Em que creem os que não creem? — perguntou Umberto Eco. Adaptando a indagação ao mundo das fraudes: “em que acreditam os que mentem?”
A mente do estelionatário aproxima-se da mente de um psicopata. Para a psiquiatria, um estelionatário é incorrigível e representa sempre um perigo para a paz pública. Importa destacar, contudo, que a psicopatia não é causa de inimputabilidade, pois o psicopata sabe o que faz, raciocina, compreende e quer praticar a conduta. Vejamos.
A explosão de crimes patrimoniais praticados por meio de fraudes tornou-se grave problema de segurança pública. Uma simples troca de mensagens pode levar uma vítima a perder milhares, dezenas ou até centenas de milhares de reais em minutos, de forma anônima, à distância e sem violência física.
Também uma aparente transação comercial pode resultar na perda de milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares ou até milhões em poucos dias. Tudo isso com contratos assinados, apertos de mão, sorrisos, amabilidade, persuasão emocional, frases motivacionais e palavras de impacto — sempre sem violência física.
O perigo das ruas escuras foi largamente superado pelo perigo das mensagens eletrônicas e dos negócios promissores.
As fraudes nesse contexto revelam um novo tipo de criminoso: não violento, afável, convincente, persuasivo, confiante, estimulante, motivador. Estaria o sistema de justiça preparado para lidar com o crime de afago? A ausência de violência física ainda pode ser considerada sinônimo de ausência de periculosidade? Já não introduziu a legislação, em diversas passagens, novas formas de violência não física, impondo ao sistema de justiça o dever de combate a essas condutas? O que ainda nos falta para que o fraudador seja encarado de modo semelhante ao perseguidor, ao importunador, ao racista e a outros que, mesmo sem violência física, perturbam a paz social?
“O que é o crime de assaltar um banco comparado com o crime de fundar um banco?” — questionou Bertolt Brecht. Os fraudadores parecem ter descoberto que fundar ilusórias estratégias de negócios é, de fato, um crime melhor. Para eles. Rende mais e é menos arriscado do que roubos, furtos e tráfico. Um assalto com faca de cozinha pela posse de um celular ganha manchetes de televisão — “jorra sangue” —, mas um golpe que leva a vítima a perder quase toda a sua aposentadoria mal alcança uma nota de rodapé. Sem visibilidade, não há pressão social sobre o sistema de justiça. Seriam os fraudadores intocáveis, escudados pela ausência de violência física?
Esse novo perfil criminoso já despertou a atenção de alguns estudiosos mundo afora. No Brasil, ainda não com a devida ênfase. Mas nunca é tarde.
Um desses estudos está no artigo “Psychopathy and Financial Fraud: A Meta-Analysis” (2010), escrito pelo PhD Robert Hare e publicado na revista Fraud Magazine1. Trata-se de estudo meta-analítico, que combina resultados de diversas pesquisas. O trabalho fornece um panorama abrangente das características dos fraudadores financeiros. Após analisar 48 pesquisas com mais de 7.000 participantes, o estudo identificou as seguintes características como as mais prevalentes entre os fraudadores:
1. Fatores Psicológicos:
Falta de Empatia e Remorso: Fraudadores frequentemente demonstram uma capacidade limitada de se conectar com as emoções dos outros e sentir culpa por suas ações.
Grandiosidade e Narcisismo: Eles tendem a ter uma visão inflada de si mesmos e de suas habilidades, buscando reconhecimento e admiração. São confiantes e ousados.
Impulsividade e Busca por Sensação: São propensos a agir de forma impulsiva e sem considerar as consequências, buscando gratificação instantânea, ainda que oculta.
Mentira Patológica e Manipulação: Frequentemente mentem com facilidade e manipulam os outros para alcançar seus objetivos, são persuasivos e instigantes.
Locus de Controle Externo: Têm a tendência de culpar fatores externos por seus erros e fracassos.
2. Fatores Comportamentais:
Histórico de Comportamentos Antiéticos: Eles podem ter um histórico de comportamentos antiéticos, como trapaça ou roubo.
Falta de Planejamento e Organização: Frequentemente demonstram falta de planejamento e organização em suas atividades, em geral fazem vitimas sem saber quando parar e seus negócios desabam pela falta de estrutura para lidar com o volume de vitimas e ações necessárias a mante-las em erro.
3. Fatores Cognitivos:
Habilidades de Persuasão: Fraudadores geralmente são muito persuasivos e hábeis em convencer os outros a acreditar em suas ideias.
Racionalização e Justificativa: Eles tendem a racionalizar seus comportamentos e justificar suas ações, mesmo quando são antiéticas. Mentem bem para fora e mentem bem para dentro.
Falta de Julgamento Moral: Frequentemente demonstram uma falta de julgamento moral e dificuldade em discernir entre o certo e o errado.
A crença nas próprias capacidades e convicções é uma nota frequente nos estelionatários. Também o é entre os terroristas. O terrorista acredita que suas ações são corretas e trarão o bem; os sobreviventes, porém, discordam. De modo semelhante, um estelionatário pode acreditar que suas condutas são boas e que, por meio de “bons negócios”, fará o bem para sua vítima. As vítimas, naturalmente, também discordam.
No Brasil, um dos estudiosos que se debruçaram sobre o tema foi o Diretor do Internal Control Institute – Chapter Brasil, Eduardo Person Pardini. Ele entende que, de fato, o fraudador possui as características identificadas no artigo da Fraud Magazine, mas vai além. Define a fraude como:
“Qualquer ato intencional, caracterizado por desonestidade, dissimulação ou quebra de confiança, perpetrado por pessoas ou organizações a fim de obter algum benefício ilícito.”
Pardini aponta dois tipos básicos de fraudadores:
-
O fraudador profissional: em sua maioria, é pessoa com inteligência acima da média, bem-educada e com excelente conhecimento da dinâmica dos negócios. Utiliza-se da engenharia social como método de ataque, valendo-se da capacidade de persuasão e, em diversas ocasiões, abusando da ingenuidade ou da confiança das pessoas.
-
O fraudador por ocasião: não pensa sistematicamente em fraudar, mas, diante de uma oportunidade e estando motivado, pratica a fraude.
Segundo Mona Clayton, em seu livro The Guide to Forensic Accounting Investigation — largamente citado em diversos estudos —, as características de um típico fraudador são as seguintes:
-
Ter mais de 30 anos;
-
Em 55% dos casos, ser homem;
-
Apresentar situação familiar aparentemente estável;
-
Possuir formação acima da média;
-
Não possuir registro criminal;
-
Demonstrar boa condição psicológica;
-
Ocuparem posições de confiança.
A PhD Stephanie Sarkis também se debruçou sobre a mentalidade do fraudador e trouxe conclusões relevantes2. Segundo a autora, a demografia desses agentes é bastante consistente: tendem a ser homens brancos, casados, de classe média, com algum nível de educação superior e com laços moderados a fortes com sua comunidade, família e/ou religião.
A psiquiatra explica que a mente de um fraudador costuma operar sob um raciocínio pragmático:
“O que é mais rápido: trabalhar por mais cinco anos ou ganhar a mesma quantia apenas brincando com alguns números? Cinco anos versus dez minutos.”
E ainda:
“O fraudador fica tão preocupado com a facilidade que isso representa que não pensa no que pode acontecer se for pego. Parte da crença de que pode escapar impune se deve a tendências narcisistas.”
O narcisismo, recorde-se, é um traço típico da psicopatia.
Sarkis reforça que os fraudadores tendem a ser carismáticos, o que os ajuda a superar protocolos de segurança das vítimas nos negócios e até mesmo a dissuadir uma vítima de apresentar queixa à polícia. Esse carisma confere-lhes status e credibilidade, tanto junto às vítimas em particular quanto no meio social em geral. Em muitos casos, os fraudadores são figuras conhecidas e admiradas, de modo que seu entorno social dificilmente acredita que possam ter cometido um crime.
Um traço comum dos psicopatas em geral — e dos fraudadores em particular — é o narcisismo. Essa característica gera sentimentos de privilégio: o narcisista acredita que as regras aplicáveis a todos simplesmente não se aplicam a ele. Frequentemente, sente-se injustiçado pelos outros, mesmo quando a suposta ofensa não seria considerada relevante pelas pessoas em geral. Os narcisistas também tendem a pensar que todos ao seu redor estão abaixo deles, ou que não são tão inteligentes quanto eles próprios. Esse raciocínio leva-os a acreditar falsamente que ninguém será capaz de desmascará-los.
Karina Florentino Marques (2014) afirma categoricamente que os estelionatários são psicopatas:
“É inviável vislumbrar uma política preventiva voltada para o agente quando se fala em estelionatário, figura apontada pelos estudos na área de psicologia como, em regra, psicopata em grau leve, que se dedicam a trapacear, aplicar golpes e pequenos roubos.” (Estelionato: o ardil do autor e a torpeza da vítima, artigo científico apresentado à Universidade da Paraíba).
E vai além:
“O perfil psicológico do estelionatário, em regra, não permite sua ressocialização.”
Trabalhador, de família, educado, frequentador da igreja, sem antecedentes criminais. Como alguém assim pode ser um perigo para a sociedade? Justamente destruindo patrimônios construídos ao longo de anos de esforço, reduzindo a renda de famílias à miserabilidade, levando pequenos empresários à bancarrota e gerando desemprego; tirando o leite das crianças com uma simples mensagem de WhatsApp ou com o prospecto sedutor de um suposto sistema de investimento.
Um bom sistema de investimento. Bom para ele.
A autora Karina Florentino explica que:
“É justamente utilizando estas ‘armas’ que os estelionatários vivem de matar: sonhos, esperanças e a confiança que os outros depositam nele. E, por essa razão, a maioria se encaixa num perfil psicopático, tratado pela Associação de Psiquiatria Americana (DSM-IV TR – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) como Transtorno da Personalidade Antissocial e pela Organização Mundial da Saúde (CID-10) como Transtorno da Personalidade Dissocial.” (2014)
No mesmo sentido, Barbosa Silva afirma:
“Não há, portanto, viabilidade para implantação de políticas preventivas voltadas para o agente no crime em estudo, já que são considerados incorrigíveis pela psicologia e psiquiatria.” (Mentes Perigosas: o perigo mora ao lado, Fontanar, 2008).
Em síntese, para a psiquiatria, um estelionatário em liberdade representa sempre um perigo para a paz social. Se é incorrigível, a próxima vítima não é uma questão de como ou onde, mas apenas de quando.
BIBLIOGRAFIA
BARBOSA SILVA, Ana – Mentes Perigosas> O Perigo Mora ao Lado – Fontanar, São Paulo, 2008.
CLAYTON, Mona - “The guide to forensic accounting investigation” – New Yoork, Wiley, 2006
FLORENTINO MARQUES, Karna Florencio -Estelionato: O Ardil do Autor e a Torpeza da Vítima DA VÍTIMA, artigo científico apresentado à Universidade da Paraíba, João Pessoa/PB 2014
HARE, Robert - Psycopathy and Financial Fraud: A Meta-Analysis, https://www.fraud-magazine.com/
PARDINI, Eduardo Person – Entendendo a Mente do Fraudador – Roncarati, São Paulo, disponível em https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Colunistas/Eduardo-Person-Pardini/Entendendo-a-mente-do-fraudador.html último acesso em 07/03/2024
SARKIS, Stephanie. Seven Factos That Draw People to White-Collar Crime - https://www.forbes.com/sites/stephaniesarkis/2019/03/03/seven-factors-that-draw-people-to-white-collar-crime/?sh=a3022c078f86 último acesso em 07/03/2024
Notas
1 https://www.fraud-magazine.com/
2 https://www.forbes.com/sites/stephaniesarkis/2019/03/03/seven-factors-that-draw-people-to-white-collar-crime/?sh=a3022c078f86