É possível regularizar a guarda de um animal silvestre em cativeiro?

12/03/2024 às 16:41
Leia nesta página:

Depende. Mas a resposta, em alguns casos, é que é possível manutenção de animal silvestre em ambiente doméstico quando já adaptado ao cativeiro por muitos anos, e quando as circunstâncias fáticas não recomendarem o retorno ao seu habitat natural.

Não se está aqui incentivando, de jeito nenhum, a busca e a guarda de animais silvestres que vivem em ambiente natural para uma posterior regularização, porque qual pedido de guarda definitiva demanda provas.

O que se quer dizer, por outro lado, é que há de se analisar, sobre o propósito e finalidade da Lei Ambiental, que sabidamente é voltada à melhor proteção do animal, em casos que este já vive em ambiente doméstico há muitos anos.

Se é verdade que a legislação deve buscar a efetiva proteção dos animais, então seria desarrazoado permitir eventual apreensão de um animal silvestre para duvidosa reintegração ao seu habitat, bem como, seria difícil identificar qualquer vantagem em transferir a posse de um animal domesticado para um órgão da Administração Pública, centro de triagem ou zoológico.

Com efeito, em um contexto em que o animal já possui largo convívio com a família e recebe afeto e todos os cuidados necessários para sua saúde e bem-estar, a sua permanência no âmbito familiar ou com seu tutor, normalmente não redunda danos ao meio ambiente, ao contrário, preserva o vínculo afetivo já estabelecido ao longo dos anos.

Em casos envolvendo animais silvestres, a jurisprudência, mais do que a mera aplicação do texto da lei, tem buscado melhor adequar os interesses postos em conflito, ponderando a razoabilidade das autuações e apreensões, sempre atentando para as peculiaridades do caso concreto, em especial, quando houver dúvidas se a soltura do animal em seu ambiente natural lhe trará algum benefício.

Impossibilidade de soltura em ambiente natural de um animal silvestre domesticado

Um animal silvestre que convive com humanos desde filhote e é adaptado à vida em domicílio não possui qualquer condição de ser liberado em outro habitat ou ainda ser entregue em algum Centro de Triagem, Jardim Zoológico ou entidades assemelhadas.

Mesmo sob a responsabilidade de técnicos, animais silvestres domesticados não terão o cuidado e amor devido diante da sua convivência adquirida ao longo de anos com seu tutor em um ambiente tranquilo e familiar.

A reintegração de um animal silvestre em local diverso e longe do seu tutor pode ocasionar-lhe mais prejuízos do que benefícios, considerando que um animal domesticado já possui inúmeros hábitos domésticos, tais como alimentação, banho, brincar, dormir e acordar.

Além disso, a sua reabilitação e o consequente retorno a natureza, embora em alguns casos seja viável, é extremamente complicada em casos nos quais há longo tempo em convívio doméstico.

Regularizar animal silvestre domesticado

É firme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual é possível a manutenção em ambiente doméstico de animal silvestre já adaptado, desde que não haja indícios de maus tratos e quando a devolução ao seu habitat natural traria mais prejuízos do que ganhos ao animal em termos de proteção e bem estar. Verbis:

ADMINISTRATIVO-AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AOS ARTS. 480, 481 DO CPC/1973 E AO ART. 1.022 DO CPC/2015. APREENSÃO DE ARARAS. ANIMAIS ADAPTADOS AO CONVÍVIO DOMÉSTICO. POSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DA POSSE DA RECORRIDA. REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. SÚMULA 7/STJ. [...].

In casu, o Tribunal local considerou as condições fáticas que envolvem o caso em análise para concluir que os animais deveriam continuar sob a guarda da recorrida, uma vez que eram criados como animais domésticos.

A jurisprudência do STJ tem admitido a manutenção em ambiente doméstico de animal silvestre que já vive em cativeiro há muito tempo, notadamente quando as circunstâncias do caso concreto levantadas nas instâncias ordinárias não recomendem o retorno da espécime ao seu habitat natural.

Não se pode olvidar que a legislação deve buscar a efetiva proteção dos animais, finalidade observada pelo julgador ordinário.

Incidência da Súmula 7/STJ. Recurso Especial não provido. (STJ - REsp: 1650672 SC 2017/0018519-3, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 20/04/2017, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/05/2017).

A jurisprudência de Tribunais Estaduais e Federais tem seguido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de permitir a manutenção e regularização de ave silvestre que há muito convive com seu tutor, sem notícia de maus-tratos.

Conforme entendimento jurisprudencial, um animal silvestre que já vive sob a dependência e convivência do seu tutor de forma estável e duradoura e, com garantias reais de que está bem, vive em ambiente acolhedor e afetuoso, com boa alimentação e higiene, livre de doenças e predadores, assim deve permanecer.

Jurisprudência sobre regularização de guarda de animal silvestre

A jurisprudência consolidou entendimento de que animal silvestre há muito adaptado em ambiente doméstico não deve ser devolvido à natureza, sob pena de não trazer benefício ao animal, sendo viável sua regularização e permanência com seus tutores:

STJ: Esta Corte Superior consolidou entendimento da possibilidade de manutenção de animal silvestre em ambiente doméstico quando já adaptado ao cativeiro por muitos anos, em especial, e quando as circunstâncias fáticas não recomendarem o retorno ao seu habitat natural, como ocorreu no caso dos autos. Precedentes: AgInt no REsp. 1.389.418/PB, Rel. Min. OG FERNANDES, DJe 27.9.2017; AgInt no REsp. 1.553.553/PE, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 28.8.2017. 2. Agravo Interno do IBAMA desprovido. (STJ - AgInt no AREsp: 668359 RS 2015/0043888-8, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 28/11/2017, T1 - PRIMEIRA TURMA, DJe 05/12/2017).

TRF-3: Além disso, esse entendimento encontra-se em harmonia com a jurisprudência que admite a manutenção de animal silvestre em ambiente doméstico, quando já adaptado a este por muitos anos e, notadamente, quando as circunstâncias fáticas não recomendarem o retorno ao seu habitat natural. Precedentes. (TRF-3 - 00195625720104036100/SP, Relator: Desembargador Federal MONICA AUTRAN MACHADO NOBRE, Data de Julgamento: 01/05/2020, 4ª Turma).

TRF-4: A devolução do animal silvestre ao seu habitat natural, na hipótese em análise, não seria razoável, uma vez que encontrava-se protegido e sob cuidados adequados e necessários à garantia e manutenção de sua saúde e bem-estar, até seu óbito. Dano maior ao animal seria causado na hipótese de sua devolução à vida selvagem, o que se contrapõe ao objetivo legal de proteção ao meio ambiente, incluída a fauna. (TRF-4 - AC: 5006235-15.2016.4.04.7104, Relator: FRANCISCO DONIZETE GOMES, Data de Julgamento: 04/05/2020, PRIMEIRA TURMA)

TRF-5: Uma vez que o papagaio "Maradona" convive com a agravante por mais de 06 (seis) anos, sendo bem tratado em termos de alimentação, medicação e assistência veterinária, apresenta-se razoável sua permanência no ambiente doméstico sob sua guarda, diante da ausência de prejuízo ao julgamento da ação originária. (TRF-5 - AI: 08013337420204050000, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL FREDERICO WILDSON DA SILVA DANTAS. 02/03/2021, 4ª TURMA).

TJPR: A respeito da possibilidade de guarda doméstica de papagaios, o Superior Tribunal de Justiça possui o entendimento de que esta é possível quando o animal silvestre já está adaptado por muitos anos e quando as circunstâncias fáticas demonstram que não é recomendado o seu retorno ao habitat natural. (TJ-PR – APL 0024911-89.2018.8.16.0013, Relator: Hamilton Rafael Marins Schwartz, 4ª Câmara Cível, 07/03/2022).

TJDF: A ave silvestre adaptada ao cativeiro por longo período de tempo - in casu, 20 anos - pode ser mantida em ambiente doméstico, especialmente quando não recomendado o seu retorno ao habitat natural. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. (TJ-DF 0717929-09.2018.8.07.0000, Relator: SANDOVAL OLIVEIRA, Data de Julgamento: 06/02/2019, 2ª Turma Cível).

TJMS: Na espécie, caracterizada a posse duradoura do animal e a sua boa condição de saúde, a autuação e a apreensão de animal silvestre, para posterior reinserção em seu habitat natural além de se mostrar medida desproporcional, pode não trazer o benefício esperado à ave, porquanto acostumada a convivência com o particular. (TJ-MS - MS 0801673-77.2018.8.12.0026, Relator: Des. Paulo Alberto de Oliveira, 29/10/2021, 3ª Câmara Cível. 04/11/2021)

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

TJMG: No caso vertente, verifica-se que o papagaio chamado "Zé" é tratado como animal doméstico há cerca de 30 (trinta) anos pelos seus criadores, tendo estabelecido vínculo afetivo com os mesmos, não existindo relato de indícios de maus tratos, além do que se encontra com a saúde debilitada. (TJ-MG - AI: 10000150296028001 MG, Relator: Claret de Moraes, Data de Julgamento: 31/01/0016)

TJGO: Animais silvestres criados como animais domésticos. Risco na reinserção ao habitat natural. Verificando-se que as aves silvestres foram criadas como animais domésticos desde a tenra idade, certamente não desenvolveram os instintos de caça e de sobrevivência e correm sério risco de perecimento ao serem reinseridos num meio ambiente em que terão o convívio direto com outros animais. (TJ-GO - Reexame Necessário: 00662541420168090051, Relator: CARLOS ALBERTO FRANÇA, Data de Julgamento: 09/11/2017, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação).

TJSP: Ajuizamento de ação para assegurar a manutenção da guarda de ave que se encontra com a família da autora há mais de 20 anos – Acolhimento – Necessidade – Animal adaptado ao convívio doméstico – A prioridade é o bem-estar do animal, que pode ser prejudicado com a retirada do local em que se encontra e que se deu a sua criação – Documentação que afasta qualquer condição de maus-tratos – Caracterização de animal silvestre mitigada pelo longo período em que se encontra em âmbito doméstico. (TJ-SP 1005569-65.2015.8.26.0510, Relator: Alvaro Passos, DJ: 29/04/2016, 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente).

Contra quem propor a ação de regularização de animal silvestre

É uma questão que merece ser analisada caso a caso. Em regra, se o tutor do animal silvestre sofreu uma fiscalização e teve o animal apreendido, mesmo que figuro como fiel depositário, o réu na ação de regularização será o órgão ambiental que realizou a fiscalização.

Por outro lado, se o tutor do animal silvestre não foi alvo de fiscalização, nem teve seu animal apreendido, a ação de regularização de guarda definitiva de animal silvestre deverá ser proposta, para nós, contra o IBAMA.

Isso porque, a Lei Complementar 140/2011 que regulamentou o art. 23 da Constituição Federal quanto à competência comum administrativa em matéria ambiental, estabeleceu regras de cooperação e delimitando competências.

A competência do órgão estadual, segundo o art. 8º da Lei 140/2011, é restrita à aprovação do funcionamento de criadouro de fauna silvestre (inciso XIX) e à apanha de espécimes da fauna silvestre, ovos e larvas destinadas à implantação de criadouros e à pesquisa científica (inciso XVIII), nada mencionando acerca de autorização para guarda de espécie, em contexto domiciliar e individual, sem fins de pesquisa nem de reintrodução da natureza, ou seja, fora do contexto de um criadouro.

Por outro lado, extrai-se da leitura conjunta dos incisos XVI, XX e XXI, do art. 7º, da Lei 140/2011, que compete à União controlar a apanha e o transporte de espécimes da fauna silvestre, ovos e larvas, salvo quando destinadas à implantação de criadouros e à pesquisa científica (competência administrativa dos Estados), bem como o manejo da fauna silvestre que extrapole o território estadual, como é exemplo a migração de fauna entre Estados. Nesse sentido, já decidiu o e. TRF-4:

AMBIENTAL. IBAMA. LEGITIMIDADE PASSIVA. AVES SILVESTRES. PAPAGAIO. CONVIVÊNCIA DOMÉSTICA. INEXISTÊNCIA DE LICENÇA. MANUTENÇÃO DA GUARDA. PROPORCIONALIDADE/RAZOABILIDADE.

O IBAMA é parte legítima para figurar no polo passivo, já que pertence à autarquia a responsabilidade pela autorização da permanência do animal com os autores.

(TRF4, AC 5006731-79.2018.4.04.7102, QUARTA TURMA, Relator RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA, juntado aos autos em 18/07/2020)

Portanto, se o tutor pretende a autorização de guarda definitiva de animal pertencente à fauna silvestre, a ser mantido em sua residência, mediante tratamento adequado, não se relacionando com a hipótese de funcionamento de criadouro (art. 8º, XIX).

Logo, não há dúvidas de que existe interesse federal especializado, evidenciando a competência e consequente legitimidade do IBAMA de constar no polo passivo da presente relação processual.

Fonte: https://advambiental.com.br/artigo/e-possivel-regularizar-a-guarda-de-um-animal-silvestre-em-cativei...

Sobre o autor
Cláudio Farenzena

Escritório de Advocacia especializado e com atuação exclusiva em Direito Ambiental, nas esferas administrativa, cível e penal. Telefone e Whatsapp Business +55 (48) 3211-8488. E-mail: [email protected].

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos