O consumidor superendividado e sua proteção legal

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RESUMO: O superendividamento é um desafio cada vez maior no cenário nacional que afeta substancialmente uma parcela significativa da população brasileira. Os dados revelam que, em 2023, cerca de 77,9% dos cidadãos do país já iniciaram o ano endividados, um fenômeno muitas vezes atribuído ao hiperconsumismo e a uma notória falta de conhecimento financeiro. Este fenômeno social, caracterizado pela incapacidade do devedor de pagar as suas obrigações de consumo de forma viável e sem afetar sua subsistência, tem efeitos significativamente adversos na qualidade de vida e na economia no geral. Com a promulgação da Lei n.º 14.181/2021, iniciativas voltadas para o aprimoramento da regulação do crédito e o combate ao superendividamento foram introduzidas, trazendo proteção ao consumidor, com foco em direitos fundamentais como o acesso à informação, a educação financeira e a dignidade humana. Recentemente, o governo federal anunciou medidas destinadas a aumentar o mínimo existencial e a introduzir esforços de renegociação de dívidas para proteger bens básicos e a dignidade do consumidor. Este estudo mostra que a proteção jurídica dos consumidores superendividados e a garantia de um mínimo de subsistência são de suma importância para a preservação dos seus direitos e dignidade. Embora o atual ordenamento jurídico forneça orientações essenciais, é fundamental garantir a eficácia da prevenção e do tratamento do superendividamento, de forma a garantir a qualidade de vida e o respeito pelos direitos fundamentais dos consumidores.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Processual Civil; Superendividamento; Mínimo Existencial; Código do Consumidor.

INTRODUÇÃO

O superendividamento é um fenômeno de importância crescente no contexto socioeconômico contemporâneo que vai além das simples questões de dívida financeira. Muitas pessoas se encontram fazendo a difícil escolha entre satisfazer necessidades básicas como alimentação, habitação e cuidados de saúde ou cumprir as suas obrigações financeiras. Este dilema não é apenas uma crise pessoal, mas também um desafio social que merece atenção e discussão aprofundadas.

Em um primeiro momento, precisamos compreender o contexto social do ato de consumir e explicar porque este comportamento do consumidor é um comportamento inato de todos. No entanto, também se revelará que o consumo excessivo trará os danos do superendividamento, um malefício que gera significativo impacto e traz a necessidade de discussão do tema.

Logo, conceituaremos o superendividamento como a incapacidade de uma pessoa singular de pagar, de boa-fé, todas as dívidas de consumo atuais e futuras sem comprometer as suas necessidades básicas de sobrevivência. Neste caso, a dívida torna-se impagável, forçando as pessoas a uma situação desesperadora que as leva a escolher entre pagar os seus credores ou sustentar as suas famílias.

Posteriormente, discutiremos as causas do superendividamento, incluindo o hiperconsumo, o excesso de oferta de crédito e a falta de educação financeira, bem como as emergências e a forma como a combinação destes fatores realça o impacto deste problema social, porque quando as pessoas estão superendividadas, são essencialmente excluídas do mercado de consumo, seu poder de compra diminui e eles não conseguem fazer novos investimentos.

Além disso, o trabalho dará destaque ao “Mínimo Existencial” – valor necessário para garantir que os indivíduos e suas famílias possam manter uma vida digna, cobrindo necessidades como água, luz, alimentação, saúde, educação e transporte. Enfatizando o quão importante é proteger este direito para que as pessoas possam satisfazer as suas necessidades básicas. O Decreto nº 11.567, estabelece a renda mínima essencial para uma pessoa natural em R$ 600,00. Sendo esse um passo crucial para garantir que as pessoas tenham um apoio financeiro para manter sua dignidade e prover suas famílias.

Por fim, vem à tona a recente Lei nº 14.181/21, que tem desempenhado importante papel no combate ao superendividamento, uma vez que incentiva as pessoas a avaliarem a sua situação financeira, procurarem a divulgação completa da dívida, analisarem e verificarem a probabilidade de reembolso e identificarem empréstimos abusivos e taxas de juro injustas. Defende a criação de planos de pagamento com base no que as pessoas podem pagar, tendo em conta os seus rendimentos, dívidas e despesas essenciais, elaborando um plano de pagamento que mantenha o seu mínimo existencial.

Em suma, o superendividamento é um problema urgente que afeta não apenas os indivíduos, mas a sociedade como um todo. Devemos continuar a nos sensibilizar a respeito desta questão, aperfeiçoar os quadros jurídicos existentes e promover a educação financeira como uma ferramenta fundamental para aliviar e prevenir esse abismo financeiro.

2. SUPERENDIVIDAMENTO: CONTEXTO SOCIAL, CONCEITO E IMPORTÂNCIA DO TEMA

2.1. Contexto Social

Inicialmente, é necessário explanar que o comportamento de consumo é inerente a todos os seres humanos e pode ser compreendido a partir de perspectivas antropológicas, econômicas e sociológicas. Contudo, deve-se enfatizar que a sociedade contemporânea direciona os seres humanos e as relações de produção para o consumo de maneiras drásticas e complexas, o que pode acarretar no superendividamento.

Do ponto de vista antropológico, o consumo tem raízes profundas em nossa natureza. Para o sociólogo Polonês Zygmunt Bauman (2008) “o consumo é uma condição e um aspecto permanente e irremovível, sem limites temporais ou históricos; um elemento inseparável da sobrevivência biológica que nós humanos compartilhamos com todos os outros organismos”.

O consumo é, portanto, entendido como um ato intrínseco da existência, considerando que o ser humano satisfaz suas necessidades básicas por meio da aquisição de alimentos, roupas e abrigo. Porém, a sociedade de consumo estende essa relação para além das necessidades básicas, fazendo com que o comportamento de consumo não seja mais apenas uma ação prática, mas uma forma de se expressar e de se conectar com os outros.

Do ponto de vista econômico, o consumo tornou-se o grande motor da economia moderna. A procura de bens e serviços impulsiona a produção em grande escala, cria empregos e promove o crescimento econômico, estimulando o desenvolvimento de uma sociedade de consumo. Porém, de acordo com Bauman (2008), essa sociedade de consumo “representa o tipo de sociedade que impele, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas”.

Por fim, o impacto nas relações interpessoais e sociais entende que o consumo não é mais um simples comportamento pessoal, mas sim um comportamento social. Muitas vezes as pessoas se avaliam com base em seus próprios posicionamentos e escolhas de consumo. O antropólogo Heitor Frúgoli Jr. entende o consumo como parte do processo identitário e entrelaça o consumo como fator na construção do indivíduo.

“A ideia de um consumo no plano simbólico implica atrelar aos significados da compra de certos bens ou serviços (no caso, especialmente aqueles destinados ao reforço da construção de certas identidades sociais por meio do vestuário, de preparos corporais, de bens culturais, etc.).” (FRÚGOLI JÚNIOR, 2008)

Esse comportamento de consumo, por mais que natural do ser, pode levar à busca incessante por status e pertencimento através de bens materiais, resultando em uma sociedade onde as relações são muitas vezes mediadas pelo consumo, o que, por fim, leva ao consumo desenfreado e um superendividamento, tema central deste trabalho.

2.2. Conceito de Superendividamento

O Superendividamento é um conceito financeiro que se refere a um indivíduo que tem tantas dívidas que é quase impossível pagá-las com os recursos financeiros existentes, sem afetar a sua subsistência.

A mestre Cláudia Lima Marques (2010) caracteriza o fenômeno como "impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos) em um tempo razoável com sua capacidade atual de rendas e patrimônio."

É importante compreender que o sobre-endividamento não está apenas relacionado com o montante absoluto da dívida (ou seja, quanto se deve), mas também com a sua natureza (dívida de consumo, exceto dívida criminal e alimentar), com o seu sujeito (devedor-pessoa física de boa-fé) e a capacidade de gerir e reembolsar realisticamente essas dívidas (tendo em vista os rendimentos e ativos atuais do devedor).

A legislação atual também conceitua o superendividamento por meio do artigo 54-A da Lei nº 14.181/2021.

"Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação." (BRASIL, 2021).

É, portanto, notório que se trata de um conceito complexo que vai além do simples fato de estar endividado. A compreensão do superendividamento é fundamental para desenvolver mecanismos que protejam os consumidores e promovam um consumo adequado e responsável para o cidadão brasileiro, observando seus direitos fundamentais e deveres enquanto devedor.

2.3. Importância do Tema

O superendividamento merece atenção devido aos efeitos de longo alcance que tem na sociedade. O elevado endividamento não só prejudica as pessoas endividadas, mas também tem um impacto significativo na economia de um país, aumenta a incerteza e ameaça o equilíbrio do mercado financeiro.

Dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, mostram que 77,9% dos brasileiros já adentraram o ano de 2023 endividados (BEZERRA, 2023), o que destaca a gravidade deste problema e a necessidade urgente de enfrentá-lo.

Quando as pessoas estão endividadas, concentram-se em pagar as suas dívidas, reduzindo os seus gastos em bens e serviços. Isto reduz a procura, o que afeta negativamente os negócios e o crescimento econômico global. A afetação predominante do rendimento das famílias a serviço da dívida deixa menos dinheiro disponível para outras despesas e investimentos, resultando em menos atividade econômica, uma vez que os gastos dos consumidores são um dos principais motores para tal crescimento.

Os elevados níveis de endividamento das pessoas representam um risco para a estabilidade financeira. O incumprimento das obrigações de dívida ameaça desencadear um imenso acréscimo à inadimplência de consumidores, o que por sua vez afeta bancos, credores e investidores. Um grande número de empréstimos não produtivos pode, portanto, prejudicar a estabilidade do setor financeiro e potencialmente desencadear uma recessão econômica mais ampla. Discutir o superendividamento é fundamental não só para o bem-estar dos indivíduos endividados, mas também para a saúde financeira da nação como um todo.

A Política Nacional de Relações de Consumo deve atender às necessidades dos consumidores e respeitar sua dignidade, assim, o artigo 4º do Código do Consumidor através da Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021, recebeu um décimo inciso, que acrescenta a esse objetivo a "prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor.” (BRASIL, 2021).

Neste contexto, a discussão do endividamento excessivo é vital para promover a consciência da importância da educação financeira não só a nível pessoal, mas também como fator que afeta a economia em sua totalidade.

  1. CAUSAS DO SUPERENDIVIDAMENTO

    1. Hiperconsumo

O hiperconsumo é um fenômeno que descreve um padrão de consumo excessivo e contínuo de bens e serviços na sociedade. Sua caracterização dá-se através da busca desenfreada por produtos, muitas vezes desnecessários, em atendimento à pressão social e oportunidades de crédito.

Esse comportamento é motivado pela crença de que o consumo contínuo está associado à felicidade, ao sucesso e à aceitação social. O hiperconsumo não só molda a cultura do consumismo, mas também tem impactos significativos na sociedade e nos indivíduos. Bauman (1998) já mencionado anteriormente, contribui para essa compreensão.

“o hiperconsumo, pode estar ligado a um tipo de síndrome cultural consumista que é o sentimento contínuo de insatisfação, que na verdade trata-se de uma negação enfática da virtude da procrastinação e da possível vantagem de se retardar a satisfação. A insatisfação relativa aos bens de consumo é uma das maiores angústias da sociedade contemporânea. Os desejos tornam-se sempre maiores, e acabam por gerar problemas. O hiper consumidor acaba por sentimentalizar as experiências com a finalidade de criar uma potencial relação com os objetos, o que na verdade explica o facto das pessoas estarem consumindo mais peças de roupa do que nas décadas anteriores, por acreditar no poder e conteúdo que a aparência pode exercer ou dar a um indivíduo.” (BAUMAN, 1998).

No que tange ao ser individual, o consumo excessivo pode causar uma série de efeitos negativos. Inicialmente, através de um desgaste financeiro porque muitas pessoas gastam mais do que ganham para sustentar este estilo de vida. Isto, por sua vez, pode levar ao sobre-endividamento. Além disso, a pressão para pagar dívidas e o estresse financeiro resultante podem afetar seriamente a saúde mental e o bem-estar emocional do devedor.

O superendividamento é, portanto, uma das consequências mais importantes e diretas do hiperconsumo. O desejo de adquirir mais e mais motiva muitas pessoas a recorrerem ao crédito que não possuem, o que cria uma espiral de dívida em que os juros e as obrigações financeiras se acumulam, tornando ainda mais difícil para as pessoas recuperarem a estabilidade financeira.

Desta forma, o hiperconsumo é um fenômeno que descreve o consumo excessivo em uma sociedade influenciada por uma cultura de consumo constante. Tem impactos econômicos, sociais e individuais significativos. Entre esses efeitos, o superendividamento como resultado direto do consumo excessivo.

  1. Oferta excessiva de Crédito

A abundância de empréstimos, financiamentos e crédito fácil é chamada de oferta excessiva de crédito. É importante ter em mente que o crédito é um serviço oneroso, no qual o fornecedor entrega dinheiro ao cliente, que então deve pagar o valor principal e os juros acrescidos. Entretanto, essa oferta exagerada pode esconder empréstimos abusivos e taxas de juros injustas.

Portanto, a oferta excessiva de crédito pode desempenhar um papel importante no incentivo das pessoas a se endividar de forma descontrolada. A disponibilidade de crédito atraente e fácil, frequentemente representado por cartões de crédito pré-aprovados, empréstimos pessoais com taxas de juros baixas ou financiamentos estendidos, pode dar a falsa impressão de poder e riqueza. O entendimento pode ser ratificado através do Mestre Felipe Kirchner:

"o devedor superestima o seu rendimento por incapacidade de administrar seu orçamento ou por ceder às tentações do consumo e da publicidade, na busca por um padrão de vida mais elevado, que ele próprio (psicológica e socialmente) se impõe." (KIRCHNER, 2008)

Esse excesso de crédito, por sua vez, pode levar a uma acumulação de dívidas que é difícil de pagar. Os indivíduos podem achar que estão pagando juros e parcelas mensais durante longos períodos de tempo, comprometendo significativamente suas finanças pessoais. A título de curiosidade, a pesquisa realizada pelo SERASA EXPERIENCE (2021) apontou que o cartão de crédito segue como a principal dívida entre os inadimplentes. Assim, o endividamento a longo prazo, resultante da oferta excessiva de crédito, cria uma espiral de dívidas que pode ser desafiadora de superar.

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No geral, a oferta excessiva de crédito também pode contribuir para a criação de crises financeiras. Quando a disponibilidade de crédito atinge níveis insustentáveis, isso pode inflar preços de ativos e criar uma falsa sensação de riqueza na economia, afetando negativamente toda a sociedade.

Como resultado, embora a oferta de crédito possa ser vista como um estímulo ao consumo e ao crescimento econômico, também carrega consigo riscos significativos, incluindo o superendividamento. Para reduzir os efeitos negativos, é essencial implementar regulamentações ao setor financeiro, instruir os consumidores sobre a responsabilidade financeira deles e garantir que as práticas de empréstimo sejam éticas e transparentes.

  1. Ignorância Acerca de Finanças

A ignorância em relação a finanças pessoais é um problema que contribui significativamente para o superendividamento de muitas pessoas, tendo em vista que a falta de compreensão das noções básicas de orçamento e gestão financeira pode levar as pessoas a gastarem mais do que ganham. Muitos indivíduos não têm um plano financeiro claro e não sabem quanto estão gastando, em comparação com sua renda. A ausência de um orçamento adequado torna mais fácil para as pessoas se envolverem em compras impulsivas e contrair dívidas sem perceberem plenamente as consequências financeiras.

Segundo a doutrina de Costa (1999), o superendividamento seria:

“(...) o resultado da má-gestão do orçamento familiar pelo consumidor, que somou quantidade de dívidas muito superior aos recursos financeiros que dispõe para liquidá-lo.”

Além disso, a falta de conhecimento sobre taxas de juros, empréstimos, cartões de crédito e outros instrumentos financeiros pode fazer com que os consumidores escolham opções que não são adequadas às suas necessidades. Isso pode resultar em empréstimos com taxas de juros excessivamente altas ou cartões de crédito com termos desvantajosos. 

Outro aspecto da ignorância financeira é a falta de compreensão sobre como construir um bom histórico de crédito. Um histórico de crédito negativo pode resultar em taxas de juros mais altas e dificuldade em obter empréstimos favoráveis no futuro. A falta de conhecimento sobre como gerenciar e melhorar o histórico de crédito pode criar um ciclo de endividamento problemático.

Em termos de impacto social, a ignorância financeira também contribui para a perpetuação do superendividamento em comunidades vulneráveis. A falta de acesso à educação e à informação financeiras pode tornar essas comunidades particularmente suscetíveis a práticas financeiras predatórias, como empréstimos de alto risco e taxas de juros abusivas.

Para combater o superendividamento decorrente da ignorância financeira, é fundamental promover a educação financeira em escolas, locais de trabalho e comunidades. Os consumidores precisam de informações claras e acessíveis sobre como gerenciar suas finanças, fazer escolhas financeiras responsáveis e entender as implicações de suas decisões. Com um maior nível de educação financeira, as pessoas estarão mais bem equipadas para evitar o superendividamento e construir um futuro financeiro mais estável.

  1. Situações emergenciais

Em muitos casos, situações imprevistas e emergências da vida cotidiana podem desencadear o problema financeiro do superendividamento, independentemente do comportamento financeiro anterior do indivíduo. É importante reconhecer que as adversidades inesperadas podem atingir qualquer um e não devem ser motivo de estigmatização e reprovação.

Uma das situações mais comuns que podem levar ao superendividamento é o desemprego. Um estudo realizado pela SERASA EXPERIENCE (2021) aponta que a perda do emprego é o principal fator ao endividamento, pois priva o indivíduo de sua fonte de renda, tornando difícil o cumprimento das despesas básicas. Muitas pessoas, nessa condição, precisam recorrer a empréstimos para manter suas famílias, o que revela como o superendividamento pode ser resultado de circunstâncias que estão fora do controle do indivíduo.

Outro fator que frequentemente leva ao superendividamento são despesas médicas inesperadas. Problemas de saúde graves ou acidentes podem resultar em custos significativos na renda de um trabalhador brasileiro, mesmo para aqueles com seguro de saúde. Copagamentos, dedutíveis e tratamentos não cobertos podem rapidamente sobrecarregar as finanças de uma pessoa. Além disso, a incapacidade de trabalhar devido a uma doença grave aprofunda ainda mais a crise financeira.

Eventos como desastres naturais, incêndios e inundações podem levar à perda de bens materiais e à necessidade de reparos ou reconstrução. As despesas associadas a essas situações frequentemente ultrapassam as economias de um indivíduo ou família, forçando-os a buscar crédito para lidar com a reconstrução de suas vidas.

Além disso, a morte de um ente querido pode ter implicações financeiras significativas. As despesas funerárias, a perda de uma fonte de renda ou a responsabilidade de cuidar de despesas adicionais pode criar uma pressão financeira adicional.

Neste contexto, é essencial reconhecer que o superendividamento nem sempre é resultado de decisões financeiras imprudentes. Muitas vezes, é provocado por situações que estão além do controle das pessoas, como as mencionadas nos parágrafos anteriores. É fundamental oferecer apoio social e recursos para auxiliar os indivíduos a sair do superendividamento e recuperar a estabilidade financeira. Além disso, a conscientização sobre o planejamento financeiro, a criação de fundos de emergência e a obtenção de seguros adequados para situações inesperadas podem ajudar a minimizar a vulnerabilidade financeira e proporcionar maior segurança financeira em face de eventos imprevisíveis.

  1. MÍNIMO EXISTENCIAL

    1. Fundamento Constitucional

A base do mínimo existencial repousa no princípio constitucional da dignidade humana, um conceito fundamental que reconhece a intrínseca e inalienável dignidade de cada ser humano. A dignidade humana é o princípio fundamental que sustenta a visão de que todos os indivíduos merecem ser tratados com respeito, justiça e igualdade, independentemente de sua origem, condição social, econômica ou qualquer outra característica. Ela representa o reconhecimento de que cada pessoa possui um valor inerente, que vai além de considerações puramente econômicas.

De acordo com o ministro Alexandre de Moraes (2005):

"A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos e a busca ao Direito à Felicidade” (MORAES, 2005, p. 16)

Essa ligação entre dignidade humana e mínimo existencial é crucial para o ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição Federal de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais do país, estabelecendo que o Estado tem o dever de garantir a promoção do bem-estar e da igualdade entre todos os cidadãos. Dessa forma, o mínimo existencial tornou-se uma ferramenta legal para traduzir o respeito à dignidade humana em políticas públicas e garantias sociais, assegurando que todos tenham o acesso necessário às condições básicas para uma vida digna.

Como resultado, o mínimo existencial permite que os direitos sociais fundamentais, principalmente a dignidade humana (prevista no art. 6º da Constituição Federal de 1988.) seja eficaz e totalmente aplicável nas relações comerciais.

“Nota-se que o ser humano tem o direito, e o Estado o dever, à preservação da vida. Mas não é a vida pura e simplesmente no sentido de existência. É a preservação da vida como um direito fundamental, é a garantia a uma vida digna. Isso porque o ser humano "reclama condições mínimas de existência, existência digna conforme os ditames da justiça social” (SILVA, 1998, p. 92).

O mínimo existencial é, portanto, a expressão prática da dignidade humana no contexto da justiça social, assegurando que cada indivíduo tenha a oportunidade de desenvolver seu potencial e participar plenamente na sociedade.

  1. Conceito

O atual cenário jurídico brasileiro não oferece uma definição precisa do conceito de "mínimo existencial" e de sua extensão. Contudo, examinando a doutrina, é possível obter clareza sobre esse assunto. Destacaremos a contribuição da doutrinadora Ana Paula de Barcellos, que tenta explicar os conceitos fundamentais desse conceito, mesmo que de forma preliminar.

“Uma primeira resposta que se pode apresentar desde logo, insatisfatória por sua generalidade, porém útil, é que o mínimo existencial corresponde ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna; existência aí considerada não apenas como experiência física – a sobrevivência e a manutenção do corpo – mas também espiritual e intelectual, aspectos fundamentais em um Estado que se pretende, de um lado, democrático, demandando a participação dos indivíduos nas deliberações públicas, e, de outro, liberal, deixando a cargo de cada um seu próprio desenvolvimento.” (BARCELLOS, 2002, p. 197-198)

Acerca do âmbito histórico, observemos CAYRES (2017):

A noção de mínimo existencial encontra raízes no direito alemão. Como a Constituição alemã não possui um rol extenso de direitos sociais, os constitucionalistas, ao lado do Tribunal Constitucional alemão, debruçaram-se na construção de quais seriam os direitos mínimos a ser assegurados pelo Estado alemão aos seus cidadãos, afirmando existir "ao menos um direito fundamental não-escrito", ao sustentar "a existência de um direito subjetivo ao mínimo existencial".

O objetivo do mínimo existencial é garantir ao devedor consumidor uma existência digna, não se limitando apenas às questões fisiológicas, mas incluindo aspectos culturais e intelectuais em vários casos. O acesso à educação é um exemplo notável da abrangência desses aspectos, além de contribuir para a reversão do superendividamento.

A Mestre Cláudia Lima Marque, grande referência em nosso ordenamento jurídico em relação ao combate ao superendividamento, traz o conceito de mínimo existencial do consumidor perante o superendividamento como:

“quantia capaz de assegurar a vida digna do indivíduo e seu núcleo familiar destinada à manutenção das despesas de sobrevivência, tais como água, luz, alimentação, saúde, educação, transporte, entre outros.” (Marques, 2010)

Em síntese, enquanto o conceito de "mínimo existencial" ainda está sendo discutido no mundo jurídico brasileiro e buscando definições mais precisas, há muitos juristas que mostram que o mínimo existencial abrange mais do que apenas a sobrevivência física. Portanto, o estabelecimento e a implementação do conceito de mínimo existencial no direito brasileiro podem contribuir significativamente na proteção dos direitos dos consumidores e a promover um viver mais justo ao devedor, mesmo que ele esteja na situação de superendividamento.

  1. Valor Atual

Recentemente, houve uma alteração relevante referente ao valor atual do mínimo existencial. O Decreto nº 11.567, estabeleceu a renda mínima essencial para uma pessoa natural no Brasil em R$ 600,00 no âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento (BRASIL, 2023). Essa melhoria mostra o reconhecimento de que é necessário ajustar o mínimo existencial às mudanças sociais e econômicas que ocorreram ao longo da história.

Ademais, a Lei 14.181 enfatiza a necessidade de preservar os fundamentos do mínimo existencial em qualquer tentativa de revisão e reparcelamento dos valores, garantindo que nenhum cidadão seja privado do que é necessário para uma vida digna.

Para que o estado cumpra seu compromisso de garantir a dignidade de todos os seus cidadãos, independentemente de suas condições financeiras, é necessário garantir que o mínimo existencial seja regularmente revisado e adaptado às circunstâncias atuais. Assim, o mínimo existencial continua sendo crucial para a criação de uma sociedade mais justa.

  1. LEI N° 14.181/21

    1. Do objetivo

Para “aperfeiçoar a disciplina de crédito e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento” (BRASIL, 2021). A promulgação da Lei 14.181 constitui um marco significativo na regulamentação das práticas de crédito responsável, educação financeira e prevenção, e tratamento de situações de superendividamento no Brasil (BRASIL, 2021). Esta legislação é uma resposta à complexidade crescente do mercado financeiro em relação ao superendividamento. Vejamos o disposto:

“Art. 6 (...), XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;

XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;

XIII - a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso.” (BRASIL, 2023)

A garantia de práticas de crédito responsáveis é um dos principais objetivos da Lei nº 14.181. Isso significa que os bancos devem fazer uma análise de crédito rigorosa antes de dar empréstimos, levando em consideração a capacidade financeira do consumidor. Isso é feito para evitar que os clientes assumam dívidas que não podem pagar, melhorando assim as relações entre credores e devedores.

A lei também destaca a importância da educação financeira. Os clientes devem entender os produtos financeiros disponíveis, os custos associados e os riscos. A educação financeira ajuda as pessoas a evitar armadilhas financeiras e superendividamento, ajudando-as a tomar decisões mais informadas sobre suas finanças.

Também é abordado na norma a prevenção e o tratamento do superendividamento. Quando um consumidor acumula dívidas em excesso, como explanado em tópicos anteriores, ele está em superendividamento, o que significa que ele não pode pagar despesas essenciais como moradia, alimentação e saúde. A legislação permite a revisão e a repactuação da dívida para que os devedores com dívidas excessivamente altas tenham a chance de renegociar suas dívidas de maneira justa e duradoura, preservando assim o mínimo existencial.

Um princípio da Lei nº 14.181 é a proteção do mínimo existencial. Isso significa que o devedor deve ser capaz de sustentar um padrão de vida básico durante o processo de renegociação da dívida. Este método evita que o devedor seja privado de um ambiente digno de vida enquanto tenta regularizar suas finanças.

  1. Do beneficiado

A lei sobre superendividamento protege apenas indivíduos naturais. O caput do artigo 54-A, que faz referência ao "consumidor pessoa natural", especificando claramente esse requisito. Assim, é necessário ser uma pessoa física para ter acesso aos mecanismos legais para tratar o superendividamento.

Embora haja uma discussão a respeito de a Lei nº 14.181/2021 poder ou não ser aplicada a empresários individuais ou pequenas pessoas jurídicas, é importante lembrar que a intenção original do legislador e da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto era limitar essas medidas a pessoas físicas ou naturais. A doutrinadora Claudia Lima Marques reforça o pensamento:

“o melhor caminho é utilizá-la apenas para pessoas naturais ou físicas, como era o intento da comissão de juristas que elaborou o Anteprojeto.” MARQUES (2021).

A boa-fé, princípio fundamental do direito do consumidor, também é um elemento crítico na caracterização do beneficiado do superendividamento. A boa-fé diz que as partes de um contrato devem agir de acordo com os valores morais e éticos da sociedade. Portanto, é necessário ter boa fé ao comprar bens, serviços ou crédito para se qualificar para as normas de tratamento do superendividamento.

Assim, de acordo com a legislação atual e os princípios do direito do consumidor, o beneficiado do superendividamento é considerado uma pessoa naturalmente de boa-fé. Isso garante que o tratamento do superendividamento seja feito de forma justa e eficaz para ajudar e proteger os consumidores que estão passando por uma situação financeira difícil.

Referente ao ato de boa-fé, a doutrinadora Judith Martins Costa expõe:

"O agir segundo a boa-fé objetiva concretiza as exigências de probidade, correção e comportamento leal hábeis a viabilizar um adequado tráfico negocial, consideradas a finalidade e a utilidade do negócio em vista do qual se vinculam, vincularam e cogitam vincular-se, bem como o específico campo de atuação em que está situada a relação obrigacional" (COSTA, 2018).

  1. Do objeto da negociação

De acordo com o disposto no § 2º do Artigo 54-A da Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021, quaisquer compromissos financeiros assumidos como resultado de relações de consumo estão incluídos no objeto de negociação do superendividamento (BRASIL, 2021). Isso significa que a intervenção abrange todas as dívidas resultantes de compras, contratos ou serviços recebidos.

Essa abordagem ampla mostra a preocupação do legislador em criar mecanismos que permitam aos consumidores com dívidas excessivamente altas a oportunidade de renegociar suas dívidas de forma mais favorável, evitando assim que sua situação financeira fique ainda mais prejudicada. Neste caso, incluir todas as dívidas relacionadas ao consumo oferece uma abordagem completa e justa para lidar com o superendividamento.

Entretanto, o art. 54-A, § 3º da referida norma, é claro ao limitar qual é o objeto da dívida e expresso ao mostrar sua não abrangência em algumas situações especiais:

"O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor." (BRASIL, 2021)

A lei do superendividamento não leva em consideração dívidas de impostos e taxas. Isso se deve ao fato de que os tributos são obrigações legais impostas pelos governos para financiar serviços públicos e programas sociais, e a sua inadimplência costuma ser tratada de maneira diferente.

As dívidas decorrentes de pensão alimentícia, que são consideradas uma prioridade legal e constituem uma fonte de sustento para os dependentes, devido a sua natureza alimentar, também não são abrangidas. A falta de pagamento dessas dívidas pode levar a graves consequências legais.

Como o direito à moradia é um direito fundamental e, portanto, as consequências da inadimplência são tratadas de forma específica, os empréstimos relacionados à habitação, como financiamentos imobiliários, também não são abrangidos pela lei de superendividamento.

No caso de compras de bens de luxo de alto valor, mesmo que sejam de consumo, os casos de superendividamento não devem ser objeto de intervenção estatal, pois os direitos essenciais não devem ser tratados com a mesma preocupação que os direitos supérfluos. A base está no princípio da proteção simplificada do luxo, disposto em estudos e traz o seguinte entendimento:

"Quem está em uma situação de luxo é protegido, mas não gozará do mesmo prestígio normativo que é estendido para situações próprias do homo medius, especialmente quando envolver conflito de interesses com terceiros." (OLIVEIRA, 2018).

Conclui-se que, por exemplo, mesmo que alguém tenha apoio legal após assumir um endividamento por comprar um veículo caro e luxuoso, ele não pode usar os recursos interventivos da lei do superendividamento.

  1. Da prevenção e do tratamento no superendividamento

As políticas de proteção do consumidor enfatizam a prevenção e o tratamento do superendividamento. A Lei nº 14.181/2021 reforçou a importância de promover a transparência, responsabilidade e equilíbrio nas relações de consumo, principalmente no que diz respeito a crédito e vendas a prazo, com a introdução de dispositivos como os mencionados nos Artigos 54-B a 54-G no Código de Defesa do Consumidor. A própria doutrinadora Claudia Lima Marques enfatiza o tratamento do tema como importante prevenção:

"o superendividamento é a doença da sociedade de consumo, que não mais tem capacidade de poupar para gastar, mas acaba dependendo de crédito para terminar, mês a mês, os gastos familiares e individuais de consumo. E prevenir o problema é sempre o melhor, é a vacina para o futuro" (MARQUES, 2021).

Para evitar o superendividamento, os fornecedores e intermediários são obrigados a fornecer informações claras e precisas sobre as condições de crédito, taxas de juros, encargos, valor das prestações e prazo de validade da oferta. Para que os consumidores façam escolhas informadas, essas informações precisam estar presentes na oferta, no contrato ou na fatura.

A lei também proíbe práticas abusivas na oferta de crédito, como a pressão para a contratação, a omissão de informações importantes, o esforço para condicionar o atendimento para evitar demandas judiciais e a cobrança indevida de valores contestados pelos consumidores.

A legislação estabelece diretrizes claras para os fornecedores quando se trata de superendividamento. Eles devem informar o consumidor sobre a natureza e os custos do crédito, avaliar de forma responsável as condições do crédito do consumidor, fornecer cópias do contrato e esclarecer as consequências do inadimplemento. De acordo com a gravidade da conduta, o descumprimento dessas obrigações pode acarretar uma redução de juros e encargos, bem como uma extensão do prazo de pagamento.

Além disso, é abordada a conexão entre os contratos de fornecimento principal de produto ou serviço e os contratos de crédito acessórios, o que permite ao consumidor exercer o direito de arrependimento e rescindir os contratos conexos se o fornecedor não cumprir suas obrigações. Estas medidas ajudam o consumidor a ter controle e proteção em caso de superendividamento.

Ademais, a lei proíbe cobranças indevidas de fornecedores de produtos ou serviços que envolvem crédito e exige que forneçam informações claras sobre contratos e custos.

Hodiernamente, é fundamental evitar e tratar o superendividamento para manter os clientes longe de práticas comerciais desleais e dar-lhes a oportunidade de fazer escolhas financeiras inteligentes. Os esforços para promover o equilíbrio e a justiça nas relações de consumo incluem regras como essas visando evitar que os clientes caiam em situações de superendividamento prejudicial.

  1. Da conciliação em bloco no superendividamento

A Lei nº 14.181 estabelece, no capítulo V, mecanismos importantes para promover a recuperação financeira e proteger os direitos dos devedores para combater o superendividamento dos consumidores individuais. O artigo 104-A permite que os legisladores convoquem todos os credores para uma audiência de mediação, a ser presidida por um juiz ou mediador aprovado pelo tribunal.

Os consumidores com endividamento excessivo têm a oportunidade de fazer propostas de planos de pagamento durante o processo de renegociação, desde que respeitem as reservas mínimas regulamentares.

A presença de todos os credores na audiência de mediação é fundamental para a condução eficaz do processo. A ausência injustificada de um credor pode resultar na inexigibilidade da dívida e na suspensão dos encargos de mora. Além disso, os credores ausentes serão obrigados a aderir a um plano de reembolso, desde que o consumidor conheça e compreenda o montante devido.

Caso ocorra mediação, o acordo será homologado por decisão judicial, que detalhará o plano de pagamento da dívida. A decisão terá efeito de trânsito em julgado e título executivo, proporcionando a segurança jurídica necessária aos planos de pagamento.

Por fim, é importante lembrar que uma vez aprovado um plano de pagamento, o consumidor não poderá solicitar a renegociação no prazo de dois anos a partir do cumprimento das obrigações previstas no plano de pagamento. Este período de espera é necessário para dar aos clientes a oportunidade de recuperar a sua situação financeira antes de procurarem um novo tratamento da dívida.

  1. Do processo por superendividamento

A referida legislação estabelece disposições legais importantes para lidar com o endividamento excessivo dos consumidores individuais através dos artigos 104-B e 104-C, proporcionando uma abordagem judicial ampla e justa para resolver esses casos.

O artigo 104-B permite que os consumidores iniciem processos de superendividamento se a mediação com determinados credores não for bem-sucedida. Durante este processo, um juiz intervém para rever e consolidar o contrato, renegociando a dívida remanescente através de um plano judicial obrigatório. Este processo notificará todos os credores cujos créditos não foram cobertos pelo acordo anterior.

Neste caso, o juiz poderá nomear um administrador, desde que isso não implique custos adicionais para as partes. Depois de concluir as tarefas necessárias, o administrador proporá um plano de pagamento que inclua prazos ou medidas de mitigação de taxas. No mínimo, os regimes judiciais obrigatórios garantem o capital devido aos credores, sujeito a ajustamentos monetários com base em índices oficiais de preços. Além disso, permite o pagamento da dívida em até 5 anos, sendo a primeira parcela paga em até 180 dias após a homologação judicial, seguida de sucessivas parcelas mensais iguais.

Além disso, nos termos do artigo 104-A, os órgãos públicos do sistema nacional de defesa do consumidor poderão atuar simultânea ou seletivamente nas fases preventiva e conciliatória do processo de renegociação de dívidas, nos termos do artigo 104-C. Isto pode ser conseguido através de acordos privados assinados entre estas instituições e instituições credoras ou suas associações. Esta ação visa evitar o superendividamento e, em caso de mediação administrativa, poderão ser realizadas audiências internacionais com todos os credores para facilitar o desenvolvimento de planos de pagamento que respeitem os mínimos de subsistência sob a supervisão de órgãos públicos.

Os acordos com os órgãos públicos incluem condições importantes, como a data em que o consumidor será excluído de bancos de dados e cadastros de inadimplentes, bem como a condição de que o consumidor se abstenha de agir de qualquer maneira que agrave sua situação de superendividamento, como contrair mais dívidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, o comportamento de consumo tem raízes nas esferas antropológicas, econômicas e sociológicas, e é uma característica inerente a todos os seres humanos, contudo, o excesso pode desencadear o fenômeno do superendividamento na sociedade. Neste contexto, é fundamental entender o que leva ao superendividamento, e falar sobre isso ajuda a tornar as pessoas mais conscientes da importância da educação financeira para as pessoas e para a economia como um todo.

Portanto, medidas legais são necessárias para tornar o acesso ao crédito justo e seguro, ao mesmo tempo em que se evita a armadilha do superendividamento, especialmente agora que muitos consumidores enfrentam o problema. É fundamental para a saúde financeira de todos os envolvidos manter um equilíbrio entre a oferta de crédito e a proteção do consumidor, isso ajudará a construir relações de consumo mais justas. Como resultado, as leis que combatem e tratam o superendividamento são muito importantes para proteger os direitos dos consumidores e promover uma sociedade mais justa.

No âmbito jurídico, o conceito de mínimo existencial é crucial para proteger esses consumidores, pois garante que todos tenham acesso a condições dignas de vida, independentemente de suas condições financeiras. Este princípio, baseado na dignidade humana, é fundamental para evitar o superendividamento e manter as necessidades básicas do indivíduo e de sua família.

Por fim, a Lei nº 14.181 oferece mecanismos eficazes para renegociação de dívidas, objetivando garantir que as pessoas tenham segurança jurídica e equilibrar os interesses de credores e devedores no contexto do superendividamento, dando ao superendividado a chance de recuperar sua estabilidade financeira após a aprovação de um plano de pagamento.

Há também encargos aos fornecedores e intermediários que devem fornecer informações claras e detalhadas sobre as condições de crédito, taxas de juros, encargos e prazos, para garantir que os clientes tomem decisões informadas e evitem situações de endividamento excessivo. Logo, é importante evitar práticas abusivas como a pressão para a contratação e a omissão de informações relevantes.

Em conclusão, é evidente que a preservação dos direitos e da dignidade dos consumidores superendividados requer a garantia de um mínimo existencial e proteção legal. A legislação atual do Brasil estabelece diretrizes e mecanismos de proteção, no entanto, é necessário que essas ações sejam eficazes para evitar e tratar o superendividamento, garantindo qualidade de vida e protegendo os direitos fundamentais dos consumidores. Assim, é essencial defender esses princípios para construir uma sociedade mais justa e igualitária, onde o bem-estar e a dignidade de todos sejam preservados, especialmente nos tempos em que a relação entre consumo e crédito desempenha um papel fundamental na vida das pessoas.

REFERÊNCIAS

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Sobre os autores
Fábio Ferreira Bueno

Possui graduação em Direito pela Universidade Paranaense - UNIPAR (1997). Pós-graduação em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Paranaense - UNIPAR (2001). Mestrado em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense - UNIPAR (2005). Advogado em exercício desde 1998. Foi docente da Escola da Magistratura do Paraná. É Professor da Universidade Paranaense - UNIPAR, Umuarama/PR, no Curso de Graduação em Direito, desde 2000, ministrando as disciplinas de Direitos Difusos e Coletivos e Direito Processual Civil. Professor em cursos de Pós-graduação ofertados pela Universidade Paranaense - UNIPAR.

André Alves de Oliveira

Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Paranaense - Unipar

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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