Murilo de Mello Campos1
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Resumo: Este artigo dedica-se à análise pormenorizada do artigo 25 da Lei Anticorrupção, o qual delineia os contornos do instituto da prescrição. De forma específica, o foco desta análise recai sobre a lacuna normativa no que concerne a definição de quem deve tomar ciência da infração para que o prazo prescricional se inicie.
Contextualização: Existe um amplo debate doutrinário sobre quem é o sujeito que deve tomar ciência da infração e ainda não existe uma posição unânime, ou mesmo razoavelmente pacífica, sobre o tema.
Objetivo: Trazer fundamentos a partir de uma interpretação sistêmica da Lei nº 12.846/2013, para demonstrar que a ciência dos fatos deve emanar de uma autoridade detentora de competências específicas na apuração de responsabilidades de entidades privadas, e que esta seja intrinsecamente ligada ao órgão ou entidade afetada.
Sumário: 1. Introdução. 2. Debate doutrinário sobre o tema. 3. A aplicação da interpretação sistemática. 4. A definição da autoridade competente no PAR. 5. Conclusão.
Introdução
A prescrição representa um conceito fundamental no âmbito do Direito. A definição da prescrição é necessária para a segurança jurídica e a estabilidade das relações sociais. É um instituto jurídico que limita o tempo disponível para exercer um direito e/ou para a aplicação de uma sanção.
A definição do prazo para a prescrição é, a princípio, estabelecida nas legislações específicas, e, quando não estipulado por elas, recorre-se a uma norma geral para defini-lo. Não sendo diferente para a Lei anticorrupção, este conceito foi definido no caput do artigo 25 da Lei nº 12.846/13, com a seguinte redação, a saber:
Art. 25. Prescrevem em 5 (cinco) anos as infrações previstas nesta Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.
Nota-se que o legislador determinou que a contagem do prazo prescricional se inicia no momento em que há a ciência da infração. Todavia, não está estabelecido nesse mesmo artigo, quem deve tomar ciência da infração para que o prazo prescricional se inicie, havendo uma lacuna sobre a sua definição.
Debate doutrinário sobre o tema
Em um breve levantamento sobre o tema, nota-se que a lacuna existente de quem deve tomar ciência da infração foi tratada de modo vaga e imprecisa, sendo propostos os termos Administração pública e Poder público por alguns doutrinadores, a saber:
O termo inicial da contagem desse prazo prescricional será o dia em que a Administração Pública tiver tomado ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que a infração tiver cessado. (SANTOS, BERTONCINI e COSTÓDIO FILHO, 2015, p. 329). (grifo nosso)
Os atos lesivos à Administração Pública previstos na Lei nº 12.846/13 terão sua prescrição em cinco anos, que são contados a partir da ciência da infração pelo Poder Público e, no caso de se cuidar de infração continuada, no dia em que cessou – mas o prazo prescricional será interrompido com a instauração do processo administrativo ou judicial: (grifo nosso)
O Manual de Responsabilização de Entes Privados Controladoria-Geral da União também se revela impreciso nesta matéria. O referido manual aconselha, como medida de cautela, adotar o critério segundo o qual qualquer agente público que tome ciência institucional de infração da Lei nº 12.846/2013 pode desencadear o início do respectivo prazo prescricional.
A priori, tais parâmetros revelam-se inadequados para a delimitação para a ciência da infração, uma vez que a adoção deles poderia acarretar na ineficácia da apuração e, consequentemente, na eventual ausência de responsabilização por atos prejudiciais à Administração Pública.
3. A aplicação da interpretação sistemática
Na interpretação sistemática, “procura compatibilizar as partes entre si e as partes com o todo – é a interpretação do todo pelas partes e das partes pelo todo” (NÓBREGA, J., p. 206). É a busca da coesão e coerência de uma norma, na qual pretende-se harmonizar as partes de um texto com o seu contexto geral.
Por meio da interpretação sistemática, “o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas.” (BARROSO, Luís Roberto, p. 127).
Nesse contexto, avoca-se a aplicação da interpretação sistemática na busca de uma resposta pela ausência da definição no art. 25 da LAC do sujeito responsável pela ciência da infração no âmbito da própria LAC. Assim, recorre-se da hermenêutica jurídica para a compreensão do contexto jurídico da Lei, valendo-se de que:
A pressuposição hermenêutica é a da unidade do sistema jurídico do ordenamento. (...) Portanto, nunca devemos isolar o preceito nem em seu contexto (a lei em tela, o código penal, civil etc.) e muito menos em sua concatenação imediata (nunca leia só um artigo, leia também os parágrafos e os demais artigos). (FERRAZ JR., pp. 244 e 245)
Neste esforço, realizou-se um levantamento dos termos “autoridade competente” e “autoridades competentes” na LAC, com o objetivo de identificar outros artigos que tenham correlação com o tema.
Como resultado do levantamento, apurou-se a presença dos termos pesquisados nos artigos 20 e 27 da Lei nº 12.846/13, conforme segue:
Art. 20. Nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, poderão ser aplicadas as sanções previstas no art. 6º, sem prejuízo daquelas previstas neste Capítulo, desde que constatada a omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa. (grifo nosso)
(...)
Art. 27. A autoridade competente que, tendo conhecimento das infrações previstas nesta Lei, não adotar providências para a apuração dos fatos será responsabilizada penal, civil e administrativamente nos termos da legislação específica aplicável. (grifo nosso)
Considerando estes dois momentos, nota-se que o legislador definiu que a omissão na propositura de uma ação de responsabilização administrativa ocorre por meio de uma autoridade competente e que esta autoridade competente, tendo conhecimento das infrações e não adotando providências para a apuração dos fatos, será responsabilizada penal, civil e administrativamente.
Reportando à dúvida suscita nesta discussão, que se relaciona em definir “quem deve tomar ciência da infração para que o prazo prescricional se inicie”, estes artigos citados nos propicia um direcionamento à questão.
Pois, ao ficar evidente que uma autoridade devidamente competente para a apuração de fatos responde pela omissão na falta de iniciativa de uma ação de responsabilidade de entes privados, utilizando-se da interpretação sistêmica, deve-se reconhecer a necessidade de haver uma autoridade igualmente competente para preencher a lacuna existente na LAC sobre o instituto da prescrição.
4. A definição da autoridade competente no PAR
Como mencionado no início deste texto, a prescrição é um instituto jurídico que limita o tempo disponível para o exercício de um direito subjetivo que foi violado. Esse direito vem à tona com o cometimento de atos lesivos que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, conforme estabelecido no art. 5º da Lei nº 12.846/13.
Neste contexto, a Administração Pública é a titular do direito, a qual exerce o seu papel na deflagração de um processo, por meio de um agente público, cuja competência é determinada no art. 8º da Lei nº 12.846/13, cuja redação aponta-se a seguir:
Art. 8º A instauração e o julgamento de processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica cabem à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou mediante provocação, observados o contraditório e a ampla defesa. (grifo nosso)
Na redação apresentada, destacou-se não somente a definição da autoridade incumbida de instaurar e de julgar processos administrativos, bem como a imprescindível vinculação desta autoridade com a entidade lesada pelos atos ilícitos perpetrados.
Em outras palavras, compete a autoridade do respectivo órgão ou entidade que sofreu lesão ao patrimônio público agir de ofício ou mediante provocação. Na regulação da Lei nº 12.846/13, emergiu o Decreto nº 11.129/2022, que adicionalmente especificou uma gama mais ampla de agentes dotados de competência para proceder à apuração conforme determinado na referida lei.
Nesse ínterim, aponta-se que o titular da Corregedoria ou da unidade competente deve assumir um papel decisivo na deflagração de processo apuratório do PAR, a saber:
Art. 3º O titular da corregedoria da entidade ou da unidade competente, ao tomar ciência da possível ocorrência de ato lesivo à administração pública federal, em sede de juízo de admissibilidade e mediante despacho fundamentado, decidirá:
I - pela abertura de investigação preliminar;
II - pela recomendação de instauração de PAR; ou
III - pela recomendação de arquivamento da matéria.
Nesse contexto, o termo ‘competente’ é reiterado pelo legislador, ao estabelecer a competência deste tipo de processo à Corregedoria ou à unidade com competência para o desempenho das atribuições correlatas. Assim, o legislador destaca a importância da delimitação da competência para a matéria de apuração de processo administrativo de responsabilização.
Nesta exegese, o legislador enfatiza a presença incontestável de autoridade ou unidade competente, afastando a possibilidade de que as diretrizes estabelecidas para o instituto da prescrição, conforme delineado na Lei nº 12.846/13, sejam caracterizadas por uma definição vaga ou imprecisa. Contrapõe-se, assim, ao critério de que qualquer agente público que tome ciência institucional de infração da Lei nº 12.846/2013 provocaria o início do respectivo prazo prescricional.
5. Conclusão
Sob a ótica da interpretação sistêmica, na qual se postula que a legislação constitui um corpus integrado e que cada dispositivo deve ser analisado em seu contexto global visando a congruência e a harmonia do ordenamento jurídico, deduz-se que a ciência dos fatos deve emanar de uma autoridade detentora de competência específica na apuração de responsabilidades de entidades privadas, e que esta seja intrinsecamente ligada ao órgão ou entidade afetada.
Desse modo, sugere-se que a ciência dos fatos deve advir de autoridade competente em corregedoria ou pela unidade com atribuições equivalente para o desempenho das apurações no processo administrativo de responsabilização - PAR, não sendo adequada a solução da ciência institucional de qualquer servidor público.
Referências bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, p.127.
BRASIL. Controladoria-Geral da União. Manual de Responsabilização de Entes Privados. Versão de maio de 2020. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/68182 . Último acesso em 15/01/2024.
BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 ago. 2013. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm.
BRASIL. Decreto nº 11.129, de 11 de julho de 2022. Regulamenta a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jul. 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/d11129.htm.
DAL POZZO, Antonio Araldo Ferraz; et al. Lei Anticorrupção: apontamentos sobre a Lei nº 12.846/2013. 1ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 10ª edição. São Paulo: Atlas, 2017.
NÓBREGA, J. Flóscolo da. Introdução ao direito. 3. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1965. 237 p.
SANTOS, José Anacleto Abduch; BERTONCINI, Mateus; COSTÓDIO FILHO, Ubirajara. Comentários à Lei 12.846/2013: Lei Anticorrupção. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
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Corregedor do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços - MDIC.
Auditor Federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU) desde o ano de 2006.︎