Crime ambiental de deixar rastreador de embarcação desligado

13/03/2024 às 23:21
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A conduta de deixar desligado o equipamento de rastreamento da embarcação pesqueira não configura o crime ambiental previsto no art. 68. da Lei 9.605/98, porque o particular não se enquadra no dever de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental.

A norma prevista no art. 68. da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) é composta de duas partes: (1) a existência de um dever legal que imponha o cumprimento de uma obrigação de relevante interesse ambiental; e (2) a existência de uma obrigação de relevante interesse ambiental descumprida.

Desse modo, não configura o crime ambiental do artigo 68 a conduta do particular que deixa de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental, cujo dever de observância está inserto em instrução normativa, sendo vedado ao intérprete da lei ampliar o sentido do texto legal de modo a prejudicar o acusado (interpretação extensiva in malam partem).

Dito de outra forma, o referido crime ambiental delimitou "dever legal", para nele incluir somente os agentes públicos cujo dever de observância é efetivamente de natureza legal, ou os particulares que, contratando com o Poder Público, equiparam-se a tais agentes.

Nesse sentido, o crime ambiental do art. 68. da Lei de Crimes Ambientais não se aplica à do particular que manteve desligado o aparelho rastreador ligado ao Programa de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite (PREPS).

Isso porque, a observância dessa obrigação não decorre de um dever legal, mas sim de um dever regulamentar (Instrução Normativa Conjunta SEAP-PR/MB/MMA 2/06). Não obstante a possibilidade de responsabilidade na esfera administrativa, não há responsabilidade penal.

Além do mais, é de se observar, que não há lesividade ao meio ambiente pela simples conduta de manter desligado aparelho rastreador ligado ao PREPS, mesmo porque, sequer será possível afirmar que a embarcação operou no momento em que o rastreador ficou desligado, o que afastaria qualquer possibilidade de vislumbrar lesividade no período.


Rastreador de embarcação desligado

A conduta de deixar de transmitir o sinal de rastreamento da embarcação operada, em violação às normas do Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite (PREPS), não tem o condão de caracterizar o crime ambiental previsto no art. 68. da Lei 9.605/98 quando desacompanhada de outros elementos.

Isso porque, não obstante o PREPS tenha aptidão para reforçar o poder de controle e fiscalização da atividade pesqueira pelo Poder Público, notadamente no tocante à identificação da observância dos limites geográficos estabelecidos nas permissões de pesca concedidas, os agentes públicos se encontram livres para exercer de forma ampla suas atribuições fiscalizatórias de outras maneiras.

Ou seja, a intervenção do Direito Penal é desproporcional, porque as sanções administrativas previstas para a conduta de deixar o rastreador desligado já são suficientes, e podem acarretar na suspensão ou o cancelamento, a depender da gravidade, das Permissões de Pesca outorgadas aos participantes do PREPS que descumpram o disposto na Instrução Normativa transcrita.

Sobreleva notar que as sanções impostas em processo administrativo, podem se mostrar, inclusive, mais eficazes que a própria sanção penal no objetivo de prevenir a prática de novas infrações, dado que atingem diretamente o exercício da atividade econômica na qual o ilícito foi perpetrado.

Nesse contexto, a mera omissão na transmissão de dados por meio do PREPS, embora deixe de facilitar o exercício do poder de polícia ambiental, não vulnera suficientemente o bem jurídico tutelado a ponto de legitimar a aplicação de sanção penal.

É dizer, embora não se ignore que a emissão de sinais por sistema de satélite permite o rastreamento e acompanhamento remoto das embarcações de pesca por parte dos órgãos ambientais e, consequentemente, constitui-se em relevante instrumento para a ação fiscalizadora do Poder Público, a não transmissão dos dados, por si só, em face do caráter subsidiário do Direito Penal, não caracteriza a prática do crime ambiental do art. 68. da Lei 9.605/98, haja vista que a conduta já é adequada e suficientemente punida na esfera administrativa.


Intervenção do direito penal é exceção

O Direito Penal, pela severidade da sanção que impõe, deve atuar apenas na tutela de bens jurídicos para os quais a proteção por meio de sanções civis ou administrativas se mostra insuficiente ou ineficaz.

Além desse caráter subsidiário, a aplicação de uma pena deve ser reservada às hipóteses em que o comportamento humano descrito na norma incriminadora efetivamente produz uma ofensa ao bem jurídico respectivo e, por consequência, encontra reprovação no seio social.

Uma condenação criminal fora desses moldes, isto é, quando a repressão da conduta é suficiente por intermédio de sanções de outra natureza, quando não há lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal e/ou quando o comportamento humano encontra larga aceitação na sociedade, contraria a própria natureza do Direito Penal.

Necessário, pois, que a ação humana não só se amolde à previsão formal e abstratamente prevista no tipo penal, como também afete de forma concreta, material, significativa o bem objeto da proteção da norma incriminadora.


O que diz a doutrina

Nesse contexto, é razoável cogitar que a mens legis foi precisa ao delimitar "dever legal", para nele incluir somente os agentes públicos cujo dever de observância é efetivamente de natureza legal, ou os particulares que, contratando com o Poder Público, equiparam-se a tais agentes.

Essa interpretação parece mais consentânea do que a criminalização generalizada dos particulares por descumprimento de obrigações que constam em instruções normativas.

A doutrina corrobora tal entendimento. Luís Paulo Sirvinskas1 é taxativo em afirmar que o sujeito ativo do delito em tela é "somente a pessoa física que tiver o dever legal ou contratual, inclusive o funcionário público (art. 327. do CP)".

Nos estudos organizados em homenagem ao Desembargador Federal Vladimir Passos de Freitas, levados a efeito pelo MM. Juiz Federal José Paulo Baltazar Júnior e pelo Exmo. Desembargador Federal Fernando Quadros da Silva, foi igualmente taxativo Ricardo Rachid de Oliveira2:

O crime é próprio, eis que somente aquele que estiver na peculiar condição de figurar no pólo passivo de uma relação obrigacional (contratual ou legal), cujo conteúdo seja de relevante interesse ambiental.

Quanto a tal "peculiar condição" do sujeito ativo, Edis Milaré e Paulo José da Costa Júnior3 explicam que o agente "será qualquer pessoa, física ou jurídica, que tenha o dever legal ou contratual de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental. São os funcionários de órgãos públicos, como do IBAMA e da polícia ambiental, que têm o dever legal”.

No sentido aqui sustentado, de que a mens legis foi precisa ao delimitar "dever legal", para nele incluir somente os agentes públicos cujo dever de observância é efetivamente de natureza legal, leciona Luís Régis Prado4:

Faz-se também imprescindível que o sujeito ativo possua dever legal - imposto pela lei, tal como funcionários de órgãos públicos como o IBAMA, por exemplo - ou contratual - advindo de contrato celebrado com o Poder Público ou com o particular - de cumprir a obrigação que lhe foi atribuída.

Com relação aos particulares, que não detêm essa peculiar condição do agente público, os doutrinadores têm assentido não somente que deve haver um contrato entre o particular e o Poder Público, mas também que desse contrato decorra expressamente ou como consequência lógica a obrigação de relevante interesse ambiental. Assim, Marcos Adede Y Castro5 referiu:

Como já dissemos ao iniciar os comentários à Seção V - Dos Crimes contra a Administração Ambiental, o delito do art. 68. tanto pode ser cometido por funcionário público como por particular que tenha contratado com o Poder Público a realização de determinada obra, construção ou serviço e que as medidas de proteção ambiental sejam consequência natural do negócio ou resultado de acordo escrito ou verbal.

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Por fim, o homenageado Desembargador Vladimir Passos de Freitas, junto com Gilberto Passos De Freitas6 , fornece exemplo elucidativo acerca da forma de participação do particular no delito:

Conduta: o crime é omissivo (deixar). Pune-se o não fazer. Mas exige-se o dever legal ou contratual. O primeiro resulta da lei. É o caso, por exemplo, do guarda ambiental do Município que assiste, inerte, ao abate de árvores localizadas na via pública por proprietário de imóvel, sem a autorização necessária. O segundo tem por base contrato firmado entre o Poder Público e o particular. A hipótese é mais rara. Vejamos um exemplo. (...).

Imagine-se que seja autorizado o funcionamento de um restaurante no interior de uma AEIT [área especial de interesse turístico] e que no contrato se comprometa o arrendatário a zelar pela preservação ambiental. Pois bem, se ele vier a tomar conhecimento de ação predatória e, por qualquer motivo, omitir-se em comunicar ao órgão ambiental, estará incorrendo nas penas do artigo mencionado.


Conclusão

Do que foi dito, à luz da legislação específica atinente ao PREPS, a conduta de deixar equipamento de rastreio de embarcação somente é passível de sanção na esfera administrativa.

Não se ignora o princípio da independência das instâncias, mas deve ser afastada a incidência da norma penal incriminadora, em face da severidade a ela inerente e da diminuta magnitude da lesão ao bem jurídico tutelado, sobretudo nos casos em que não ficar comprovado prejuízo específico e concreto à integridade e higidez do ambiente.

A conclusão acerca da ausência de efetiva lesividade da conduta de deixar aparelho de rastreamento de embarcação desligado não significa a aceitação da licitude de seu agir ou a declaração de sua irrelevância jurídica.

Tal, contudo, significa tão somente que tal comportamento, muito embora passível de sanção nas esferas civil e administrativa e formalmente típico, não representa ofensa intolerável ao bem jurídico protegido pela norma penal, circunstância que afasta a tipicidade material do delito.

O que se quer dizer, é que a aplicação do Direito Penal é desproporcional em caso tais, considerando que a conduta pode ser eficaz e suficientemente sancionada na esfera administrativa, com a suspensão ou cancelamento da Permissão de Pesca, e que a lesão ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é apenas hipotética, visto que se limita a não facilitar a fiscalização das atividades pesqueiras por parte do Poder Público.

Portanto, o fato de uma embarcação não estar com o PREPS em funcionamento durante determinado período, por si só, sem constatação por parte da fiscalização de efetivo dano ambiental daí decorrente, é insuficiente para a subsunção da conduta narrada ao tipo penal, mormente em razão da natureza subsidiária do Direito Penal.


Notas

1 Tutela Penal do Meio Ambiente: breves considerações atinentes à Lei n. 9.605, de 12-2-1998. 3.ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 227.

2 RACHID DE OLIVEIRA, Ricardo. Crimes contra a Administração Ambiental, in: BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; QUADROS DA SILVA, Fernando (orgs.). Crimes ambientais: estudos em homenagem ao desembargador Vladimir Passos de Freitas. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 47.

3 Direito Penal Ambiental: comentários à Lei 9.605/98. Campinas: Millennium, 2002, pp. 194-195.

4 Direito Penal do Ambiente: meio ambiente, patrimônio cultural, ordenação do território, biossegurança, com a análise da Lei 11.105/2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 539.

5 Crimes ambientais: comentários à Lei n. 9.605/98. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2004, pp. 267-270.

6 Crimes contra a natureza: de acordo com a Lei 9.605/98. 7. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 216.

Sobre o autor
Cláudio Farenzena

Escritório de Advocacia especializado e com atuação exclusiva em Direito Ambiental, nas esferas administrativa, cível e penal. Telefone e Whatsapp Business +55 (48) 3211-8488. E-mail: [email protected].

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Fonte: https://advambiental.com.br/artigo/crime-ambiental-de-deixar-rastreador-de-embarcacao-desligado-meta...

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