Direito e Literatura em Machado de Assis

25/03/2024 às 19:58
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Direito e Literatura em Machado de Assis: a proporcionalidade como intersecção

Dra. Ana Clara de Melo

Doutora em Letras. Graduação em Direito e Letras.

Especialista em Educação em Direitos Humanos

Escritora. Advogada. Cronista. Professora.

O conto “O caso da Vara”, de Machado de Assis, publicado em 1891, época dos primeiros anos da República, faz com que reflitamos a respeito do Direito e Literatura. Essa perspectiva teórica teve como precursor John Henry Wigmore, publicando em 1908, A list of one hundred legal novels. Ele elencava nesta obra categorias temáticas em direito e literatura.

Vale rememorar que em, “O caso da Vara”, o narrador machadiano conta a história de um seminarista, sem vocação para Padre, que fugira do Seminário, situação esta muito semelhante, diga-se de passagem, ao momento histórico em que vivíamos: momento da República em uma sociedade nacional com mentalidade escravagista. Trata-se, portanto, de um conto posterior à abolição, em cujo horizonte está o leitor da incipiente República brasileira. Ainda assim, é um conto ambientado nos primórdios do Segundo Reinado, culminando em uma cena de violência típica da lógica escravista: a punição arbitrária de uma escrava doméstica.

Em pleno florescer republicano, Machado escreve sobre o império e a escravidão. O motivo para fazê-lo está sugerido no prefácio ao volume de 1899: o assunto ainda agora interessava, como lembra Maurício dos Santos Gomes, em seu artigo “O caso da vara: no alvorecer da república”. A intrínseca relação entre o Direito e a Literatura começa a transparecer.

A presença de elementos do Direito na cena é algo extremamente enriquecedor também. O narrador conta que João Carneiro, procura recursos, decretos, para construir um argumento louvável para justificar a saída de Damião do Seminário ao seu pai. Exatamente como ocorre atualmente, quando se procuram, ou mesmo criam-se leis para justificar o ilícito porte da maconha – o julgamento da descriminalização da maconha acontece no STF, e os Ministros cobram dos legisladores que se criem leis para se dirimirem sobre o caso; o Senado se apressa em criminalizar a maconha, a fim de impedir a decisão pelo STF de descriminalizar, já que o placar para tal se encontra em 5x3 em favor da descriminalização.

O próprio título do conto é uma brincadeira irônica com as varas jurídicas. O Conselho Nacional de Justiça – CNJ – esclarece que a vara judiciária é o local ou repartição que corresponde a lotação de um juiz, onde o magistrado efetua suas atividades. Em comarcas pequenas, a única vara recebe todos os assuntos relativos à Justiça. A casa de Sinhá Rita se transforma na vara que julgará o caso de Damião, ao mesmo tempo em que a vara é um personagem importante como objeto de punição à Lucrécia, que sugere-se ter sido açoitada.

O sugestivo açoite de Lucrécia ao final é um símbolo da sentença jurídica: a introdução do texto seria uma alusão à fase processual de conhecimento da lide, quando se explica a fuga de Damião do Seminário. O desenvolvimento, tentativa de Damião em encontrar meios de convencer seu responsável de aceitar a sua fuga do Seminário, e a fase de argumentação do processo, para que a advogada, Sinhá Rita, receba a sentença do juiz, que decidirá se Damião pode ou não sair do Seminário. João Carneiro é o oficial de justiça, que leva e traz os pedidos.

Maurício dos Santos Gomes explica que a tragédia doméstica de Lucrécia ganha amplitude nas evocações de seu nome: sua xará romana, descrita por Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso, tornou-se célebre no cânone ocidental não apenas pelo destino trágico, o suicídio após a violação do príncipe Sexto, mas também enquanto mito fundador da república romana. A Lucrécia romana, vítima do arbítrio, defende a castidade com o suicídio, mas não sem antes clamar ao marido por vingança. Os efeitos políticos dessa situação são imediatos: o fim da monarquia e a instauração da república em Roma. Em outras palavras, Lucrécia carrega em seu nome a evocação da violência arbitrária e desmedida, cuja vingança, ao menos no caso romano, pôs fim à monarquia.

A própria época do conto, o ano de 1845, marca, na Inglaterra, a criação da lei de Bill Aberdeen, que permitia aos ingleses reterem os navios negreiros que rumavam ao Brasil. Era uma tentativa de por fim à escravidão. Logo nas primeiras linhas do conto, Machado pontua esse período.

Sob o ponto de vista literário, tem-se a denúncia de uma sociedade que vive de fachada, que não vivencia aquilo que ela se mostra ser e é, ao mesmo tempo, cheia de interesses pessoais. Tem-se o desmascaramento da sociedade em seu cotidiano, característica muito presente em Machado de Assis. Na verdade, o escritor mostra que a mercadoria está em primeiro lugar para os personagens machadianos: as características psicológicas e as ações dos personagens são regidas pelo capital. Na linguagem atual, as pessoas são regidas pelos bens de consumo e não há como ser diferente, pois o fator político-econômico prepondera sobre qualquer outro aspecto psicológico, ambiental. Isso é muito atual, pois a sociedade do século XXI ainda privilegia os ganhos econômicos em detrimento, por exemplo, aos ambientais: florestas são devastadas para se garantir os ganhos de madeireiros.

Interessante é o quão atual se apresentam os debates literários que podem surgir dos textos machadianos. A literatura não serve para criticar apenas um momento da época em que se escreveu o texto. Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos?, já explicava que os clássicos ultrapassam os limites de seu tempo. Machado de Assis, autor negro de nossa literatura brasileira, ao contrário do que muitos imaginavam, é um dos escritores brasileiros mais estudados dentre todos os nossos escritores. É um exemplo de grande clássico. A seleção de questões universais é um fator que o põe dentro do cânone literário internacional inclusive. Isso sem mencionarmos a riqueza artístico-literário de sua técnica textual: uso do tempo psicológico, invasões reicinsivas do narrador na fala dos personagens, uso da linguagem simples para a época, prolepses textuais, o bom-humor mesmos nos momentos difíceis dos personagens, a gradação para a criação do clímax da história, as revelações surpreendentes acerca dos personagens e ações, o interesse dos personagens em favores, a falta de princípios morais dos personagens... um verdadeiro desnude de nossa vida moderna.

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A pedagogia dominante na cena machadiana é a do medo, ainda extremamente presente na sociedade republicana, embora seja da época da escravidão: ensinava-se o negro pelo castigo físico, moral, psicológico, sexual e patrimonial – semelhante ao que ocorre com muitas mulheres que sofrem violência doméstica hoje em dia. Percebe-se que a pedagogia do medo ainda está muito presente em nossa sociedade do século XXI, que deseja ensinar por meio de castigos e punições – outro exemplo marcante é a educação de crianças com agressões físicas pelos pais.

Ao final da estória, Damião dá a vara para Sinhá Rita açoitar a escrava, mesmo ele tendo dito que iria cuidar da mesma. A sociedade de interesse em favores pessoais é marcante nesse momento, porque Damião renuncia ao que havia prometido: apadrinhar Lucrécia. Sinhá Rita é a pessoa que pode ajudá-lo a não voltar mais para o Seminário e, no seu entender, ele precisa estar do lado dela para ter as suas vontades atendidas. É a famosa política do favor que Roberto Schwarz tanto defendeu estar presente na obra machadiana, no livro Ao Vencedor, as Batatas. Há outros momentos no texto para ilustrar a afirmação: à viúva interessa dominar o amante; ao padrinho, garantir a amizade do compadre e os amores de sinhá Rita.

Esse modelo de interpretação dentro da perspectiva do Direito e Literatura nos faz refletir, também, sobre um ponto em comum entre ambos: os limites interpretativos. Direito e Literatura se relacionam na medida em que utilizam a ferramenta da proporcionalidade entre realidade e irrealidade, entre possível e impossível, que permeia o campo da interpretação em ambos. A proporcionalidade é uma ferramenta de análise metodológica que representa a busca de interpretações mais justas e adequadas, necessárias e proporcionais, para servir ao conflito entre o real e o irreal, auxiliando o crítico na ponderação do social, econômico, político, cultural e artístico em uma obra literária. Algo semelhante ao que propunha Humberto Ávila, em Teoria dos Princípios: sopesar os pontos positivos e negativos, a fim de se encontrar um meio termo.

Esse princípio é constituído pela união de outros subprincípios: a adequação ao caso concreto - adequação entre meios e fins -, exigibilidade ou necessidade - vedação do excesso. Direito e Literatura se preocupam com a proporcionalidade no momento interpretativo de compreensão do texto jurídico e do texto literário respectivamente. Assim, se a medida não for adequada, nem sequer valerá a pena verificar se é necessária ou proporcional em sentido estrito.

A título de exemplo, em uma lide em que exista a colisão de princípios jurídicos, por exemplo, há de se usar da proporcionalidade para verificar os elementos que afrontam os princípios fundamentais constitucionais estreitamente ligados à dignidade da pessoa humana, como a saúde, a alimentação, a moradia, o meio ambiente etc.

Assim, pode-se dizer que há mais cousas entre o Direito e a Literatura do que se poderia dizer aqui nessas poucas linhas. Resta apenas se recomendar a apreciação da obra machadiana, pois ela continua mais atual do que se pode pensar.

Sobre a autora
Ana Clara de Melo

Doutora em Letras. Graduação em Direito e Letras. Especialista em Educação em Direitos Humanos, Métodos Adequados de Solução de Conflitos, Gestão Tributária e Empresarial. Professora de Direito Constitucional. Escritora e Pesquisadora. Assessora e Consultora Acadêmica. Advogada. @ana.claradv

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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