista nos convidados para apreender possíveis drogas? É isso que se espera de uma Comissão de Formatura? Com todo o respeito a resposta é não! Então, quem trouxe a droga? Se ao menos uma das testemunhas ouvidas houvesse apontado um membro, pelo menos, da comissão, ainda poderíamos falar de indícios. Mas isso não ocorreu. Então, se a droga foi motivo da morte da vítima, e também isso não se sabe, que nexo de causalidade haveria entre a conduta dos estudantes e o fato em si? Nenhum...

Segundo leciona Damásio de Jesus, "A imputação objetiva requer uma relação direta entre a conduta e o resultado, e que a afetação jurídica se encontre em posição de homogeneidade com o comportamento primitivo, inexistindo quando aquele (evento) vem a ser causado, em fase posterior, pelo próprio sujeito passivo, terceiro ou força da natureza (resultado tardio)" (O risco de tomar uma sopa. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, nº 16, out-nov/2002, p. 11).

No mesmo sentido: ...é necessário precisar se há uma relação de risco entre a conduta e o resultado produzido, i. e., há que se determinar, sob o aspecto normativo, se o risco criado pelo sujeito é o mesmo que se realizou na produção do resultado, ou, em outros termos, se o evento pode ser explicado pela violação da norma de cuidado, uma vez que, se a norma infringida não guarda relação com o resultado, este não é imputável. Se não existe a relação risco-resultado, a questão se resolve em termos de tentativa ou atipicidade. Com outras palavras, é indeclinável a verificação ex post facto se o fim de proteção da norma incriminadora violada tinha realmente a destinação de impedir a produção de um resultado normativo como o provocado pelo agente. O evento jurídico deve ser plasmado pelo risco causado pelo autor. Se produzido por outros riscos, como pela conduta de um terceiro, pela própria vítima ou por força da natureza, há exclusão da imputação objetiva" (DÍAZ, CLAUDIA LÓPEZ. Introducion a la imputación objetiva . Bogotá: Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofia del Derecho, Universidad Externado de Colombia, 1996, p. 49 e 174. Apud JESUS, Damásio de. O risco de tomar uma sopa. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, nº 16, out-nov/2002, p. 11)

Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, uma vez que é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.

Ademais, uma eventual falta de atendimento aos pressupostos necessários para a organização da festa por parte da Comissão de Formatura está fora dos limites do que a doutrina denomina de risco juridicamente relevante, caracterizando um risco permitido, isto é, um risco geral da vida, pois, conforme registrado no primeiro voto vogal, "é fato corriqueiro, de todos sabido, que há uso e abuso de substâncias entorpecentes nas festas promovidas por jovens, inclusive e principalmente no âmbito universitário, em todo o país" (fl. 447).

Portanto, de acordo com Selma Pereira de Santana: ... a tradicional observação da relação causal naturalística passa a constituir o primeiro momento na apuração da imputação objetiva. Uma vez constatado o vínculo causal, o passo seguinte será a verificação da existência de critérios de natureza normativa, consistentes eles na criação ou incremento de um perigo não permitido, que se materializa na lesão a um bem juridicamente tutelado, dentro do alcance do tipo, uma vez que as normas só podem coibir condutas que gerem ou aumentem riscos não permitidos a bens juridicamente tutelados (Atualidades do delito culposo . Boletim IBCCrim, São Paulo, vol. 10, n. 114, p. 6, maio 2002. Apud JESUS, Damásio de. Momento de verificação da presença da imputação objetiva . In Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nº 02, ano 16, fev./2004, p. 37).

Ainda como ensina Claus Roxin:

...a imputação ao tipo objetivo pressupõe que no resultado se tenha realizado precisamente o risco proibido criado pelo autor. Por isso, está excluída a imputação objetiva, em primeiro lugar, se, ainda que o autor tenha criado um perigo para o bem jurídico protegido, o resultado normativo produziu-se, não como efeito desse perigo, mas sim em conexão casual com o mesmo. (Derecho Penal: Parte Geral, v. I, p. 373. Apud JESUS, Damásio de. O risco de tomar uma sopa. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, nº 16, out-nov/2002, p. 11)

Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta também a doutrina que vigora o princípio da confiança, segundo o qual as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, enquanto não existirem pontos de apoio concretos em sentido contrário, os quais não seriam de afirmar-se diante de uma aparência suspeita (pois se trata de um critério vago, passível de aleatórias interpretações), mas só diante de uma reconhecível inclinação para o fato. (ROXIN, Claus. Teoria da Imputação Objetiva . In Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano nº 9, abril-junho de 2002, Ed. Revista dos Tribunais, pp. 11-31, p. 14)

Desse modo, no caso concreto, não poderia a Comissão de Formatura prever o comportamento da vítima, que, conforme consta da própria denúncia, somente veio a afogar-se acidentalmente em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se de forma contrária ao direito, inexistindo indicação na denúncia de que aparentemente isso pudesse ser antevisto.

De outro ângulo, vale destacar a doutrina do já citado professor Claus Roxin, o qual sustenta que só é imputável aquele resultado que pode ser finalmente previsto e dirigido pela vontade. Logo, os resultados que não forem previsíveis ou dirigíveis pela vontade não são típicos. "Equipara-se a possibilidade de domínio através da vontade humana (finalidade objetiva) à criação de um risco juridicamente relevante de lesão típica de um bem jurídico.

Esse aspecto é independente e anterior à aferição do dolo ou da culpa". (Apud PRADO, Luiz Regis. Teoria da Imputação Objetiva do Resultado: Uma Abordagem Crítica . Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 798, abril de 2002, pp. 447/448).

Assim, à luz da citada doutrina, antes e independentemente de se aferir a culpa dos denunciados, constata-se a inexistência de previsibilidade do resultado, o que acarreta a atipicidade da conduta e o conseqüente trancamento da ação penal. A matéria já foi tratada por esta Corte em caso semelhante, assim ementado:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO. AFOGAMENTO. CULPA PRESUMIDA E RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. INEXISTÊNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. RECURSO PROVIDO.

A responsabilidade penal é de caráter subjetivo, impedindo o brocardo nullun crimen sine culpa que se atribua prática de crime a presidente de clube social e esportivo pela morte, por afogamento, de menor que participava de festa privada de associada e mergulhou em piscina funda com outros colegas e com pessoas adultas por perto. Inobservância de eventual disposição regulamentar que não se traduz em causa, mas ocasião do evento lesivo. Recurso provido. (RHC 11.397/SP, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, Quinta Turma, DJ de 29/10/2001, p. 219)

Pelo exposto, concedo a ordem impetrada para trancar a ação penal em relação a todos os denunciados, com base no art. 580 do Código de Processo Penal, em razão da inépcia da denúncia, por fazer acusação sem um mínimo de individualização das condutas dos acusados, bem como em razão da atipicidade da conduta narrada, pela ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação pelos pacientes de um risco não permitido.

É como voto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral, vol I. 17ª ed. Rio de Janeiro: lmpetus, 2015.

MASSON, Cleber Rogério. Direito penal esquematizado – parte geral, vol1. 3ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, Método, 2010.

ROCHA, Fernando A. N. Galvão. Imputação objetiva. 2.ed. rev. amp. atual. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

SILVA, José Geraldo da. Teoria do crime. 4ª ed. Campinas, SP: Millenium Editora, 2010.

Sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça:< www.stj.jus.br >

STJ. HABEAS CORPUS: HC 46525 MT 2005/0127885-1. Relator: Ministro Aranaldo Esteves Lima. DJ 10/04/2006. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200501278851&dt_publicacao=10/04/2006 >. Acesso em: 20 set. 2018.


  1. MASSON, Cleber Rogério. Direito penal esquematizado, p. 209.

  2. ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal, p. 308. Apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – 17ª ed. Rio de Janeiro. P. 295: lmpetus, 2015.

  3. GRECO, Luís. Introdução. ln: ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal, p. 88-89.

  4. ROCHA, Fernando Galvão da. Imputação objetiva, p. 43.

  5. Ibid., p. 55.

  6. Ibid., p. 55.

Sobre o autor
Anselmo Mendes Maranhão Filho

Mestrando pela Unialfa. Pós-graduado em Ciências Criminais. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Tutor cadastrado junto à Escola Judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Oficial de Justiça Avaliador Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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