Alienação Fiduciária: As reais chances de êxito das ações anulatórias e de usucapião movidas pelo devedor.

14/02/2024 às 18:53
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Uma parcela considerável da sociedade sonha com a casa própria, muitos a adquirem por meio da alienação fiduciária, no entanto, por motivos variáveis, algumas pessoas deixam de pagar as parcelas, o que gera a consolidação da propriedade em favor da instituição financeira, autorizando a sua venda por meio do leilão extrajudicial.

Uma vez concretizada a arrematação, estando tudo nos conformes da lei e constando o nome do arrematante na matrícula do imóvel na qualidade de proprietário, esse tem o direito à imissão na posse do bem, podendo remeter uma notificação extrajudicial ao endereço do imóvel solicitando a desocupação em um prazo razoável de 15 dias.

Se o devedor atender ao solicitado na notificação, não há problemas, as chaves serão entregues ao arrematante e a vida seguirá o seu curso sem litígio, no entanto, não raramente, alguns devedores insistem em permanecer no imóvel porque não concordam em perde-lo ou apostam as suas últimas fichas em ações anulatórias ou de usucapião com remotas chances de êxito.

Desde já é importante esclarecer que há um estudo demonstrando que no município de São Paulo são raríssimas as ações anulatórias de leilão extrajudicial que logram êxito. Cito um texto publicado na Revista Brazilian Journal of Development:

Na amostra pesquisada de 132 casos, em apenas um único caso, o morador (devedor fiduciário), conseguiu barrar a imissão na posse e comprovar que a instituição não tinha cumprido os requisitos legais para consolidação de propriedade, revertendo o processo e provando judicialmente que o imóvel ainda o pertencia e o banco não poderia tê-lo vendido. (CARDIM; ALENCAR, 2022, p. 772)1.

Por isso, defende o presente escrito que o devedor somente deverá usar a ação anulatória se de fato estiver diante de um vício grave, como por exemplo a ausência do envio da notificação para purgar a mora.

Sobre o tema, não custa reforçar que cabe ao banco comprovar somente o envio da notificação extrajudicial ao devedor no endereço indicado no contrato, assim dispensando a prova do recebimento pelo destinatário ou terceiros. (Tema Repetitivo 1.132/STJ).

No mais, não custa sustentar que é presumida a notificação do devedor a partir do momento no qual existe na matrícula do imóvel a averbação de consolidação da propriedade imobiliária em favor do banco pelo decurso do prazo para purgar a mora, visto que os atos dos Registradores são dotados de fé pública e presunção de veracidade (art. 19, II, Constituição Federal e art. 54, Lei 13.097/15), nesse sentido temos um acórdão deste ano (2024) do TRF-3:

- No caso dos autos, consta na averbação de consolidação da propriedade, bem como no procedimento instaurado no 1º CRI de Dourados/MS, que os devedores fiduciantes foram devidamente intimados para purgar a mora, não o fazendo no prazo legal. Frise-se que a certidão de notificação feita pelo Oficial de Registro de Imóveis possui fé pública e, portanto, goza de presunção de veracidade, somente podendo ser ilidida mediante prova inequívoca em sentido contrário, o que não ocorreu no presente caso. - Agravo de instrumento não provido. (TRF 3ª AI n. 5025510-02.2023.4.03.0000, DJEN: 08/02/2024)2.

Também nos parece juridicamente inviável alegar a proteção da impenhorabilidade do bem de família (Lei n. 8.009/1990) para impedir o leilão extrajudicial, primeiro porque a propriedade pertence ao banco e segundo porque o devedor deu o imóvel em garantia, sendo uma contradição total conseguir o crédito e alegar a proteção da Lei n. 8.009/1990, cito:

Sendo assim, evidente que a impenhorabilidade inerente ao bem de família jamais poderá ser oposta ao credor fiduciário, até porque a propriedade do imóvel, a bem da verdade, já pertence a ele – confirme registro constante na matrícula imobiliária respectiva -, e sequer dependerá de penhora judicial para ser realizada visando a recuperação do seu crédito eventualmente inadimplido, nos exatos termos do procedimento de cobrança extrajudicial exaustivamente regulado pela Lei n° 9.514/1997.

Aliás, permitir que a pessoa que aliena um imóvel fiduciariamente em garantia de determinado crédito, o faça a partir de uma reserva mental (Código Civil, art. 110) para, depois, apenas quando da inadimplência da dívida, opor-se à consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor ao argumento de o imóvel ser bem de família, e, portanto, gozar da proteção da Lei n° 8.009/1990 seria, absolutamente, contrariar os princípios de probidade e boa-fé objetiva que devem permear os atos e contratos da vida civil (Código Civil, art. 422), dar guarida à má-fé e incentivar a prática antiética que chega às raia das ilicitude (Código Civil, art. 187). (DANTZGER, 2021, p. 265)3.

Portanto, ações anulatórias devem ser ajuizadas com cautela, até mesmo porque não é qualquer declaração unilateral firmada pelo devedor e/ou print do aplicativo do banco que desconstituirá a presunção de veracidade da averbação no tocante à intimação do devedor e o decurso do prazo sem purgar a mora. Para a sua desconstituição demanda-se prova robusta.

Uma vez compreendido que a ação anulatória deve ser escolhida em hipóteses bem delimitadas, muitos devedores que não se encaixam nessas exceções podem pensar na usucapião como uma saída alternativa, mas essa jamais será uma solução adequada, primeiro porque é assente no STJ (Superior Tribunal de Justiça) que a posse do devedor e/ou de terceiro em um imóvel alienado fiduciariamente não é passível de gerar o direito à usucapião, cito o STJ e a doutrina:

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Decidiram os(as) ministros(as) do STJ: “A posse de bem por contrato de alienação fiduciária em garantia não pode levar a usucapião, seja pelo adquirente seja por cessionário deste, porque essa posse remonta ao fiduciante, que é a financiadora, a qual, no ato do financiamento, adquire a propriedade do bem cuja posse direta passa ao comprador fiduciário, conservando a posse indireta (lhering) e restando essa posse como resolúvel por todo o tempo, até que o financiamento seja pago.” (STJ, REsp n. 844.098/MG, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 06.11.2008).

(…)

Decidiram os(as) ministros(as) do STJ: (…) 5. O imóvel da Caixa Econômica Federal vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação, porque afetado à prestação de serviço público, deve ser tratado como bem público, sendo, pois, imprescritível. (STJ, REsp n. 1.448.026/PE, rel.ª Min.ª Nancy Anrighi, j. 17.11.2016). (PEIXTO, 2021, p. 36/39)4.

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL (CPC/2015) E CIVIL (CC/2002). USUCAPIÃO. IMÓVEL VINCULADO AO SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO - SFH. DESCABIMENTO. PRECEDENTES.

1. Controvérsia acerca da possibilidade de se adquirir por usucapião imóvel vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação - SFH.

2. Afetação dos imóveis do SFH à implementação política nacional de habitação e planejamento territorial do governo federal.

3. Descabimento da aquisição, por usucapião, de imóveis vinculados ao SFH, tendo em vista o caráter público dos serviços prestado pela Caixa Econômica Federal na implementação da política nacional de habitação. Precedentes.

4. Agravo desprovido. (STJ, AgInt no REsp n. 1.712.101/AL, DJe de 21/5/2018)5.

(...) a partir da consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor, por conta do inadimplemento da dívida por ela garantida, a posse direta do imóvel pelo antigo fiduciante se torna injusta e ilegítima (DANTZGER, 2021, p. 152)6.

Nesse caso, a clandestinidade da posse frente ao legítimo proprietário resolúvel e possuidor indireto inviabilizará o reconhecimento do direito possessório e, por via de consequência, também de eventual pretensão de aquisição da propriedade do mesmo pela usucapião. Nesse sentido, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça já entendeu que “a transferência a terceiro de veículo gravado com propriedade fiduciária, à revelia do proprietário (credor), constitui ato de clandestinidade, incapaz de induzir posse (art. 1.208 do CC/2002), sendo, por isso mesmo, impossível a aquisição do bem por usucapião.” (REsp nº 881.270/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 2/3/2010). (DE MELO; PORTO, 2023, p. 48)7.

Assim sendo, ficou claro que a posse do devedor ou de terceiro não poderá ser aproveitada para fins de usucapião no tocante aos imóveis financiados por alienação fiduciário.

Diante do exposto, considerando os precedentes jurisprudenciais, as lições doutrinárias e o estudo de caso realizado no município de São Paulo, temos que a opção pela discussão judicial deve ser feita pelo devedor com muita cautela, devendo ser escolhida caso ocorra um erro grave, como por exemplo a ausência do envio da notificação para purgar a mora.

Já a usucapião, com o devido respeito aos que defendem o contrário, essa é uma escolha com baixa chance de êxito, pois a posse não gerará direito ao devedor e tampouco a eventual terceiro detentor de um contrato de gaveta não anuído pelo banco.


  1. CARDIM, Rafael Carlos; ALENCAR, Claudio Tavares de. Análise de riscos de investimentos em imóveis retomados por instituições financeiras: estudos de caso na cidade de São Paulo. Brazilian Journal of Development, v. 8, n. p.766-792 ja 2022.

  2. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região - Agravo de Instrumento n. 5025510-02.2023.4.03.0000, Relator (a): Desembargador Federal JOSE CARLOS FRANCISCO, Data do Julgamento: 01/02/2024, T2 – Segunda Turma, Data de Publicação: 08/02/2024.

  3. DANTZGER, Afranio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis: Lei 9.514/1997 Aplicação prática e suas consequências, 6ª ed. Revista, atualizada e ampliada, São Paulo: JusPODIVM, 2021.

  4. PEIXOTO, Ulisses Vieira Moreira. Usucapião e Usufruto, Inventário e Partilha, Divórcio e União Estável, Protesto e Outros Documentos de Dívida, Demarcação e Divisão de Terras Particulares Extrajudiciais, 3ª ed.rev.atual.ampl, Leme: Editora Mizuno, 2021.

  5. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - Agravo Interno no Recurso Especial n. 1.712.101/AL, Relator (a): Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Data do Julgamento: 15/05/2018, T3 – Terceira Turma, Data de Publicação: 21/05/2018.

  6. DANTZGER, Afranio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis: Lei 9.514/1997 Aplicação prática e suas consequências, 6ª ed. Revista, atualizada e ampliada, São Paulo: JusPODIVM, 2021.

  7. DE MELO, Marco Aurélio Bezerra; PORTO, José Roberto Mello. Posse e Usucapião: Direito Material e Direito Processual, 4ª Ed: Editora Juspodivm, 2023.

Sobre o autor
João Vitor Rossi

Advogado especializado em Direito Tributário e Imobiliário, com registro na OAB-SP nº 425.279. Possui MBA Executivo em Direito, Negócios e Operações Imobiliárias, especialização em Direito Imobiliário e Direito Processual Civil, que lhe proporciona uma visão ampla e estratégica para a resolução de problemas complexos e a liderança de equipes jurídicas de alta performance. Com experiência reconhecida no setor . Autor de diversas publicações em revistas jurídicas renomadas e responsável por casos de destaque na mídia, João Vitor Rossi está à frente de seu escritório, comprometido com a entrega de soluções inovadoras e eficazes para os seus clientes.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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