RESUMO
É certo que o consumidor pode ser pessoa física ou jurídica, não há mais espaço para essa discussão, pois tal assertiva está expressa na Lei n° 8.078, de 1990. A grande questão que se coloca é o enquadramento eventual dos entes federativos e os seus órgãos representativos como potenciais consumidores, em vista de uma suposta vulnerabilidade no mercado de consumo. No julgamento do REsp 1.772.730-DF foram assentadas premissas muito relevantes que permitem inferir que, em situações pontuais, a Administração Pública pode ser enquadrada como consumidora, em vista de uma vulnerabilidade técnica, científica ou econômica, em detrimento dos poderes de império conferidos à Administração no bojo de um contrato administrativo.
Serão demonstrados, desde as espécies de contratos administrativos — que a depender da classificação, implicará na mitigação do regime jurídico administrativo — passando por outras decisões do STJ em sentido contrário ao entendimento adotado no REsp 1.772.730-DF, pelas teorias maximalista, finalista e finalista aprofundada, até o entendimento do Tribunal de Contas da União sobre a aplicabilidade da legislação consumerista a determinados tipos de contratos administrativos.
Palavras-chave: Direito do Consumidor. Direito Administrativo. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.772.730-DF. Contrato administrativo. Administração Pública. Regime Jurídico Administrativo. Vulnerabilidade. Teoria finalista mitigada. Legislação consumerista. Doutrina. Tribunal de Contas da União.
INTRODUÇÃO
A controvérsia tratada no REsp 1.772.730-DF (mais precisamente nos EDcl no REsp 1.772.730-DF), cingia-se a uma ação de cobrança ajuizada pelo Distrito Federal em face do BRB (Banco de Brasília S/A) e de um particular, devido a uma transferência bancária equivocada realizada por aquela Sociedade de Economia Mista em favor de pessoa física diversa da que deveria ser beneficiada, com base em informação errônea repassada pela própria Administração do Distrito Federal ao BRB, no bojo de um contrato administrativo celebrado entre aquele ente estatal e a instituição financeira.
A despeito do STJ não ter adentrado no mérito dos pontos controvertidos na lide (fato inclusive que ensejou a oposição pela Procuradoria do DF de Embargos Declaratórios), aplicando ao caso a incidência da sua súmula 7, pois, segundo sustentado no voto relator, a verificação de uma suposta vulnerabilidade da Administração demandaria reexame do conjunto fático probatório, o que é vedado no manejo do Recurso Especial. O Acórdão, ainda assim, fixou importantes balizas, flexibilizando entendimentos anteriores do próprio Tribunal, que afastavam a incidência do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos.
DAS ESPÉCIES DE CONTRATOS ADMINISTRATIVOS
Inicialmente, em relação aos contratos da Administração (gênero), é oportuno sublinhar a distinção realizada pela doutrina, classificando-os em duas espécies, a saber: contratos de direito privado, em que as regras de direito privado constituem o substrato da avença, e os contratos administrativos strictu sensu, sujeitos a uma relação jurídica desigual, de verticalidade, típica do regime jurídico administrativo que confere amplos poderes ao ente público contratante em relação ao particular contratado. Acerca desses ajustes, vale a transcrição de trecho da obra do administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello que distingue, didaticamente, os contratos administrativos dos contratos da administração, verbis:
[...]
3. Uns e outros estão parificados pelo menos quanto às condições e formalidades para estipulação e aprovação, disciplinadas pelo Direito Administrativo; do que resultam, caso violadas as normas pertinentes, vícios específicos a estas figuras; vale dizer: caracterizados de acordo com os princípios e normas do Direito Administrativo.
4. Ditos contratos diferem entre si quanto à disciplina do vínculo. Isto é: enquanto os contratos de Direito Privado travados pela Administração regulam-se em seu conteúdo pelas normas desta província do Direito - ressalvados os aspectos suprarreferidos -, os "contratos administrativos". assujeitam-se às regras e princípios hauridos no Direito Público, admitida, tão só, a aplicação supletiva de normas privadas compatíveis com a índole pública do instituto.
(...)
[g.n.]
(MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo, p. 633: Malheiros, 2014)
Da mesma forma, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo reforçam essa distinção, verbis:
[...]
Expostos esses pontos doutrinários, podemos, de nossa parte, definir contrato de direito privado da administração pública como o acordo de vontades firmado entre a administração pública e particulares no qual a administração não figura na qualidade de poder público, sendo tal ajuste, por essa razão, regido predominantemente pelo direito privado.
Tal distinção, sustentada pela doutrina mais tradicional, embora com pouco efeito prático — já que tanto a Lei nº 8.666, de 1993 como a novel Lei nº 14.133, de 2021, preveem a aplicação das normas e princípios de direito público, no que couber, aos contratos privados da Administração, como os de locação e os relativos a operações de crédito — pode, excepcionalmente, configurada a hipótese de vulnerabilidade técnica, fática e econômica, por exemplo, do ente público atrair a incidência das normas do Direito do Consumidor, especialmente, em alguns dos contratos de direito privado da Administração, como os contratos bancários, a reboque do preconiza a súmula 297 do STJ.
DO ENTENDIMENTO FIXADO NO RESP 1.772.730-DF
De acordo com o aresto objeto do estudo, a despeito dos precedentes do STJ e da doutrina especializada, a Administração Pública pode ser considerada consumidora de serviços com fulcro no art. 2º do CDC, cuja redação alcançaria pessoas jurídicas de direito público e privado, notadamente, quando restar configurada a vulnerabilidade da Administração e a insuficiência do poder de império do regime jurídico administrativo para a proteção do interesse público tutelado, vejamos:
(...) Embora exista doutrina que defenda que o conceito de consumidor não abrange o Estado, por entender que não existe desequilíbrio entre o fornecedor e a Administração Pública, em virtude do regime jurídico administrativo, em que há supremacia do interesse público sobre o privado, e pela prestação, objeto e condições contratuais serem definidos pelo Estado, esse não é o entendimento que deve preponderar.
6. A Administração Pública pode ser considerada consumidor de serviços, porque o art. 2º do CDC não restringiu seu conceito a pessoa jurídica de direito privado, bem como por se aplicarem aos contratos administrativos, supletivamente, as normas de direito privado, conforme o art. 54 da Lei 8.666/1993, e, principalmente, porque, mesmo em relações contratuais regidas por normas de direito público preponderantemente, é possível que haja vulnerabilidade da Administração.
7. Apesar de a Administração Pública poder definir o objeto da licitação (bens, serviços e obras), o fato é que serão contratados os disponíveis no mercado, segundo as regras nele praticadas, de modo que o Estado não necessariamente estará em posição privilegiada ou diferente dos demais consumidores, podendo, eventualmente, existir vulnerabilidade técnica, científica ou econômica, por exemplo.
8. A existência das cláusulas exorbitantes que permitem a modificação das cláusulas contratuais e a revisão diante de fatos supervenientes, além das prerrogativas decorrentes do regime jurídico de direito público — como a possibilidade de aplicar sanções, fiscalizar e rescindir unilateralmente o contrato e recusar o bem ou serviço executado em desacordo com a avença ou fora das especificações técnicas —, conferem condição especial à Administração, dispensando-se o uso do CDC, na maior parte dos casos.
9. Contudo, a legislação especial relativa à contratação de bens, obras e serviços públicos não confere proteção direta à Administração Pública na posição de consumidora final ou usuária de serviços, sendo que a própria Lei de Licitações e Contratos prevê a aplicação supletiva das normas de direito privado.
10. Além disso, a Administração Pública celebra contratos regulados predominantemente por regras de direito privado, nos termos do art. 62, § 3º, da Lei 8.666/1993, como os de locação, seguro e mesmo os bancários, como é o caso dos autos.
11. Apesar de não ser o caso em exame, não se podem olvidar, ainda, os pactos feitos pelas pessoas jurídicas de direito privado que exploram atividade econômica: empresas públicas e as sociedades de economia mista. Nessa última situação, tais empresas não celebram contratos administrativos, não incidindo as cláusulas exorbitantes. Por não serem contratos administrativos não se justifica afastar a aplicação do CDC.
12. Portanto, diante de determinadas circunstâncias do caso concreto, quando os instrumentos previstos na legislação própria foram insuficientes ou insatisfatórios, deve ser assegurara a aplicação do Código de Defesa do Consumidor à Administração Pública. Nessa linha já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: RMS 31.073/TO, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 8/9/2010.
Percebe-se que o aresto sob análise faz alusão aos fundamentos de um antigo precedente da 2ª Turma do STJ que, muito embora tenha afastado a aplicabilidade do CDC no caso concreto, envolvendo um contrato administrativo de serviços publicitários, entendeu, na sua fundamentação, ser aplicável à espécie o manto protetivo do CDC quando configurada a posição de vulnerabilidade da Administração perante o fornecedor, verbis:
(...) Somente se admite a incidência do CDC nos contratos administrativos em situações excepcionais, em que a Administração assume posição de vulnerabilidade técnica, científica, fática ou econômica perante o fornecedor, o que não ocorre na espécie, por se tratar de simples contrato de prestação de serviço de publicidade”
(RMS 31.073-TO, j. 26.08.2010, rel. Min. Eliana Calmon)
Na sua obra, Manual de Direito do Consumidor, Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves fazem referência a esse entendimento mais recente do Tribunal da Cidadania, que fora inclusive objeto da Edição nº 160 do Jurisprudência em Teses do STJ. Arrematando, ao final, por acréscimo, que o Código de Proteção e Defesa dos Direitos do usuário dos serviços públicos da Administração Pública, instituído pela Lei n° 13.460, de 12 de junho de 2017, previu a incidência do CDC também nas relações por ele disciplinadas, quando configurada uma relação de consumo, ao que parece, com o intuito de especial proteção ao consumidor perante as concessionárias de serviços públicos tarifados, tais como os de água, luz e esgoto, verbis:
[…]
De todo modo, nos termos da tese n. 9, constante da mesma Edição n. 160 do Jurisprudência em Teses, “em situações excepcionais, a administração pública pode ser considerada consumidora de serviços (art. 2º do CDC) por ser possível reconhecer sua vulnerabilidade, mesmo em relações contratuais regidas, preponderantemente, por normas de direito público, e por se aplicarem aos contratos administrativos, de forma supletiva, as normas de direito privado (art. 54 da Lei n. 8.666/1993)”. Percebe-se, portanto, que a teoria finalista aprofundada pode ser aplicada em favor da administração pública, como na situação concreta em que figura como parte em um contrato bancário (STJ – REsp .772.730/ DF – Segunda Turma – Rel. Min. Herman Benjamin – j. 26.05.2020 – DJe 16.09.2020).
Para encerrar este tópico, destaco a Lei 13.460, de junho de 2017, que disciplina a participação, a proteção e a defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública. Como está claro pelo teor do seu art. 1º, § 2º, inc. II, a aplicação dessa norma não afasta a necessidade de cumprimento do disposto no Código de Defesa do Consumidor, quando caracterizada a relação de consumo na prestação desses serviços. É imperioso, portanto, o diálogo entre as duas normas, para a efetiva proteção do usuário-consumidor dos serviços públicos.
Deve ser ressaltado, entrementes, que o entendimento firmado no REsp 1.772.730-DF, que retomou tema já debatido no RMS 31.073/TO, de Relatoria da Min. Eliana Calmon, vinha sendo rechaçado nas últimas decisões daquela Egrégia Corte. É dizer, o STJ vinha adotando o entendimento da incompatibilidade das cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos com a legislação consumerista, notadamente em função do regime jurídico administrativo já assegurar à Administração Pública inúmeras prerrogativas nas relações contratuais travadas com o particular, fato que, por si só, esvaziaria a necessidade de incidência do CDC nessas relações jurídicas, conforme ficou assentado no REsp 1.661.184/DF e no REsp 1.745.415/SP, cujas ementas estão abaixo reproduzidas:
INAPLICABILIDADE. CONTRATO CIVIL-ADMINISTRATIVO. DENUNCIAÇÃO A LIDE.
INVERSÃO DO ONUS DA PROVA. DECISÃO REFORMADA.
1. É inaplicável as regras do Código de Defesa do Consumidor as relações jurídicas travadas entre o Estado e empresa bélica com a qual adquire armamentos para o uso de seus agentes de segurança.
2. Não se enquadra, como consumidor por equiparação (bystander), o policial militar que, é atingido acidentalmente pela própria arma de fogo cedida por sua corporação, devendo eventual responsabilidade civil da fabricante ser apurada à luz da legislação civil ordinária, pois a relação jurídica da qual resultou o acidente não pode ser caracterizada como de consumo, sendo oriunda de contrato administrativo. Inteligência do art. 17 do CDC. Precedente do Superior Tribunal de Justiça.
3. Afastadas as regras do diploma consumerista, é deferido a empresa acionada o direito de denunciar a lide sua seguradora por eventual responsabilidade que lhe seja imputada no processo judicial, à luz do disposto no art. 70, III, do CPC/1973 e art. 125, II, do CPC/2015, assim como se afasta a inversão do ônus da prova previamente deferida.
4. Agravo de instrumento conhecido e provido. (e-STJ, fls. 513/514 – REsp 1.661.184-DF, Rel Min Moura Ribeiro, publicado em 16/05/2017).RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL (CPC/1973). AÇÃO DE DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA. FALSIFICAÇÃO DE ASSINATURA EM CONTRATO DE FIANÇA BANCÁRIA. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA ACOLHIDA. FORO DO DOMICÍLIO DO RÉU. ALEGAÇÃO DE RELAÇÃO DE CONSUMO. DESCABIMENTO. FIANÇA BANCÁRIA ACESSÓRIA A CONTRATO ADMINISTRATIVO. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 297/STJ.
1. Controvérsia acerca do foro competente para julgamento de ação de declaração de inexistência de relação jurídica deduzida com base na alegação de falsificação de assinatura em contrato de fiança bancária acessória a contrato administrativo.
2. Nos termos da Súmula 297/STJ, "o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras".
3. Nos termos do art. 101, inciso I, do CDC, a ação de responsabilidade do fornecedor "pode ser proposta no domicílio do autor".
4. Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos, tendo em vista as prerrogativas já asseguradas pela lei à Administração Pública. Julgado específico desta Corte Superior.
5. Inaplicabilidade também, por extensão, ao contrato de fiança bancária acessório ao contrato administrativo.
6. Impossibilidade de aplicação da Súmula 297/STJ a contrato bancário que não se origina de uma relação de consumo.
7. Competência do foro do domicílio do réu para o julgamento da demanda, tendo em vista a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à espécie.
8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
(REsp n. 1.745.415/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 14/5/2019, DJe de 21/5/2019.)
Nessa linha, é importante pontuar que a definição de consumidor, à luz do art. 2º do CDC, tem como pressuposto a utilização do bem ou serviço como destinatário final, sendo certo que existem duas grandes correntes acerca desse entendimento, a maximalista e a finalista. Aquela enxerga o CDC como o novo regulamento do mercado de consumo brasileiro, à medida em que teria instituído normas para todos os agentes do mercado, independentemente da finalidade que será dada ao bem ou serviço consumido, quer ela seja a revenda com o lucro embutido no novo preço, quer ela seja para o atendimento de necessidades pessoais. Enquanto, a corrente finalista, que é majoritária, tem como norte a utilização do bem ou serviço como consumidor final, isto é, sem a intenção de reinseri-lo no mercado, nas palavras de Leonardo Roscoe Bessa, Herman V. Benjamin e Cláudia Lima Marques:
(...) Os finalistas propõem, então, que se interprete a expressão “destinatário final” do art. 2.° de maneira restrita, como requerem os princípios básicos do CDC, expostos nos arts. 4.° e 6.°.
Destinatário final seria aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta interpretação teleológica, não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência – é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu. Neste caso, não haveria a exigida “destinação final” do produto ou do serviço, ou, como afirma o STJ, haveria consumo intermediário, ainda dentro das cadeias de produção e de distribuição.
Esta interpretação restringe a figura do consumidor àquele que adquire (utiliza) um produto para uso próprio e de sua família, consumidor seria o não profissional, pois o fim do CDC é tutelar de maneira especial um grupo da sociedade que é mais vulnerável.
O STJ adota a teoria finalista aprofundada ou mitigada que amplia o conceito de consumidor para alcançar a pessoa física ou jurídica que, embora não seja a destinatária final do produto ou serviço, esteja em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica em relação ao fornecedor. Registra-se a adoção de tal corrente de longa data pelo STJ, o que, no nosso sentir, confere ainda mais coerência e idoneidade à possibilidade de aplicação do CDC, ainda que de maneira excepcional, aos contratos celebrados pelas Administração Pública. Já que, a depender do caso concreto, uma administração municipal, por exemplo, pode se encontrar em extrema desvantagem técnica e informacional em relação a um grande fornecedor e a mera invocação das cláusulas exorbitantes do contrato administrativo, ainda que possam possibilitar a sanção administrativa ao particular, talvez seja insuficiente para que a administração possa ter garantido o atendimento de uma necessidade pública que demandou a sua ida ao mercado.
Por fim, é oportuno registrar que o Tribunal de Contas da União, responsável, dentre outras atribuições, pelo julgamento das contas dos ordenadores de despesa da Administração Pública Federal tem entendimento já há muito tempo consolidado na Decisão nº 537/1999- Plenário, de que, quando usuária de serviços sujeitos a preços públicos ou tarifas (luz, água, esgoto, correios etc), a Administração não gozaria de posição privilegiada, já que a avença não seria um contrato administrativo típico, ainda que o fornecedor não integre a Administração Pública.
De modo que, de maneira subsidiária, à luz do art. 54 da Lei nº 8.666, de 1993 e, atualmente, do art. 89 da Lei nº 14.133, de 2021, poderiam ser invocadas as regras de direito civil ao caso, incluindo as normas consumeristas. Abaixo reproduzimos os principais trechos da decisão do TCU que inclusive faz menção a um antigo parecer jurídico de lavra do Consultoria Jurídica do Ministério de Minas e Energia, Parecer Conjur/MME n.º 235/96, e a um Parecer Jurídico da Advocacia-Geral da União, Parecer nº QG-170, de 1998, ambos favoráveis a reforma de entendimento que então vigorava à época, o qual vedava a aplicação de multas moratórias pelas Concessionárias aos Órgãos e Entidades da Administração Pública quando estivessem inadimplentes, vejamos:
[…]
26. Neste tipo de contrato, ao usuário, seja ele pessoa física ou jurídica, de direto privado ou público, não é dado discutir as condições da prestação do serviço, ou aceita as normas impostas pelo prestador ou, caso contrário, recorre administrativa ou judicialmente, para que possa ver apreciadas suas reivindicações.
27. Como se vê, na relação jurídica decorrente do contrato de consumo de energia elétrica não age a Administração com prerrogativas típicas de Poder Público, diferentemente do que ocorre na relação jurídica existente entre o poder concedente e a concessionária de energia elétrica. Trata-se, pois, de contrato privado, para alguns também chamado semipúblico ou ainda administrativo de figuração privada.
(...)
52. Nenhuma razão, portanto, justifica o tratamento diferenciado dos órgãos públicos, como consumidores de energia elétrica. Do ponto de vista político, o interesse público exige que o serviço seja prestado com regularidade, continuidade, eficiência e segurança, atualidade e generalidade (Lei n.° 8.987/98, art. 6 °, § 1°). Sob o aspecto jurídico, 'não existe qualquer distinção entre os usuários', pelo que todos devem contribuir para a manutenção e a continuidade do serviço. (TCU – Decisão 537/1999 – Plenário).
CONCLUSÃO
De todo o exposto, vê-se que o afastamento inexorável do regramento e dos princípios do Código de Defesa do Consumidor à Administração Pública, sob o fundamento da incidência das cláusulas exorbitantes, típicas do regime jurídico administrativo, não parece consentâneo à natureza das diferentes espécies de contratos celebrados pela Administração e às situações de vulnerabilidade técnica, científica, fática ou econômica que ela pode se sujeitar em relação ao fornecer. De modo que, no nosso sentir, parece-nos bastante razoável, em caráter subsidiário, a aplicação da legislação consumerista aos contratos administrativos, atendidas as condições de vulnerabilidade, notadamente porque a superioridade do ente público em tais avenças é presumida.
REFERÊNCIAS
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