Por que o dia 15 de março é o dia do consumidor?

14/03/2024 às 13:09
Leia nesta página:
Você já deve ter visto que todo dia 15 de março é celebrado o Dia Mundial do Consumidor. Há muitos anúncios veiculados por fornecedores de produtos e serviços nos quais são promovidas ofertas especiais, alguns até aplicando as condições não apenas para o dia, mas as estendendo para a semana do consumidor no afã de ampliar as vendas.

Mas você sabe por que o dia 15 de março foi escolhido para representar o dia do consumidor?

Neste mesmo dia, no ano de 1962, o então presidente dos Estados Unidos, John Fitzgerald Kennedy (JFK), encaminhou ao Congresso americano uma mensagem especial, pouco tempo após os massivos protestos populares que surgiram como decorrência de acidentes envolvendo um modelo automotivo da Ford que continha falha no seu projeto produtivo (CAVALIEIRI FILHO, 2019). A mensagem presidencial tinha por objetivo abordar a questão para o futuro, visando a evitar que novos eventos daquela natureza viessem a se repetir, não só na indústria automotiva, mas em outros setores econômicos, além de garantir novos direitos específicos aos consumidores.

Na ocasião, JFK expressou a frase que se tornaria célebre: “Consumidores, por definição, somos todos nós” (ESTADOS UNIDOS, 1962, p. 1). Não poderia estar ele mais certo! Todas as pessoas que integram uma sociedade, em algum momento de suas vidas, consomem ou consumirão produtos ou serviços postos no mercado. Afinal, os produtos e serviços visam a atender um sem-número de necessidades e desejos humanos, desde os mais básicos como nutrição, saúde, segurança, até aqueles que elevam as condições de vida, o bem-estar pessoal ou coletivo, como os relacionados a embelezamento, à diversão e ao lazer, à cultura etc.

Em que pese, todos sermos consumidores (ou, ao menos, potencialmente consumidores), o consumidor é o agente econômico esquecido. Ou seja, aquele que contribui (e muito) para a produção e circulação de riquezas na sociedade, porém não tem a mesma atenção que outros importantes players do mercado, como empresas, indústrias, instituições financeiras etc. O motivo para isso é que, diversamente dos demais grupos citados, os consumidores, como bem destacou Kennedy, “não estão efetivamente organizados” (ESTADOS UNIDOS, 1962, p. 1), logo, não têm o mesmo espaço na construção de políticas públicas.

Essas premissas levaram à conclusão de que o consumidor tem um importante papel social e econômico, com interesses individuais, coletivos e difusos. Reconheceu-se o desafio de como conciliar a satisfação de tais interesses com aqueles dos demais grupos econômicos sem que isso prejudicasse o avanço das relações econômicas e o desenvolvimento nacional (MARQUES, 2020).

É bom se destacar que nesse momento já existiam leis nos Estados Unidos que preservavam consumidores, porém eram poucas, não havia uma preocupação central, os direitos não eram pensados e estruturados de forma sistematizada, organizada, permanecendo muitas situações não reguladas, muitas lacunas a preencher.

Neste sentir, a situação desfavorável do consumidor demandava uma atenção especial, inclusive no aspecto jurídico, para que se impulsionasse o consumo, movimentasse-se a economia do país, ao passo que também desse maior segurança jurídica ao consumidor. Sendo assim, JFK propôs a construção de um novo quadro normativo, anunciou medidas para o fortalecimento de programas governamentais e para a reconfiguração de órgãos que garantissem efetivos direitos ao consumidor. Ele fundou a sua exposição em quatro eixos basilares:

  • Direito à informação, garantindo-se proteção contra publicidade e rótulos fraudulentos e enganosos;

  • Direito à proteção contra produtos (especialmente remédios, alimentos e cosméticos) inseguros à vida e à saúde, ineficazes e de baixa qualidade;

  • Direito à livre escolha, com competitividade de preços entre fornecedores e combate a monopólios (e quando num dado setor a concorrência não for viável, ainda assim deve-se garantir a qualidade e preço justo dos produtos e serviços);

  • Direito ao consumidor ser ouvido, na formulação de políticas públicas e na busca pelos seus direitos diante dos tribunais (ESTADOS UNIDOS, 1962).

Quanto ao primeiro ponto, por exemplo, a Comissão Federal de Comércio (Federal Trade Comission) encarregou-se de tomar medidas contra a publicidade enganosa no comércio de refrigeradores, utensílios de cozinha, carpetes, máquinas de serrar etc. O direito à informação também foi tratado na proposta de que os remédios tivessem nomes simples para facilitar o conhecimento pela população. No mesmo sentido, na oferta de crédito por instituições financeiras, de modo a que o consumidor tivesse prévia ciência das taxas incidentes, do montante a ser pago e de outras informações relevantes para poder decidir pela contratação ou não do serviço de crédito (ESTADOS UNIDOS, 1962). Em síntese, visava a garantir o “recebimento de todos os elementos de informação indispensáveis a uma escolha esclarecida” (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 5).

Sobre a segurança de produtos, ele determinou a criação de uma nova divisão dentro do Departamento de Agricultura para analisar os registros de defensivos agrícolas e disponibilizou mais recursos para ampliar inspeções; delegou ao Departamento de Comércio (Department of Commerce) em colaboração com o da Saúde, Educação e Bem-estar (Department of Health, Education and Wellfare) e com a indústria automobilística a implementação de ações para que o design e equipamentos dos carros fossem concebidos de modo a minimizar os índices de acidentes; propôs a criação de novas regras que garantissem a eficiência dos remédios, que se houvesse alguma dúvida substancial da sua ineficácia, pudessem ser retirados de circulação, entre outros (ESTADOS UNIDOS, 1962).

No pertinente à competitividade, JFK propôs que o Departamento de Justiça (Department of Justice) fosse informado previamente a qualquer fusão substancial entre empresas para analisar se aquela operação empresarial atenderia ao interesse público e, portanto, poderia ser levada adiante ou não. Ademais, que a Comissão Federal de Comércio tivesse a competência para emitir ordens de suspensão temporárias diante de práticas concorrenciais em tese injustas que estivessem pendentes de análise perante a comissão (ESTADOS UNIDOS, 1962): com maiores poderes, o órgão poderia impedir o avanço de práticas anticompetitivas até a decisão definitiva, minimizando os danos aos consumidores. Afinal “competição justa ajuda às empresas e aos consumidores” (ESTADOS UNIDOS, 1962, p. 10).

Acerca do último ponto, ele criou o Conselho Consultivo de Consumidores (Consumer’s Advisory Council), o qual fazia parte do Conselho de Conselheiros Econômicos (Council of Economic Advisers), para opinar sobre políticas econômicas, necessidades dos consumidores, pesquisas etc. Ele determinou também que os chefes de todas as agências governamentais que, de alguma forma tratassem de consumo, deveriam ter um assistente para lhes assessorar sobre essa temática, portanto, dando voz e participação ao agente econômico na seara pública (ESTADOS UNIDOS, 1962).

Foi a partir daí que as autoridades americanas começaram a se dedicar mais atenta e intensamente à proteção do consumidor, a criar normas que lhe posicionassem em um papel de proeminência, dando-lhe a titularidade de direitos, condições para o exercício de tais faculdades e mecanismos para garantir a observância por outros agentes econômicos e por autoridades. O ato de Kennedy marcou o “início da reflexão jurídica mais profunda sobre o tema” (MARQUES, 2020, p. 40).

O movimento que iniciou nos Estados Unidos atravessou fronteiras, ao ponto de influenciar outros ordenamentos jurídicos mundo afora. A segunda metade do século XX presenciou uma profusão legislativa cujas temáticas incidiam na relação jurídica consumerista, e, inclusive, houve recorrente positivação em textos constitucionais de princípios e regras assegurando a proteção.

Vindo para o contexto brasileiro, a Constituição Federal de 1988 trata do tema, especificamente, em seu art. 5º, inciso XXXII e art. 170, inciso V. Naquele, disciplina que cabe ao Estado a defesa do consumidor, seguindo-se os ditames legais e, neste, que a defesa do consumidor é um dos princípios integrantes da ordem econômica da República Federativa do Brasil (BRASIL, [2024]). Além disso, há outros dispositivos que, se não expressamente citam a tutela consumerista, a ela também são aplicáveis, como o disposto no art. 129, III, CF/88, no qual se atribui a função institucional ao Ministério Público de promover inquérito civil e ação civil pública para atender a interesses difusos e coletivos (aí inseridos os dos consumidores) (BRASIL, [2024]).

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Em razão do tratamento constitucional, no Brasil a proteção ao consumidor é entendida como direito fundamental subjetivo que goza, simultaneamente, de um caráter negativo – um não agir estatal e de terceiros para interferir no exercício de tais direitos – e outro, positivo – calcado em condutas ativas das autoridades, entes e órgãos públicos, visando a resguardar a observância dos direitos dos consumidores, a normatizar e a fiscalizar o cumprimento das normas e regulamentos, a informar e educar à população sobre os seus direitos e obrigações etc. (MARQUES, 2020).

No nível infraconstitucional, a principal Lei é a de nº 8.078/90, publicada em 11 de setembro de 1990, em vigor desde então, conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC). No CDC há importantes conceitos – consumidor, fornecedor, relação de consumo etc. –, princípios, direitos e obrigações de consumidores e fornecedores, prescrição e decadência, normas procedimentais individuais e coletivas, sanções administrativas e infrações penais, entre outros aspectos de grande relevo para a tutela das relações de consumo.

Não só no ambiente doméstico, mas também no internacional houve a criação de normas que regulam a relação consumerista. Um exemplo disso são as Diretrizes das Nações Unidas para a Proteção do Consumidor (United Nations Guidelines for Consumer Protection), documento nascido em 1985 e posteriormente revisado em 1999 e em 2015, no qual constam diversas orientações para os Estados construírem ou aprimorarem suas normas de proteção ao consumidor e interrelacionarem-se cooperativamente em prol de assegurar o cumprimento das normas (CAVALCANTI, 2021).

A União Europeia e o Mercosul – blocos de integração regional, aquele edificado no II pós-guerra e este nos anos 1990 – também se debruçam normativamente sobre diversos aspectos das relações de consumo. Dentro do bloco europeu destacam-se o Regulamento (CE) Nº 593/2008, conhecido como Roma I (lei aplicável às obrigações contratuais, aí inseridas as relativas às relações de consumo); a Diretiva 2005/29/EC sobre práticas comerciais abusivas no mercado europeu; a Diretiva 2006/114/EC sobre publicidade enganosa e comparativa; a Diretiva 93/13/EEC, emendada em 2019, sobre termos contratuais injustos, entre tantas outras (UE, 2024).

Já no panorama mercosulino, a título de ilustração podem ser citadas a Resolução GMC nº 21/04 (abordou direitos do consumidor nas relações via internet), a Resolução GMC 34/2011 (fixou os conceitos comuns ao bloco, tais como o de consumidor, fornecedor, produto, serviço dentre outros) e o Acordo Mercosul sobre Direito Aplicável em Matéria de Contratos Internacionais de Consumo (tratado internacional entre os membros do bloco que visa a dirimir dúvidas quanto ao direito a ser aplicado diante de relações contratais transnacionais) (CAVALCANTI, 2021).

Todo esse arcabouço normativo, nacional e internacional, só se tornou possível, em razão daquele discurso de JFK no dia 15 de março de 1962. Portanto, nada mais justo do que atribuir à data a alcunha de Dia do Consumidor, em homenagem e respeito ao peso daquele momento histórico.

REFERÊNCIAS

BRASIL, República Federativa do Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, [2024]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 14 mar. 2024.

CAVALCANTI, Igor de Holanda. As contribuições das Diretrizes das Nações Unidas sobre a Proteção do Consumidor (UNGCP) para a tutela das relações de consumo no comércio eletrônico no Mercosul. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Orientador – Prof. Dr. Paul Hugo Weberbauer, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/42228. Acesso em: 14 mar. 2024.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2019.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Special Message on protecting the consumer interest to the Congress of the United States. John F. Kennedy Presidential Library and Museum. 1962. Disponível em: https://www.jfklibrary.org/asset-viewer/archives/jfkpof-037-028#?image_identifier=JFKPOF-037-028-p0019 Acesso em: 13 mar. 2024.

MARQUES, Cláudia Lima. Introdução ao Direito do Consumidor. In: BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe (Orgs). Manual de direito do consumidor. 9 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.

UNIÃO EUROPEIA. Legislação de proteção dos consumidores. Comissão Europeia. 2024. Disponível em: https://commission.europa.eu/law/law-topic/consumer-protection-law_pt . Acesso em 13 mar. 2024.

Sobre o autor
Igor de Holanda Cavalcanti

Advogado. Professor de Direito Constitucional na UNINASSAU. Mestre em Direito pela UFPE. Bacharel em Direito pela UNINASSAU-Recife. Pesquisador no Grupo de Pesquisa "Integração regional, globalização e direito internacional" da UFPE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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