Em defesa de uma melhor compreensão do fenômeno: o que é ser de direita ou ser de esquerda segundo o cientista político italiano Norberto Bobbio

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Recebi de um amigo professor um vídeo publicado por um influencer nas redes sociais que diz não poder haver pobres que se identificam com o ideário da chamada direita. Segundo o influencer, todos os pobres, devido à sua condição de pobreza, são necessariamente de esquerda. Isso lembra uma frase usada em redes sociais, em provocações, por pessoas identificadas com a esquerda, que dizem faltar livros de História a quem, apesar de pobre, se identifica com a direita. Disse a meu amigo que discordava do ponto de vista do influencer e que lhe daria um livro sobre o tema, "Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política", do cientista político italiano Norberto Bobbio. 

Afinal, nas Ciências Sociais, uma das referências quando tratamos da distinção política entre “Direita” e “Esquerda” é tal obra, escrita em 1994. Neste livro, Bobbio afirma que “direita e esquerda” são termos antitéticos (contrários) empregados para designar o contraste entre as ideologias e os movimentos em que se divide o universo do pensamento e das ações políticas, que é conflitual. Trata-se de uma contraposição que representa um típico modo de pensar por “díades” (pares de opostos) e que surgiu, segundo o autor, com a Revolução Francesa, hoje indicando programas contrapostos em relação a diversos problemas a serem resolvidos no plano da política, e que haja quem prefira substituir pela distinção entre “progressistas” e “conservadores”, embora tais distinções sejam bem mais complexas, como atestam as negociações entre “esquerda” e “direita” em aprovações de projetos de lei, por exemplo, em questões de diversos tipos, como as - ao tempo da escrita do livro - questões ambientais (e, hoje em dia, possivelmente as questões de Direito Penal  com direita e esquerda tendo, tantas vezes, em comum, perspectivas punitivistas em novas tipificações penais), etc. Por isso, para Bobbio esta é uma divisão imperfeita (é insuficiente, para ele, dividir o mundo político em apenas dois polos) e anacrônica (ao tempo da escrita do livro, o mundo havia mudado e essa díade não faria mais o mesmo sentido de antigamente), correspondendo a rótulos e a ficções diante da realidade. 

Apesar disso, Bobbio reconhece que há uma oposição entre “Socialismo” e “Liberalismo” e que tal díade “Direita” X “Esquerda” sobrevive. Se pessoas têm interesses próprios, assim como povos, grupos, partidos, etc, elas podem se agrupar em torno desses interesses. Por isso, “Direita” e “Esquerda” possuem um significado descritivo (é uma antítese) e um significado avaliativo (cria uma conotação axiologicamente positiva e uma conotação axiologicamente negativa a partir de juízos de valor). 

A um sociólogo, caberia a tarefa de ilustrar o significado descritivo e mostrar quais grupos se consideram ou podem ser considerados de “direita” ou de “esquerda” a partir de critérios objetivos, enquanto, por sua vez, um militante político tenderia a atribuir ao seu programa ou partido um valor positivo e ao programa ou partido dos adversários um valor negativo, o que valeria para militantes de “direita” e de “esquerda”. 

Por isso Bobbio adverte que estes termos devem ser usados com cautela: “o juízo de valor positivo ou negativo que conforme as circunstâncias se dá à direita ou à esquerda é parte da própria luta política” (BOBBIO, 1994: 76) 

Segundo Dino Cofrancesco, citado por Bobbio, “Direita” e “Esquerda” são “apenas dois modos possíveis de catalogar os diversos ideais políticos” (apud BOBBIO, 1994: 81), não sendo conceitos absolutos, mas relativos ao espaço político. Já Revelli, também citado por Bobbio, utiliza um critério para distinguir “Direita” e “Esquerda”: a distinção entre Igualdade e Desigualdade. Mas sugerindo que se pondere: (a) entre quem? Todos, muitos ou poucos? (b) em relação a quê? Direitos, vantagens econômicas, posições de poder, etc? (c) com base em que critérios? Mérito, capacidade, esforço, posição, “a todos a mesma coisa”, etc? Tais perguntas permitem grande combinação de variáveis e existem camadas de Igualdade ou Desigualdade. Ex: Voto masculino aos possuidores ou a não-analfabetos (menos igualitário) >> Voto apenas masculino >> Voto masculino e feminino (mais igualitário).

Segundo Bobbio, quando se diz que a esquerda é igualitária e que a direita é inigualitária, não significa que a esquerda quer todas as pessoas iguais em tudo, mas reduzir desigualdades e tornar desigualdades naturais menos duras. Dizer isso, segundo o cientista político, também não significa que a esquerda queira eliminar todas as desigualdades e a direita mantê-las, mas apenas que a esquerda é mais igualitária que a direita, por entender que a desigualdade social deriva do nascimento das pessoas em uma família em vez de outra ou em uma parte do mundo e não em outra, e entendendo que as desigualdades sociais são elimináveis, enquanto o inigualitário entende que as desigualdades sociais são naturais e inelimináveis. 

Assim, em resumo, para Bobbio, a divisão entre “Direita” e “Esquerda” se refere ao juízo positivo ou negativo sobre o ideal de igualdade, que vem da diferença de percepção e avaliação do que torna os homens iguais ou desiguais: seja a sociedade ou a natureza. E Bobbio distingue, tendo a Igualdade como um critério de distinção entre Direita e Esquerda e a Liberdade como critério de distinção entre Extremos ou Centro (a) a Extrema Esquerda (movimentos e ideias igualitários e autoritários); (b) a Centro-Esquerda (movimentos e ideias igualitários e libertários); (c) a Centro-Direita (movimentos e ideias libertários e inigualitários) e (d) a Extrema Direita (movimentos antiliberais e anti-igualitários).

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Por fim, Bobbio reforça que não possui juízo de valor, mas que pretende apenas mostrar como este é um debate vivo, ressalvando ainda que a Igualdade pode ser tomada negativamente como um “nivelamento” enquanto a desigualdade pode ser reconhecida positivamente como uma singularidade individual.

Enfim, que esta breve apresentação do livro de Bobbio possa servir ao meu caro amigo, para que o estimule a ler o livro do Bobbio com que lhe presentearei, em defesa de uma melhor compreensão do fenômeno sobre o que é ser de direita ou de esquerda segundo aquele cientista político. Meu amigo não precisará concordar com tal autor, mas são suas ideias compreensivas (na esteira da tradição "verstehende" da Sociologia) que fundamentam minha crítica a quem não admita que possa haver pobres de direita ou ricos de esquerda, por ser tal posicionamento uma orientação ideológica relativa a juízos de valor sobre igualdade e desigualdade. 

Sim, há pessoas sem determinados recursos materiais (pobres) que rechaçam ideias de esquerda, como a diminuição das desigualdades sociais através de políticas públicas de transferência de renda (que podem atendê-las ou a pessoas em situação análoga), por exemplo, ou mesmo ideias revolucionárias, de transformação radical da realidade, visando melhor distribuição da riqueza, ou seja, maior igualdade. Esteja a pessoa atuando profissionalmente no ofício que estiver ou mesmo submetida a um grau de precarização e vulnerabilidade muito grandes, como a informalidade ou o desemprego de longa duração. Mesmo os marxistas admitem isso, com as discussões sobre o conceito de Ideologia, que Althusser designou como as relações imaginárias dos indivíduos com suas condições materiais de existência.

E, sim, há pessoas ricas que se identificam com a esquerda, pois não há contradição entre ser mais igualitarista e ter um iPhone (ou um imóvel ou um carro ou um salário alto ou um padrão de vida que lhe propicie educação privada, saúde privada, viagens e idas a certas lojas e restaurantes): elas entendem que todas as pessoas deveriam poder ter acesso ao grau de riqueza e acesso a bens e serviços que elas conseguiram alcançar ou que o sistema econômico deveria ser menos injusto, possibilitando a mais pessoas terem acesso ao que a humanidade produz. 

Se parte da esquerda que julga a adesão às ideias de esquerda ser automática entre os pobres - ou automática após a leitura de um livro de História  -compreendesse melhor que são as crenças / paixões e os interesses que levam pessoas - ricas ou pobres - a aderirem a ideias de direita, em vez de sua posição na infraestrutura (no jargão marxista) determinar sua visão de mundo (não, não basta ser de uma classe social para se ter determinada "consciência de classe", como também diriam os marxistas), e a direita compreendesse melhor o que caracteriza o viés ideológico de esquerda (igualitarismo) e o viés ideológico de direita (inigualitarismo), teríamos um debate mais qualificado no campo político.

Neste debate mais qualificado, a esquerda buscaria convencer melhor as pessoas sobre suas propostas (em vez de atacar pessoas pobres que não se identificam com este viés), que precisam ser melhor apresentadas no mercado concorrencial de ideias políticas, para angariar eleitores, e a direita atacaria menos a esquerda, sem uso de mentiras, por exemplo, sobre doutrinação de crianças em escolas públicas e uma exagerada perseguição à chamada "agenda progressista" por parte de quem se considera "conservador", isto é, os defensores do iliberalismo anti-igualitário em seu livre-cambismo econômico por vezes cheio de uma obsessão por um controle da sexualidade e da moralidade alheias, característico da chamada "nova direita" (tão marcada pelo pentecostalismo e pelo agrarismo em nosso país) em vez de um enfoque sobre igualdade e desigualdade a partir de um ponto de vista mercadológico e antiestatista. 

Infelizmente, o livro do Bobbio anda sendo pouco lido, pouco debatido e pouco referido nas discussões sobre este tema, seja na direita ou na esquerda. Que este artigo possa convidar pessoas a esta leitura, independente de seu viés, levando esquerdistas a compreenderem melhor crenças e interesses de quem se identifica com a direita e as pessoas que se identificam com a direita a compreenderem melhor a base ideológica da esquerda (igualitarista) e a própria base ideológica da direita, que julgam estar aderindo, especialmente se tal compreensão puder levar as pessoas a um distanciamento dos extremismos, presentes à esquerda e à direita, mesmo que divirjam sobre a igualdade, contribuindo para que possa haver uma agenda supraideológica na defesa intransigente e comum dos Direitos Humanos e um distensionamento da polarização política no Brasil, buscando mais o que nos une e menos o que nos separa, ou seja, pontos de conexão em torno de pessoas a nosso redor, em outras experiências sociais para além do campo político, como a vida comunitária junto a parentes, vizinhos, colegas de trabalho ou estudo, frequentadores de um mesmo clube ou templo religioso, etc. A distinção política pode e deve haver, mas suas razões e significados devem ser melhor compreendidos para que possamos caminhar no sentido desta (re)conciliação da nossa sociedade, que aqui propomos. 

Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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