A mentalidade do estelionatário

07/03/2024 às 14:43
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Em que creem os que não creem? Perguntou Umberto Eco. Adaptando ao mundo das fraudes: “em que acreditam os que mentem?”

A mente do estelionatário é a mente de um psicopata e para a psiquiatria um estelionatário é incorrigível e sempre um perigo para a paz pública. Ainda, a psicopatia não é causa de inimputabilidade porque o psicopata sabe o que faz, raciocina, compreende e quer praticar a conduta. Vejamos abaixo.

A explosão de casos de crimes patrimoniais praticados por meio de fraudes tornou-se mais um grave problema para a segurança pública. Uma simples troca de mensagens leva uma vítima a perder milhares, dezenas de milhares e até centenas de milhares de reais em minutos, anonimamente, à distância e sem violência física.

Uma aparente simples transação comercial leva uma vítima a perder milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares e até milhões em um ou poucos dias, com contratos assinados, apertos de mão, sorrisos, amabilidade, persuasão emocional, frases motivacionais, palavras chaves impactantes, sem violência física.

O perigo das ruas escuras foi largamente superado pelo perigo das mensagens eletrônicas e dos negócios promissores. 

As fraudes envolvendo negócios promissores revelam um novo tipo de criminoso: não violento, afável, convincente, persuasivo, confiante, estimulante, motivador. O sistema de justiça é capaz de lidar com o crime de afago? A resposta, por certo, passa por nova mentalidade dos atores deste sistema. A falta de violência física será ainda hoje sinônimo de falta de periculosidade? A previsão legal de novas formas de violência já não introduziu no sistema de justiça a importância do combate aos atos violentos não físicos? O que nos falta para encararmos o fraudador de forma similar à com que encaramos hoje o perseguidor, o importunador, o racista e outro que sem violência física perturbam a paz social?

“O que é o crime de assaltar um banco comparado com o crime de fundar um banco?” Perguntou Bertoldo Brecht. Fraudadores descobriram que na verdade é um crime melhor. Para eles. Inventar inebriantes estratégias de negócios se mostra mais rentável e menos arriscado do que roubos, furtos e tráfico. Um assalto de um celular com faca de cozinha rende manchetes nos televisos "jorra sangue", mas um golpe que leva a vítima a perder quase toda sua aposentadoria mal e mal ganha uma nota de rodapé. Sem visibilidade, sem pressão sobre o sistema de justiça. Seriam os fraudadores intocáveis escudados pela ausência de violência física?

Este novo tipo de criminoso despertou a atenção de alguns estudiosos mundo afora. No Brasil, nem tanto. Nunca é tarde, espera-se.

Um desses estudos está no artigo "Psycopathy and Financial Fraud: A Meta-Analysis" (2010), escrito pelo PhD Robert Hare e publicado na revista Fraud Magazine (https://www.fraud-magazine.com/), um estudo meta-analítico, o que significa que ele combina os resultados de várias pesquisas diferentes. Traz um bom panorama do ator desse novo normal. O paper fornece uma análise abrangente das características dos fraudadores financeiros. O estudo, que analisou 48 pesquisas com mais de 7.000 participantes, identificou as seguintes características como as mais prevalentes em fraudadores:

1. Fatores Psicológicos:

Falta de Empatia e Remorso: Fraudadores frequentemente demonstram uma capacidade limitada de se conectar com as emoções dos outros e sentir culpa por suas ações.

Grandiosidade e Narcisismo: Eles tendem a ter uma visão inflada de si mesmos e de suas habilidades, buscando reconhecimento e admiração. São confiantes e ousados.

Impulsividade e Busca por Sensação: São propensos a agir de forma impulsiva e sem considerar as consequências, buscando gratificação instantânea, ainda que oculta.

Mentira Patológica e Manipulação: Frequentemente mentem com facilidade e manipulam os outros para alcançar seus objetivos, são persuasivos e instigantes.

Locus de Controle Externo: Têm a tendência de culpar fatores externos por seus erros e fracassos.

2. Fatores Comportamentais:

Histórico de Comportamentos Antiéticos: Eles podem ter um histórico de comportamentos antiéticos, como trapaça ou roubo.

Falta de Planejamento e Organização: Frequentemente demonstram falta de planejamento e organização em suas atividades, em geral fazem vitimas sem saber quando parar e seus negócios desabam pela falta de estrutura para lidar com o volume de vitimas e ações necessárias a mante-las em erro.

3. Fatores Cognitivos:

Habilidades de Persuasão: Fraudadores geralmente são muito persuasivos e hábeis em convencer os outros a acreditar em suas ideias.

Racionalização e Justificativa: Eles tendem a racionalizar seus comportamentos e justificar suas ações, mesmo quando são antiéticas. Mentem bem para fora e mentem bem para dentro.

Falta de Julgamento Moral: Frequentemente demonstram uma falta de julgamento moral e dificuldade em discernir entre o certo e o errado.

A crença nas suas capacidades e nas suas convicções é uma nota frequente nos estelionatários. Também o é nos terroristas. O terrorista acredita que suas ações são certas e farão o bem. Os sobreviventes discordam. Um estelionatário pode até acreditar que suas ações são boas e que ele fará o bem para sua vítima por meio de negócios bons. As vítimas dele também discordam.

No Brasil, um dos que se debruçaram sobre o tema foi o Diretor do Internal Control Institute – Chpater Brasil, Eduardo Person Pardini. Ele entende que de fato o fraudador possui as características vistas no artigo da Fraud Magazine, mas vai além. Ele define a fraude como “Qualquer ato intencional, caracterizado por desonestidade, dissimulação ou quebra de confiança, perpetrados por pessoas ou organizações a fim de obter algum benefício ilícito.” Aponta dois tipos básicos de fraudadores:

  • O fraudador profissional,

  • O fraudador por ocasião.

No caso do fraudador profissional, na maioria das vezes é pessoa com inteligência acima da média, bem educados, com um excelente conhecimento da dinâmica dos negócios. Vale-se da engenharia social, que é o método de ataque, por meio do qual alguém faz uso da capacidade de persuasão, algumas vezes abusando da ingenuidade ou da confiança das pessoas.

Já o fraudador por ocasião é alguém que não pensa sistematicamente em fraudar, contudo, quando se deparar com uma oportunidade e se estiver motivado realizará a fraude.

Segundo Mona Clayton, em seu livro “The guide to forensic accounting investigation”, largamente citado em diversos estudos, as características de um típico fraudador são as seguintes:

  • Maior de 30 anos,

  • 55% é homem,

  • Aparenta ter uma situação familiar estável,

  • Tem formação acima da média,

  • Sem registro criminal,

  • Boa condição psicológica,

  • Posição de confiança,

A PhD Stephanie Sarkis também se debruçou sobre a mentalidade do fraudador e trouxe algumas conclusões interessantes (https://www.forbes.com/sites/stephaniesarkis/2019/03/03/seven-factors-that-draw-people-to-white-collar-crime/?sh=a3022c078f86): A demografia dos fraudadores é bastante consistente, tendem a ser homens brancos, casados, de classe média, com algum nível de educação superior e laços moderados a fortes com sua comunidade, família e/ou religião.

A psiquiatra Sarkis explica que a mente de um fraudador passa por um cenário: “o que é mais rápido, trabalhar mais 5 anos ou ganhar a mesma quantia apenas brincando com alguns números? Cinco anos versus dez minutos” e ainda: “o fraudador fica tão preocupado com a facilidade que isso é que não pensa no que pode acontecer se forem pegos, parte do pensamento de que ele pode escapar impune se deve a tendências narcisistas”. Narcisismo é um traço da psicopatia.

Sarkis reforça outros estudos no sentido de que os fraudadores tendem a ser carismáticos e isso os ajuda a escapar dos protocolos de segurança das vítimas nos negócios e pode até convencer uma vítima a não apresentar reclamações na polícia. Esse carisma também faz com que eles adquiram um certo status ou posição de credibilidade junto às suas vítimas em particular e ao seu meio social em geral. Os fraudadores tendem a conhecer todo mundo e todos tendem a gostar deles, podem ser tão carismáticos que ninguém consegue acreditar que essa pessoa tenha cometido um crime.

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Um traço comum dos psicopatas em geral e dos fraudadores em particular é o narcisismo e este caractere causa sentimentos de direito – o narcisista é uma pessoa que sente que as regras que se aplicam a todos os outros simplesmente não se aplicam a ela. Os narcisistas muitas vezes se sentem injustiçados pelos outros, mesmo quando esse erro percebido não seria considerado como tal pelas pessoas em geral. Os narcisistas também tendem a pensar que todos ao seu redor estão abaixo deles ou não são muito inteligentes como ele é. Isso leva o narcisista a acreditar falsamente que ninguém será inteligente o suficiente para pegá-lo.

Karina Florentino Marques (2014) crava que os estelionatários são psicopatas: “É inviável vislumbrar uma política preventiva voltada para o agente quando se fala em estelionatário, figura apontada pelos estudos na área de psicologia como, em regra, psicopata em grau leve, que se dedicam a trapacear, aplicar golpes e pequenos roubos”. (ESTELIONATO: O ARDIL DO AUTOR E A TORPEZA DA VÍTIMA, artigo científico apresentado à Universidade da Paraíba). E vai além: “o perfil psicológico do estelionatário, em regra, não permite sua ressocialização”.

Trabalhador, de família, educado, da igreja, sem antecedentes criminais. Como alguém assim pode ser um perigo para a sociedade? Destruindo patrimônios construídos em anos de trabalho duro, reduzindo a renda da família à miserabilidade, levando pequenos empresários à bancarrota e gerando desemprego, tirando o leite das crianças com uma simples mensagem de whatsapp. Ou um prospecto inebriante de um bom sistema de investimento. Um bom sistema de investimento. Bom para ele.

A autora KARINA FLORENTINO explica que “é justamente utilizando estas “armas” que os estelionatários vivem de matar: sonhos, esperanças e a confiança que os outros depositam nele. E, por essa razão, a maioria se encaixa num perfil psicopático, tratado pela Associação de Psiquiatria Americana (DMS- IV TR- Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) como Transtorno da Personalidade Antissocial e pela Organização Mundial da Saúde (CID-10) como Transtorno da Personalidade Dissocial” (2014).

BARBOSA SILVA (2008) vai no mesmo sentido “Não há, portanto, viabilidade para implantação de políticas preventivas voltadas para o agente no crime em estudo, já que são considerados incorrigíveis pela psicologia e psiquiatria” (Mentes Perigosas: o Perigo Mora ao Lado, Fontanar, 2008).

Em síntese, para a psiquiatria: um estelionatário solto é sempre um perigo para paz social. Se é incorrigível, a próxima vítima não é uma questão de como ou onde, apenas de quando.


BIBLIOGRAFIA

BARBOSA SILVA, Ana – Mentes Perigosas> O Perigo Mora ao Lado – Fontanar, São Paulo, 2008.

CLAYTON, Mona - “The guide to forensic accounting investigation” – New Yoork, Wiley, 2006

FLORENTINO MARQUES, Karna Florencio -Estelionato: O Ardil do Autor e a Torpeza da Vítima DA VÍTIMA, artigo científico apresentado à Universidade da Paraíba, João Pessoa/PB 2014

HARE, Robert - Psycopathy and Financial Fraud: A Meta-Analysis, https://www.fraud-magazine.com/

PARDINI, Eduardo Person – Entendendo a Mente do Fraudador – Roncarati, São Paulo, disponível em https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Colunistas/Eduardo-Person-Pardini/Entendendo-a-mente-do-fraudador.html último acesso em 07/03/2024

SARKIS, Stephanie. Seven Factos That Draw People to White-Collar Crime - https://www.forbes.com/sites/stephaniesarkis/2019/03/03/seven-factors-that-draw-people-to-white-collar-crime/?sh=a3022c078f86 último acesso em 07/03/2024

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