Introdução
O processo é um instrumento de realização do direito, que visa a solucionar os conflitos de interesses que surgem na sociedade, de forma pacífica, justa e efetiva. Para tanto, o processo deve ser regido por princípios que orientem a sua estrutura, o seu funcionamento e os seus objetivos, garantindo a observância dos direitos e garantias fundamentais das partes envolvidas.
O princípio do devido processo legal é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, que garante a todos o direito a um processo justo, evitando abusos de poder, assegurando decisões baseadas em fatos e direito, e protegendo os direitos fundamentais. Esse princípio está previsto no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988, que dispõe que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O devido processo legal abrange tanto o aspecto formal, que se refere ao cumprimento das normas processuais, quanto o aspecto material, que se refere à observância dos valores e princípios constitucionais.
Um dos princípios constitucionais que se relaciona com o devido processo legal é o princípio da cooperação processual, que impõe aos sujeitos do processo o dever de colaborar entre si, de forma leal, ética e solidária, para que se obtenha uma decisão de mérito justa e efetiva, em tempo razoável. Esse princípio foi expressamente consagrado pelo Código de Processo Civil de 2015, no seu art. 6º, como uma forma de tornar ainda mais concreta a previsão do devido processo legal na Constituição. Segundo Alvim (2012, p. 64), o princípio da cooperação processual “é uma decorrência do devido processo legal, que exige a participação ativa e equilibrada das partes e do juiz na condução do processo, visando a alcançar a melhor solução para o conflito”.
Esse princípio decorre do modelo cooperativo de processo, que valoriza o diálogo, a participação e a interação entre as partes e o juiz, superando os modelos clássicos dispositivo e inquisitivo, que privilegiam a passividade ou a parcialidade do magistrado. O princípio da cooperação processual representa, assim, um novo paradigma de atuação dos sujeitos do processo, que devem agir de forma conjunta e coordenada, buscando a solução adequada e pacífica do conflito.
O princípio da cooperação processual no processo civil
O princípio da cooperação processual está expressamente previsto no artigo 6º do Código de Processo Civil, que dispõe que "todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva". Esse princípio também pode ser extraído de outros dispositivos do CPC, que estabelecem deveres e faculdades de cooperação para as partes, para o juiz e para os terceiros que intervêm no processo.
A cooperação processual implica em um dever de auxílio e colaboração por parte do juiz, que não deve se limitar a uma postura passiva ou meramente formal, mas deve atuar como um agente facilitador da solução do conflito, orientando as partes, esclarecendo dúvidas, prevenindo nulidades, saneando vícios, suprindo deficiências, indicando provas, promovendo a conciliação e a mediação, e, em suma, conduzindo o processo de forma a garantir a efetividade da tutela jurisdicional.
Nesse sentido, o juiz deve adotar uma postura mais colaborativa no que se refere à pesquisa de bens do devedor, especialmente quando se trata de bens móveis ou imóveis, ou mesmo quantias financeiras depositadas em instituições financeiras, que muitas vezes são de difícil localização ou constrição. Essa atitude do juiz não viola o princípio da imparcialidade, mas sim o concretiza, pois visa a assegurar a igualdade substancial entre as partes e a satisfação do crédito reconhecido em juízo.
Para tanto, o juiz pode utilizar os meios eletrônicos disponíveis, como o sistema Bacenjud, o sistema Renajud, o sistema Infojud, o sistema Arisp, entre outros, que permitem a consulta e o bloqueio de bens do devedor, de forma rápida e eficiente. Além disso, o juiz pode determinar a expedição de ofícios, requisições, mandados ou cartas precatórias, para obter informações ou providências de outros órgãos ou autoridades, como cartórios, Detran, Receita Federal, INSS, etc. O juiz pode, ainda, solicitar a colaboração de outros juízes, conforme previsto no artigo 7º do CPC, quando os casos forem conexos ou houver risco de decisões conflitantes.
Um dos aspectos mais relevantes do princípio da cooperação processual é a sua relação com o princípio da imparcialidade do juiz, que não deve ser entendido como uma mera neutralidade ou indiferença, mas como uma postura ativa e equilibrada, que busca a realização do direito material das partes. Nesse sentido, Medeiros Neto e Machado (2016, p. 180) afirmam que:
> A imparcialidade do juiz não se confunde com a neutralidade, pois esta última significa a ausência de interferência do juiz no processo, enquanto a imparcialidade significa a ausência de interesse do juiz no resultado do processo. O juiz imparcial não é aquele que se mantém inerte, mas sim aquele que atua de forma equidistante das partes, sem favorecer ou prejudicar nenhuma delas.
Portanto, o juiz que coopera com as partes, orientando-as, esclarecendo-as, indicando-lhes provas, etc., não está violando a sua imparcialidade, mas sim exercendo-a de forma adequada ao modelo cooperativo de processo.
O princípio da cooperação processual no processo penal
O princípio da cooperação processual, que orienta o novo Código de Processo Civil, pode ser aplicado, de forma supletiva e subsidiária, ao processo penal, sempre que houver compatibilidade com os princípios e garantias constitucionais que regem a matéria penal. Essa possibilidade está prevista no artigo 3º do Código de Processo Penal, que autoriza o uso da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito para suprir as lacunas da lei penal.
A aplicação desse princípio ao processo penal pode contribuir para a realização do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da busca da verdade real, da efetividade da tutela jurisdicional e da pacificação social. O juiz, nesse contexto, deve atuar como um facilitador da solução do conflito, orientando as partes, esclarecendo dúvidas, prevenindo nulidades, saneando vícios, suprindo deficiências, indicando provas, promovendo a conciliação e a mediação, e conduzindo o processo de forma democrática e dialógica.
Existem diversas situações em que as normas do CPC podem ser aplicadas de forma subsidiária ao CPP, sempre que houver compatibilidade com os princípios e garantias constitucionais do processo penal. Por exemplo:
- A suspensão do processo por convenção das partes, quando houver acordo de não persecução penal, nos termos do artigo 28-A do CPP, que visa a evitar o ajuizamento de ações penais desnecessárias ou desproporcionais; (1)
- A intervenção de amicus curiae, quando houver relevância da matéria, especificidade do tema ou repercussão social da controvérsia, que visa a ampliar o debate e a fundamentação das decisões, bem como a legitimidade democrática do processo; (2)
- A realização de audiência de conciliação ou mediação, quando se tratar de infrações penais de menor potencial ofensivo, que admitem a transação penal ou a composição civil dos danos, que visa a promover a solução consensual e pacífica do conflito; (3)
- A citação por hora certa, quando o réu se oculta para não ser citado, que visa a garantir a efetividade da citação e a regularidade do processo, evitando a nulidade por falta de citação válida, nos termos do art. 362 do Código de Processo Penal, que remete aos artigos 252 a 254 do Código de Processo Civil;
- A imposição de multa ao terceiro que descumprir ordem judicial de exibição de documento ou de prestação de informação, que visa a conferir efetividade à decisão judicial e a assegurar a produção de provas relevantes para o deslinde da causa. (4)
Esses são alguns exemplos de aplicação subsidiária do CPC ao CPP, que demonstram a interação e a complementaridade entre os dois diplomas legais, em busca de uma maior efetividade, celeridade e justiça do processo.
Conclusão
Diante do exposto, pode-se concluir que o princípio da cooperação processual, que orienta o novo Código de Processo Civil, pode e deve ser aplicado, de forma supletiva e subsidiária, ao processo penal, sempre que houver compatibilidade com os princípios e garantias constitucionais que regem a matéria penal, e que visem a assegurar a justiça, a efetividade e a celeridade do processo.
Assim, o processo penal pode se beneficiar das inovações e dos avanços trazidos pelo CPC, sem prejuízo dos direitos e garantias fundamentais do acusado e da sociedade. A cooperação processual, nesse contexto, representa um novo paradigma de atuação dos sujeitos do processo, que devem colaborar entre si, de forma leal, ética e solidária, para que se obtenha uma decisão de mérito justa e efetiva, em tempo razoável.
Para aprofundar o estudo sobre o tema, recomenda-se a leitura dos seguintes autores:
- MEDEIROS NETO, Elias Marques de; MACHADO, Pedro Antonio de Oliveira. Princípio da cooperação no processo civil. Revista Thesis Juris, v. 5, n. 1, p. 163-191, 2016.
- PINHEIRO PEREIRA, Caio André Maciel; PINHEIRO BARROS, Flávio Maciel. A cooperação processual e o paradigma procedimental da argumentação jurídica no código de processo civil. Revista FIDES, v. 12, n. 1, p. 528-547, 2021.
- THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 57. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 130-131.
- ALVIM, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; CARDOSO, David Pereira. Aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao processo penal - O terceiro e a multa aplicada pelo descumprimento de ordem judicial. Migalhas, 29 de agosto de 2023.
- SILVEIRA, Laís Menna Barreto de Azevedo. Aplicação do novo Código de Processo Civil ao processo penal. Consultor Jurídico, 29 de maio de 2018.
(1) https://www.conjur.com.br/2018-mai-29/lais-silveira-aplicacao-cpc-processo-penal/, acesso em 3/2/24
(2) https://www.migalhas.com.br/coluna/questao-de-direito/392589/aplicacao-subsidiaria-do-cpc-no-ambito-do-processo-penal, acesso em 3/2/24
(3) https://www.conjur.com.br/2018-mai-29/lais-silveira-aplicacao-cpc-processo-penal/, acesso em 3/2/24
(4) https://www.jusbrasil.com.br/noticias/quais-os-requisitos-da-citacao-por-hora-certa-no-processo-penal-aurea-maria-ferraz-de-sousa/2550427, acesso em 3/2/24