Comprar um carro usado no Brasil é mais que um desafio... ...é uma aventura!
Antigamente, comprar um carro era uma tarefa até que fácil, pois, basicamente, os itens observados para a compra de um carro eram o Motor, Cambio, Carroceria e Acessórios. No entanto, muito mudou desde então. Escolher o carro pelo Motor, por exemplo, passou a ser uma tarefa complicada, pois com a enxurrada de importados no mercado, muitos carros possuem motor fabricado por outras montadoras e, quando se trata de cambio, a situação é ainda pior, pois a atual diversidade de fabricantes de câmbios (Manual, Automatizado, Semi-Automático, etc.) torna a tarefa de manutenção e troca uma verdadeira odisseia. Se considerarmos ainda a quantidade de tecnologia singular que são embarcadas por cada montadora, verificar o estado antes da compra é uma tarefa para poucos.
Hoje, comprar um carro usado passou a ser um dilema. O quesito “garantia”, por exemplo, varia dependendo da modalidade de compra: De Pessoa Física (entre particulares) ou Jurídica (de concessionaria). O Código de Defesa do Consumidor (CDC) só estabelece a garantia nas relações de consumo, ou seja, entre particular e loja ou comercio. Em outras palavras, a menos que haja um acordo específico ou cláusula contratual entre particulares que estabeleça o contrário, ao adquirir um veículo usado de um vendedor particular, o comprador assume a responsabilidade pelo estado em que se encontra o veículo, sem qualquer garantia aplicável do Código de Defesa do Consumidor. Por isso, se alguém pretende comprar um veículo de um particular, deve tomar muito cuidado para não comprar um veículo com problemas ocultos.
Já com relação as relações de consumo entre particulares e lojistas, a situação da garantia é bem diferente. A abrangência desta garantia deve englobar a parte elétrica, suspensão, seus componentes e quaisquer problemas que surjam no veículo dentro do período de 90 (noventa) dias a partir da data de entrega ao comprador. Essa obrigação está expressa no artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Imagem: JusBrasil - https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10604414/artigo-26-da-lei-n-8078-de-11-de-setembro-de-1990
No entanto, as empresas que comercializam carros usados insistem em afirmar que a garantia se refere apenas a motor e câmbio, inclusive criando clausulas em contratos de compra e venda obrigando ao comprador a renunciar por qualquer outra garantia além das mencionadas. Tal clausula deve ser desconsiderada, pois é nula, ou seja, sem efeito.
Mas comprar um veículo usado de um lojista seria melhor do que comprar de um particular, certo? Bom, deveria ser, mas a verdade é que comprar de um particular ou uma concessionaria de carros usados tem suas vantagens e desvantagens. Vamos a elas:
Veículos de lojas - Vantagens
Garantia de 90 dias
Veículos revisados antes da venda
Veículos de lojas - Desvantagens
Falta de histórico do carro (você não está em contato com o último dono)
Veículos de particulares - Vantagens
Possibilidade de obter informações mais detalhadas das manutenções do veículo
Alguns donos revisam o carro antes da venda
Veículos de particulares - Desvantagens
CDC não contempla venda entre particulares, mas nada impede que as partes estabeleçam um contrato de compra e venda que ofereça as mesmas garantias do CDC ou, pelo menos, uma cláusula de arrependimento com prazo de validade, que dê tempo suficiente para o comprador avaliar o veículo em seus detalhes.
No entanto, muitos lojistas insistem em oferecer garantia de 90 dias só para motor e cambio e se negam ou dificultam em muito resolver qualquer outro problema que não esteja relacionado a essas duas partes. Além disso, a tal “revisão” da concessionaria é mais que duvidosa, pois não há laudo ou checklist indicando o que foi devidamente feito nesta “dita” revisão. Pastilhas de freios gastas, óleo do motor vencido, óleo do sistema de cambio não revisado, amortecedores no final de vida útil, bombas (água, óleo, combustível) ruins, filtros vencidos, velas no final de vida, bobinas no final de vida, sensores com problemas, módulos com problemas e, a cereja do bolo, air bag não substituído e sensor air bag ausente ou comprometido. Tudo isso, e muito mais, deveriam fazer parte da revisão automotiva das concessionárias, mas poucas o fazem. Com isso, levar o veículo à um mecânico de confiança é essencial quando se adquire um veículo usado, mas a realidade é que encaixar as palavras “Mecânico” e “Confiança” em uma mesma frase é quase que impossível.
E qual é o papel do nosso governo nisso tudo? Quase nenhum.
Ora, para comprar um medicamento o estabelecimento necessita ter um profissional “farmacêutico” que ateste a segurança daquela transação, certo? E se pensarmos nos medicamentos controlados, as farmácias são obrigadas a reter a receita médica, por determinação da ANVISA. Tudo isso acontece para garantir a saúde da população.
As estatísticas não mentem. Entre janeiro e agosto de 2022 mais de 1700 veículos causaram mortes por falta de manutenção. É um número absurdo que, se pensarmos nas mortes em cada um desses 1700 acidentes em apenas 8 meses, seriam no mínimo mais de 212 mortes por mês, ou mais de 7 mortes por dia. E este número pode ser ainda maior, se considerarmos que muitos acidentes fatais nesta categoria não foram devidamente registrados.
O ponto é que pagamos um IPVA altíssimo. Em São Paulo, por exemplo, a taxa é de 4% do valor venal do veículo. Se considerarmos que o carro brasileiro é um dos mais caros do mundo, o nosso imposto acompanha tal discrepância. Acontece que pouco se faz com o IPVA do Estado de São Paulo, pois a maioria das rodovias são privatizadas e tem pedágios exorbitantes. Para se ter uma ideia, em 2023, a frota tributável paulista era composta de 17,5 milhões de veículos, gerando uma receita aos cofres do governo do estado de R$ 20,7 bilhões de reais, com um IPVA médio de R$ 1182,86 para cada veículo tributável em 2023. Conforme a Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, “A Receita do IPVA, depois de deduzidas outras destinações instituídas por lei federal, é partilhada entre o Estado (50 %) e o Município (50 %) onde o proprietário do veículo tiver domicílio ou residência, e destina-se ao financiamento dos serviços básicos de que a população necessita: saúde, educação, segurança, transporte, etc.”.
Saúde e Segurança são dois dos serviços básicos que o IPVA compreende, mas e os 1700 acidentes de trânsito por falta de manutenção veicular? No que o IPVA contribuiu para que essas mortes pudessem ser evitadas? A resposta é NADA!
O fato é que o governo, desde a abertura de mercado que permitiu a vinda de importados e tecnologias, simplesmente negligência a questão da Saúde e Segurança da frota de usados que circula pelo país, que podem causar acidentes fatais a condutores, passageiros e transeuntes envolvidos no infeliz acaso, gerando perdas imensuráveis para familiares, além de custos e despesas para particulares, empresas e até mesmo para o próprio governo. O governo se restringe a criar leis como a dos extintores ABC e da caixa de primeiros socorros, mas todas elas com o intuito de (arrecadar) multar o “infrator” que não seguir essas regras. Por obvio, tais regras, por serem infundadas, caíram no desuso e, por fim, foram revogadas.
Já para carros novos, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) está bem atento. Para 2024 novos itens de segurança foram adicionados como “Obrigatórios” para os veículos a serem comercializados, mas nada se pensa em relação à manutenção da frota existente, deixando na mão de Mecânicos esta tarefa, mecânicos estes que possuem as mais diversas formações (???) e, muitos até, sem qualquer tipo de formação acadêmica ou técnica que os profissionalize de fato. Mecânico, hoje em dia, é praticamente o mesmo que os “Dentistas Práticos” de antigamente. Existe a formação, a especialização técnica, mas nada disso é exigido para que um mecânico automotivo possa trabalhar.
Basicamente conhecemos um bom mecânico, ou por experiencias anteriores, ou por indicação de amigos, familiares ou conhecidos. Nenhum aperfeiçoamento técnico é exigido para que uma oficina mecânica seja aberta. Muitas dessas oficinas (Carinhosamente autointituladas de Auto-Center’s ou Centro Automotivo) contrata jovens sem qualquer experiencia automotiva (ou experiencia alguma) que, sob a orientação mínima de um “mecânico prático” e um salário pífio, querem aprender na pratica uma profissão e, para isso, usam o “seu carro” como cobaia para aprendizado (e o seu bolso para pagar).
O ramo de Farmácias entendeu que simples balconistas precisam ser supervisionados por alguém graduado naquela especialidade. Tal entendimento acabou com o “Farmacêutico Prático”, que prescrevia remédios para a população se “Automedicar” sob risco de danos à saúde e até morte. Hoje, para ser um Dentista, precisa-se profissionalizar através da graduação específica. Uma pessoa que atua como “Dentista Prático” pode ser indiciado e até preso por “Exercício ilegal da Medicina”.
Farmacêuticos lidam com vidas e, por isso, Farmácias foram readequadas. Dentistas e Médicos lidam com vidas e são regulados pelo CRM além do governo criar leis que criminalizam eventuais desvios. Mecânicos automotivos lidam com instrumentos que podem, em caso de falhas, causar danos à saúde (inclusive financeira) de um ou vários e, até mesmo, tirar vidas inocentes e, no entanto, nada se faz a respeito. Isso precisa mudar.
Oficinas mecânicas “deveriam” estar sob supervisão de um “Engenheiro Mecânico Automotivo” formado, regulado e supervisionado pelo CREA que possa, a cada serviço técnico, por menor que seja, emitir uma ART (Anotação de Responsabilidade Técnica) referente ao serviço prestado, mesmo que seja para uma simples troca de lâmpada. Mas até Lâmpadas? Sim! Uma lâmpada, em um carro, pode salvar vidas. Lâmpadas de freio e neblina impedem colisões. Lâmpadas advertência sinalizam e ajudam a impedir acidentes. Faróis auxiliam a condução do veículo e visualização dos outros, Lâmpadas de painéis são extremamente necessárias para o monitoramento do estado do veículo prevenindo falhas e possíveis acidentes.
Mas como tudo isso se relaciona com a frota de usados e sua comercialização? Cada um dos 17,5 milhões de veículos da frota de São Paulo, por exemplo, se não calibrada e verificada devidamente, pode causar acidentes e até tirar vidas, mas na venda de qualquer um desses veículos, seja por particular ou lojista, não há preocupação com este fato.
Deveria existir uma lei que obriga a todas as oficinas mecânicas a serem supervisionadas por um Engenheiro Mecânico Automotivo, com especialização nas tecnologias referentes ao tipo de veículo e suas tecnologias para que seus itens possam ser revisados e substituídos com eficiência. Para cada venda de um veículo usado, dentro da garantia de fábrica, deveria ser exigida uma ART emitida pela concessionaria do fabricante e assinada por um Engenheiro Mecânico Automotivo apontando todos os itens revisados e substituídos. Para cada venda de veículo usado fora da garantia de fábrica deveria ser exigida uma ART emitida por uma oficina mecânica, assinado por um Engenheiro Mecânico Automotivo apontando todos os itens revisados e substituídos. A cada ano, para a liberação do Certificado de Licenciamento Anual Veicular, o Detran de cada estado deveria exigir tal ART de forma padronizada. Isso permitia ao governo (e ao contribuinte) saber o real estado de conservação da frota no país e obter o histórico detalhado de um veículo antes da compra.
Tal lei favoreceria as universidades, aumentando o quórum dos cursos de Engenharia Mecânica e a especialização em Mecânica Automotiva, aumentaria consideravelmente a atuação do CREA de cada região, diminuiria drasticamente as fatalidades por falta de manutenção dos veículos, além de oferecer muito mais confiança e transparência para os consumidores de veículos usados (maior frota do país), possibilitando a eles obter um histórico detalhado de todas as manutenções feitas no veículo ao longo dos anos, o que permitiria a qualquer consumidor criar planos de manutenção programada para seus veículos sua segurança e, exponencialmente, este mercado tão deficitário no Brasil. Toda essa base de informações poderia ser gerida pelos DETRANs regionais, armazenada em uma base federal. Assim, veículos que migrassem de estado ainda assim poderiam ser consultados.
No entanto, sem essa regulamentação, sem base de informações históricas do veículo, comprar um carro usado é mais que um desafio, é praticamente um jogo de azar. Pode-se até tentar mitigar ao máximo, mas comprar um carro que outra pessoa usou por anos é comprar os efeitos da história de outra pessoa sem saber o que aconteceu naquela história e, sem saber o que houve, fica difícil se prevenir do que haverá em seguida.