Shut Up and Dance (Manda Quem Pode) e a Justiça Vigilante

Leia nesta página:

Análise jurídica de Black Mirror, terceira temporada, episódio 3: Shut Up and Dance (Manda Quem Pode).

Deveríamos Algum Dia Fazer Justiça com as Próprias Mãos?

Por Juliele Maria Sievers e Luiz Henrique da Silva Santos, Black Mirror e a Filosofia. Tradução de Ícaro Aron Paulino Soares de Oliveira.

We hope, that you choke, that you choke.

Esperamos que você sufoque, que você sufoque.

- (Radiohead, “Exit Music (For a Film)”).

Quando Manda Quem Pode começa, simpatizamos com Kenny enquanto ele é chantageado por hackers de computador que ameaçam divulgar um vídeo dele se masturbando vendo pornografia. Afinal, que adolescente (ou adulto) não faz isso? Como observa Hector, seu colega “chantageador”, “a porra do Papa provavelmente faz isso”. Qualquer um ficaria humilhado se os seus momentos mais privados fossem transmitidos publicamente. “Os viados do trabalho te chamam de Punheteiro”, prevê Hector. “Não são apenas semanas. Estamos falando de anos aqui. As fotos ficam no Google como uma maldição cigana. Não há cura para a Internet.” Temos pena dele, pois os hackers enviam Kenny para uma série de tarefas, incluindo roubar um banco e lutar contra alguém até a morte. Afinal, ele foi tão gentil com aquela garotinha que deixou o brinquedo no restaurante, certo? Kenny é o mocinho; os hackers são os bandidos.

Mas à medida que o episódio termina, nossas suposições se revelam errôneas. Apesar da obediência de Kenny, os hackers compartilham o vídeo e sua mãe liga, gritando: “O que você fez, Kenny? Estão dizendo que são crianças! Que você está olhando para crianças!” Ele não estava apenas vendo pornografia, mas pornografia infantil! Nossa atitude muda instantaneamente; sua interação com aquela garotinha no restaurante ganha uma dimensão totalmente nova. Kenny não é uma vítima, ele é um vilão! Os hackers são os vigilantes. Eles capturam e punem criminosos quando as autoridades convencionais não conseguem. Comemoramos porque Kenny teve o que merecia. “A justiça foi feita.” Como diz a música final do Radiohead: “Esperamos… que você sufoque… que você sufoque” .

Mas depois que a adrenalina passa, nos perguntamos: deveríamos realmente ter comemorado? O que Kenny fez foi deplorável, claro, mas por que desejamos que tais coisas aconteçam a pessoas deploráveis? Os hackers deveriam ter notificado a polícia? Ou devemos aplicar este tipo de punição para realmente alcançar a justiça? Se sim, o que isso nos diz sobre a nossa noção de justiça? Gostaríamos de viver em uma sociedade que incentiva os vigilantes? Deveríamos nos tornar vigilantes?

A EFICÁCIA DA CHANTAGEM

Por que seguimos a lei? Instintivamente, a resposta é “a ameaça de punição”. Não queremos ir para a cadeia. Mas qual é a diferença entre a ameaça de prisão do governo e a ameaça de exposição do chantagista? Por que geralmente pensamos que somos obrigados a obedecer às leis dos primeiros, mas não às exigências dos últimos? Talvez seja porque as sanções legais são sistematizadas, centralizadas e previamente fixadas a determinados comportamentos, ao passo que as ameaças dos chantagistas não o são. As exigências do chantagista são apresentadas após a ação da vítima.

Se o chantagista procura punir falhas morais, a questão parece mais complicada. Embora o impulso para punir as faltas morais pareça natural, e a parte infratora provavelmente saiba de antemão que os crimes morais merecem punição, as sanções e punições por faltas morais são menos “fixas” do que as legais. Além do mais, quanta pressão deveríamos sentir para obedecer às regras morais é menos clara, e o que é moralmente certo e errado é frequentemente motivo de debate. Se o chantagista está tentando promover regras morais ou religiosas e condenar outros por violá-las, então o chantagista está envolvido em vigilantismo. E uma vez que o vigilantismo pode por vezes ser mais eficaz do que as normas legais para dar aos criminosos o que muitos pensam que eles realmente merecem – “uma mera pena de prisão é demasiado boa para Kenny” – alguns podem argumentar que deveríamos começar a admitir, encorajar e até confiar no vigilantismo.

Como ilustra Manda Quem Pode, no entanto, o vigilantismo não é eficaz em todos os sentidos. Em primeiro lugar, para que a punição cumpra eficazmente o seu propósito, a pessoa que está a ser punida precisa de saber que está a ser punida e também precisa de saber os termos da sua punição. O vigilantismo não pode garantir isso. Veja Kenny, por exemplo. Assim como o espectador, quando se depara com a “luta até a morte”, ele pode razoavelmente presumir que o sobrevivente será libertado. A “sentença desigual” resultante – um pedófilo é morto e o outro sai em liberdade com um monte de dinheiro – sugeriria que o objetivo dos hackers não é a justiça. (Em uma versão inicial do roteiro, os hackers eram apenas “algumas pessoas em um cibercafé… fazendo isso para rir… uma competição para ver quem conseguia foder mais com as pessoas”.1) Na verdade, mesmo depois de ser preso, Kenny pode ainda não saber que está sendo punido por vigilantes. Somente o espectador cuidadoso, que percebe que as punições que os outros personagens recebem parecem ter a intenção de refletir a gravidade do crime moral correspondente – os pedófilos são mortos e presos, os maridos traidores perdem suas famílias, o CEO racista perde o emprego – percebe que dar às pessoas o que elas merecem moralmente parece ser o objetivo dos hackers.

Apesar desse objetivo, a natureza subjetiva do vigilantismo não pode garantir que as coisas sempre saiam tão limpas e organizadas. Depois de entregar a Kenny o pacote com o bolo, o “Entregador” diz a Kenny: “Apenas [faça] o que eles disserem e, depois de fazer isso, você estará fora”. Mas, claro, Kenny não tem ideia se isso é verdade. E, no final das contas, não há como saber se a esposa de Hector o matará de raiva ou se o CEO será levado ao suicídio. O vigilantismo não pode garantir eficazmente que a punição realmente se adequará ao crime.

Assim, as penas dos vigilantes tendem a ser desproporcionais e marcadas por traços de vingança e retaliação. Foram estes tipos de problemas que levaram os governos (como o do Império Romano) a substituir punições não institucionalizadas como o apedrejamento, a tortura ou o ostracismo por procedimentos legais objetivos à medida que as leis evoluíam. Na verdade, grande parte do nosso sistema jurídico atual deriva da tradição do direito romano. Pense em todas as expressões latinas que ainda são usadas em contextos jurídicos. Uma delas, nulla poena sine lege (que significa “nenhuma pena sem lei”), prescreve que a punição só pode ocorrer se uma norma legal existente for violada, e que a punição só pode ser aplicada pelo Estado. Assim a justiça passa a ser um aspecto mais objetivo, em contraste com a subjetividade envolvida nos casos de chantagem.

Apesar dos problemas com a justiça vigilante, ainda se pode chegar ao final do episódio com a impressão de que as vítimas da chantagem dos hackers receberam o que mereciam – e, nessa medida, o que os hackers fizeram foi bom e até necessário. “Talvez os vigilantes possam ir longe demais, mas se esses vigilantes não tivessem agido, Kenny e os outros teriam simplesmente escapado impunes.” Como veremos, porém, existem mais razões legais e filosóficas para se ter cuidado com o vigilantismo.

O QUE HÁ DE ERRADO EM FAZER A JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS?

Há muitas razões pelas quais alguém pode assumir a obrigação de fazer cumprir normas legais ou morais quando as autoridades convencionais são incapazes: controle do regime, controle do crime, controle social, e assim por diante. E deveríamos diferenciar o vigilantismo “suave”, como a Vigilância da Vizinhança, do vigilantismo “duro” que vemos em Manda Quem Pode, onde os vigilantes assumem a responsabilidade de punir os criminosos. A primeira visa a prevenção do crime; geralmente é aceitável e perfeitamente legal. Esta última, porém, opera à margem da lei . Como os hackers do episódio estão coagindo suas vítimas a realizar ações ilegais, o que estão fazendo é tecnicamente ilegal (mesmo que não estejam pessoalmente roubando bancos ou matando pessoas). É claro que nem tudo o que é ilegal é imoral, mas existem outros problemas com o vigilantismo.

Por exemplo, não há garantia de que o vigilante realmente saiba que a vítima é culpada. No episódio, provavelmente os hackers o fazem; eles têm provas diretas (fotos, vídeos, e-mails) da culpa de cada pessoa. Mas a propensão da natureza humana para tirar conclusões precipitadas, especialmente no que diz respeito à culpa, é a principal razão pela qual os sistemas jurídicos protegem contra processos ilícitos com uma presunção de inocência.

Pior ainda, o vigilantismo muitas vezes atinge injustamente determinadas populações. No episódio, as vítimas são selecionadas aleatoriamente: são quem teve o azar ou a burrice de baixar um programa com o vírus espião dos hackers e fazer algo que merecesse punição. Na realidade, porém, o vigilantismo muitas vezes mostra preconceito; é um fenômeno social e político em que as vítimas são frequentemente membros de grupos economicamente marginalizados. Por exemplo, Manuel Mireanu aponta como isso aconteceu na Itália e na Hungria.

O vigilantismo ilustra a cumplicidade entre certas partes do Estado e certas partes da sociedade, na defesa da violência que é legitimada como segurança. Na Itália, esta cumplicidade implica que os imigrantes ilegais e os sem-abrigo do Norte da África e da Europa Oriental estão a ser marginalizados, excluídos e agredidos por patrulhas vigilantes, tendo como pano de fundo os discursos anti – imigrantes do Estado. Na Hungria, a mesma cumplicidade implica que patrulhas de extrema – direita assediem e espanquem a população cigana, no contexto de uma repressão estatal generalizada à população cigana. 2

Muitas vezes, o único crime de que as vítimas dos vigilantes são culpadas é o “crime de ser diferente”. O vigilantismo é simplesmente usado como desculpa para legitimar a violência contra grupos marginalizados. Este fato por si só parece ser razão suficiente para rejeitar o vigilantismo, mesmo que em algum caso particular o alvo de um vigilante seja culpado.

É claro que os sistemas jurídicos também não são perfeitos. Eles podem ser corruptos, condenar inocentes, libertar culpados e aplicar punições injustamente. Mas isso não significa que devemos tolerar o vigilantismo. Os sistemas jurídicos visam pelo menos a aplicação sistemática de sanções pré–estabelecidas por uma autoridade presumivelmente neutra; pelo menos os sistemas jurídicos pretendem proporcionar-lhe um julgamento justo e protegê-lo contra a corrupção. O vigilantismo não. Visto que os vigilantes não se reportam a uma autoridade superior, devemos perguntar-nos quem vigia os vigias?

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Ainda assim, estas preocupações não apagam a satisfação que o final do episódio produz. Atos específicos de vigilantismo, praticados contra partes que sabemos serem culpadas, ainda produzem um sentimento de que a justiça foi feita. Mas isto faz-nos perguntar – em primeiro lugar, o que é exatamente a justiça? É algum padrão objetivo, um ideal que todas as sociedades têm procurado? Ou é algo criado pelas sociedades?

COMO DEFINIR “JUSTIÇA” AQUI E AGORA?

Do ponto de vista jurídico, a noção de justiça evoluiu. No início, a justiça era o principal valor de um sistema jurídico, conferindo às leis o seu estatuto normativo. Uma lei ou norma deve ser obedecida porque é justa, correta ou boa. Na verdade, de acordo com a teoria do direito natural, as normas são entidades eternas e imutáveis que podemos “descobrir” através da razão. Segundo muitos filósofos medievais, a vontade de Deus é a fonte das normas morais e legais. Nesta perspectiva, os atos criminosos eram semelhantes aos pecados religiosos e ambos deveriam ser punidos. Na verdade, mesmo intenções ou pensamentos imorais ou impuros (como os que Kenny provavelmente teve sobre a menina no restaurante) poderiam estar sujeitos a punição.

Embora ainda existam hoje teóricos do direito natural, a maioria dos filósofos vê as coisas de forma diferente. Os positivistas jurídicos sugeriram que as leis não foram descobertas, mas “postadas”, criadas pelas autoridades e pelas sociedades. As leis não foram reveladas por Deus ou pela natureza, mas criadas pelos humanos. Consequentemente, as preocupações com elementos subjetivos, como valores religiosos, morais ou pessoais, não eram mais legítimas. O estudo do direito tornou-se mais neutro e objetivo. Algo era considerado injusto apenas se violasse as normas legais, e as punições só eram prescritas para ações (não para intenções e pensamentos impuros ou pecaminosos, como os de Kenny). É evidente que, para o positivista jurídico, uma vez que opera necessariamente fora da lei , o vigilantismo não pode realizar a justiça.

O positivista também se oporia ao fato de os hackers punirem crimes morais. A pornografia infantil é ilegal em Londres, mas a solicitação de uma prostituta, a infidelidade conjugal e os e-mails racistas não o são. Portanto, ninguém que foi punido pelos hackers, exceto Kenny, era culpado de um crime. Até os romanos teriam concordado que não deveriam ser punidos. Na verdade, um dos principais objetivos do princípio nulla poena sine lege, que prescreve que nenhuma punição deve ocorrer a menos que já esteja prescrita por lei , era evitar que o campo jurídico se confundisse com o campo moral e que os erros morais fossem tratados como erros legais. Eles não queriam que a prática da punição escapasse aos limites legais e fosse administrada arbitrariamente por cidadãos “comuns”.

Mas o mais importante é que, porque o vigilantismo é subjetivo, porque não tem disposições em vigor para salvaguardar contra ações judiciais injustas e porque não tem nada que garanta que as punições sejam aplicadas de forma justa, não devemos tolerar o vigilantismo. Na verdade, os positivistas exigiriam que os vigilantes fossem punidos juntamente com Kenny. É claro que a severidade das punições dos hackers provavelmente seria diferente, dependendo do que a lei especificasse. Mas o positivista pediria que os hackers fossem punidos mesmo assim.

ALCANÇAMOS A JUSTIÇA PELA PUNIÇÃO?

Independentemente de qual seja a natureza da lei, devemos perguntar por que os hackers simplesmente não notificaram a polícia sobre o crime de Kenny. Afinal, isso teria garantido que ele não cometesse o crime novamente. Por que fazer toda a tortura psicológica primeiro? Presumivelmente porque os hackers pensaram que a prisão não era punição suficiente; a gravidade do crime de Kenny o fez merecer mais. Mas isso levanta mais questões. Que direito os hackers têm de determinar quanta punição Kenny deveria sofrer? Mesmo os criminosos que admitiram a culpa ainda têm direito a um advogado e a um julgamento justo, a fim de garantir que a punição que recebem é apropriada. Se os hackers estivessem interessados em justiça, não deveriam simplesmente ter compartilhado o vídeo de Kenny com a polícia?

Por outro lado, podemos perguntar-nos qual é o propósito de punir criminosos. Uma resposta óbvia é a retribuição – retribuir ao criminoso pelo que fez. Esta noção deriva de princípios primitivos de “olho por olho” e, embora o governo não puna os estupradores, estuprando-os diretamente em troca (porque temos prescrições contra punições cruéis e incomuns), a retribuição está no cerne do que muitos acham que a punição deveria servir. Na verdade, alguns podem pensar que as prescrições contra punições cruéis e incomuns impedem que a justiça seja feita quando o próprio criminoso é cruel e incomum. Pode ser isso que motiva os hackers a abusar de Kenny antes de mandá-lo para a prisão.

A retribuição levanta preocupações, no entanto. Por exemplo, como você determina a quantidade de sofrimento que um criminoso causou para que você possa devolver a mesma quantia a ele? Tal cálculo seria difícil. Considere que Kenny estava apenas assistindo pornografia infantil que já existia, e não forçando ele mesmo as crianças a praticarem atos sexuais. De acordo com alguns cálculos, o dano que ele causou foi insignificante e, portanto, sua punição também deveria ser. Em resposta, é claro, as pessoas argumentarão que precisamos prender Kenny antes que ele realmente prejudique qualquer criança (como a jovem no restaurante) e dissuadir outros possíveis pedófilos de ações semelhantes – mas esse argumento sugere que o propósito da punição vai além da retribuição. Também deve dissuadir.

O filósofo Jeremy Bentham (1748-1832) teria concordado. Como utilitarista, ele acreditava que deveríamos visar o que produz o maior bem para o maior número de pessoas. Bentham não prescreveu apenas treze cânones (ou regras) pelos quais os juízes poderiam determinar punições proporcionais para criminosos. Ele também achava que a punição criminal deveria servir ao bem geral da sociedade. E a forma como parece fazer isso é impedindo o criminoso de repetir o seu crime, dissuadindo outros possíveis criminosos de copiá-lo e removendo pessoas perigosas da sociedade. O colega utilitarista de Bentham, John Stuart Mill (1806-1873), concordava. Mill, em particular, tinha uma visão favorável da pena de morte, que considerava o meio mais eficaz de dissuadir possíveis assassinatos .

É importante ressaltar, porém, que Mill não achava que a punição deveria buscar retribuição.

Se alguém pensa que há justiça em infligir sofrimento sem propósito; que existe uma afinidade natural entre as duas ideias de culpa e punição, o que torna intrinsecamente apropriado que onde quer que tenha havido culpa, a dor seja infligida a título de retribuição; Reconheço que não consigo encontrar nenhum argumento para justificar a punição infligida com base neste princípio…. A visão meramente retributiva da punição não deriva nenhuma justificativa da doutrina que apoio. 3

Por que? Porque ele pensava que “o único objetivo pelo qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é evitar danos a outros.”4 Dar a um criminoso “o que ele merece” poderia ir além disto. Na verdade, uma vez que a dor sofrida pelo criminoso faz parte do cálculo utilitarista, a punição que o criminoso sofre não deve ser superior ao necessário para um efeito dissuasor. O propósito da punição deve visar apenas o bem geral da sociedade.

Talvez a dissuasão não seja suficiente. Se o objetivo final for realmente o bem geral da sociedade, então a punição não deverá apenas dissuadir os criminosos – deverá reformá-los e reabilitá-los. Deveria torná-los menos propensos a repetir o seu crime – não por medo, mas tornando-os melhores. Se pudermos transformá-los em membros saudáveis e contribuintes da sociedade, e depois devolvê-los à sociedade, teremos feito o bem tanto para eles como para nós. É evidente que, nesta perspectiva, não devemos celebrar o que os hackers fizeram. Kenny precisa de tratamento psiquiátrico. Ele precisa de medicação. Ele também precisa ser punido e fortemente monitorado se for libertado. Mas ele não precisa ser forçado a lutar contra outro pedófilo até a morte. A reabilitação não era o objetivo dos hackers.

A abordagem reabilitativa tem alguns argumentos a seu favor. Por um lado, o efeito dissuasor da punição parece ser limitado. É por isso que há tantos infratores reincidentes. A menos que sejam reformados, os criminosos continuarão a ser criminosos depois de libertados. A prisão poderia até piorá-los, contribuindo assim para um problema mundial de superlotação carcerária.5 No Brasil, por exemplo, os dados mostram que, em 2018, os centros de detenção estavam 75% acima da sua capacidade e muitas vezes recebiam três vezes mais presos do que o permitido.6 Além disso, muitas vezes são as condições sociais que dão origem ao comportamento criminoso no primeiro lugar. Talvez isso não fosse verdade no caso de Kenny, mas geralmente parece que a sociedade deveria procurar compensar as formas como incentiva ou torna necessário o comportamento criminoso. Tomemos como exemplo a pobreza. Marco Aurélio (121–180) disse que “a pobreza é a mãe do crime” e geralmente as pessoas não roubam a menos que precisem. Consequentemente, parece que a sociedade deveria ter como objetivo não só reformar o caráter dos ladrões condenados, mas também dar-lhes (e a todos) uma educação e competências profissionais (e uma economia) que lhes permitam ganhar um salário digno. É claro que nem todos podem ser reformados. Mas parece que deveríamos pelo menos tentar. Como disse certa vez Oscar Wilde : “A única diferença entre o santo e o pecador é que todo santo tem um passado e todo pecador tem um futuro”. O investimento mais promissor para uma sociedade pacífica parece ser a educação. Isso é o que mais efetivamente levaria à justiça.

É claro que se pode pensar que o comportamento criminoso é inerente à natureza humana e que a punição tem múltiplos propósitos. Mesmo assim, não devemos desistir da reabilitação. Nas sábias palavras de Robert G. Caldwell,

A punição é uma arte que envolve o equilíbrio entre retribuição, dissuasão e reforma em termos não apenas do Tribunal, mas também dos valores em que ocorre e no equilíbrio desses propósitos da punição recebe ênfase à medida que as condições que a acompanham mudam.7

Se ele estiver certo, o vigilantismo não deveria ser tolerado.

O vigilantismo pode ser atraente, especialmente para aqueles que foram vítimas de crimes que ficaram impunes. Mas de uma perspectiva filosófica, o vigilantismo é difícil de defender. É arbitrário e subjetivo. É ineficaz e muitas vezes aplicado com preconceito. Mistura moralidade com direito e não visa a reabilitação. Isso não quer dizer que os criminosos não devam ser devidamente punidos pelos seus crimes. Mas significa dizer que não devemos permitir que cidadãos individuais determinem e administrem tal punição. A sociedade pode fazer melhor. Se virmos um crime em curso e pudermos impedi-lo sem grandes riscos para nós mesmos, devemos fazê-lo. Mas uma vez cometido um crime, deveríamos simplesmente contatar as autoridades e fornecer provas. Não deveríamos tentar punir nós próprios os criminosos. Nossa reação emocional inicial pode ser comemorar o que os hackers fizeram com Kenny, mas tudo o que fizeram com ele (além de entregá-lo à polícia) teve mais a ver com sadismo e “trollagem” do que com justiça.

NOTAS

1. Charlie Brooker and Annabel Jones with Jason Arnopp, Inside Black Mirror (New York: Crown Archetype, 2018), 170.

2. Manuel Mireanu, (2014) Vigilantism and Security: State, Violence and Politics in Italy and Hungary. PhD Thesis. Central European University, 11, https://pds. ceu.edu/sites/pds.ceu.hu/files/attachment/basicpage/478/mireanumanuelir.pdf (Accessed 9 July 2019).

3. John Stuart Mill, The Collected Works of John Stuart Mill (London: Routledge, 2014), 462.

4. John Stuart Mill, On Liberty (Indianapolis, IN: Hackett Publishing Company, 1978), 9.

5. Niall McCarthy, “The world’s most overcrowded prison system,” Forbes, https:// www.forbes.com/sites/niallmccarthy/2018/01/26/the‐worlds‐most‐overcrowded‐prison‐systems‐infographic/#7114d1351372 (Accessed 9 July 2019).

6. National Council of Public Prosecutions, “Occupancy rate of Brazilian prisons is 175%, shows dynamic report ‘Prison System in Numbers,’” CNMP, http:// www.cnmp.mp.br/portal/noticias‐cddf/11314‐taxa‐de‐ocupacao‐dos‐presidios‐ brasileiros‐e‐de‐175‐mostra‐relatorio‐dinamico‐sistema‐prisional‐em‐numeros (Accessed 9 July 2019).

7. Robert Graham Caldwell, Criminology (New York: Ronald Press Company, 1956), 403.

Sobre o autor
Icaro Aron Paulino Soares de Oliveira

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Acadêmico de Administração na Universidade Federal do Ceará - UFC. Pix: [email protected] WhatsApp: (85) 99266-1355. Instagram: @icaroaronsoares

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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