Em nossas aulas de Psicopatologia e Processos Jurídicos, examinávamos os diversos estudos da questão “Normalidade ou patologia?” e suas derivações, e ficávamos atentos aos casos concretos no Brasil. Tudo era focalizado nos livros e ensinamentos do nobre professor doutor Antônio José Eça, em seus ensaios e roteiros de psicopatologias forenses.
Éramos orientados a atermo-nos à matéria da Criminologia, na qual é muito comum encontrar classificações de criminosos múltiplos, quando se observa que cada autor pretende dar a seu arranjo um matiz próprio, com a natural consideração de que a sua interpretação é a melhor delas.
Eu viajava na maionese com os meus colegas discorrendo sobre o laboratório de Quantico. Sempre fui entusiasta dos métodos e da classificação do Federal Bureau of Investigation (FBI), e do tema da psicopatia grave, elevada aos assassinatos em série, definidos como mais de três eventos separados em três ou mais locais, distanciados por uma lacuna designada “período de resfriamento emocional” entre os homicídios. Ainda que à primeira vista tal definição pareça estar completa, ela apresenta carências evidentes quanto à quantificação de vítimas e do período de resfriamento, o que se qualifica como o lapso compreendido após a satisfação obtida no evento criminoso — a etapa de ouro — até a prática de um novo assassinato.
Procurava ler sobre como foi cunhada a expressão desses acontecidos nos EUA, tinha uma admiração e o sonho de que o Brasil tivesse uma central de estudos de episódios envolvendo assassinos em série, igual à existente em Quantico, Virgínia, na Unidade de Apoio Investigativo, antiga Unidade de Ciência do Comportamento, que por muitos anos foi comandada pelo agente especial John Douglas, durante a década de 80.
Ela também comporta a academia de exercício dos agentes, a National Center for the Analysis of Violent Crime (NCAVC), integrada por agentes especiais supervisores e oficiais de polícia com ampla experiência prática e científica em Psicologia, Criminologia, Sociologia e Resolução de Conflitos, envolvendo analistas de cena de crime e outros representantes de inúmeros direcionamentos, pois a multidisciplinaridade é basilar a essa tão curiosa e abarcante ciência.
Ainda que muitas conjecturas ou abordagens tratadas no imaginário dos autores de livros ou na cinematografia, revistam-se de gradação ambígua, sendo induzidas pela licença inventiva, por certo não há de se negar que muitas dessas acometidas, efetivamente, obedecem a acontecimentos reais, no que se refere ao pensamento dos homicidas em série, notadamente da época presente, quando possuímos ilimitadas soluções de pesquisa na palma de nossas mãos, através da Internet e do infindável mundo da Tecnologia da Informação.
Ao versarmos sobre os assassinos em série, poderíamos proferir que são sujeitos possuidores de um arquétipo peculiar relativo à opção de suas vítimas e à fórmula de cometimento dos crimes, elemento central na composição da feição criminal. No aspecto local, a minha linha de concentração buscava compreender a delinquência juvenil no Distrito Federal e em seu entorno, onde existia uma gama considerável de grau pernicioso: a superlotação das unidades socioeducativas, consideradas como curso preparatório para os futuros integrantes, quando maiores, da Penitenciária da Papuda.
A contribuição enumera vários fatores para esse tipo de criminalidade, como a exclusão social, por exemplo. Diante dos hábitos da coletividade, esses jovens se encontram sem esteio e sem norte, então o adolescente entra para o mundo da criminalidade com o desígnio de ser notado, querendo ter visibilidade. Fato é que em muitas das vezes essa exclusão se inicia no seio familiar, assim os moços que buscam relevo social se oferecem para a prática das transgressões.
A entrada dos jovens no universo criminal pode estar conexa a vários fatores sociais e institucionais, os quais geralmente confirmam para a constância deles na esfera delitiva por ocasiões relativamente extensas, com muitos aperfeiçoando seu curso na delinquência. Comumente, são produtos deste meio escuro e triste, o da desestruturação doméstica, das agressões intrafamiliares, das desordens interpessoais, do alcoolismo, do uso de drogas, do conflito e da disputa das máfias locais por distribuição de narcóticos etc. Sendo membros ou não, ficam deslumbrados pela atratividade do ganho fácil que outros meninos propagandeiam, um marketing encantador para o recrutamento de incautos às voluptuárias conveniências do submundo do crime.
Diante da ineficácia do arranjo familiar e da frágil ferramenta de recuperação social pelo aparato estatal, contrapõem o ter e o ser em coletividade. O estoque de rejeitos humanos nas alas de recuperação potencializa uma visão de mundo: a de ser um nada. Nessas alas, ele se vê e se compara com todos os demais, disputando poder nas celas e nos pátios — o mais forte e agressivo é quem manda no local e sempre vence.
Disso tudo, analisávamos um caso a nós relatado: uma empregada doméstica que saía às cinco horas e chegava às sete horas na casa dos patrões, deixando para trás uma vida sofrida em um casebre no entorno de Brasília, com um marido alcoólatra e agressivo que batia nela e nos filhos. A patroa deslumbrante, com bons perfumes, na alta moda e com um super emprego, saía em seu carrão, e seu marido nas mesmas condições, sempre impecável, culto e elegante com todos.
A empregada via aquilo tudo e fazia uma comparação mental do que deixou em casa e do que via no momento com os chefes. Suas atribuições eram lavar, passar, cozinhar e cuidar dos filhos menores que ficavam sob sua guarda. Das suas obrigações, onde eram visíveis os erros a olho nu: a roupa passada não poderia estar amassada e muito menos queimada, e a comida deveria ser perfeita.
Aqui observávamos uma conexão que existiria com a conclusão contundente da qual outros estudos empíricos já falavam: ninguém é bom em fazer diversas coisas ao mesmo tempo. A outrora prática de RH dizia que o cérebro humano não consegue processar duas atividades exatamente no mesmo momento, e o máximo que ele faz é alternar rapidamente entre várias tarefas, dando uma impressão de simultaneidade. Predominavam as máximas populares:
— Quem gosta de lavar a louça, odeia enxugá-las.
— Quem cozinha, não gosta de lavar e enxugar.
— Quem lava roupa, detesta passá-la.
— Quem tempera a carne, não gosta de assá-la.
— Quem assa carne, não a serve.
— Quem lava o chão, não rapa.
— Quem escreve e calcula, não enxerga os erros.
— Quem prega o prego, não o arranca.
Algo sempre poderia ficar mal feito, mascarado ou em segundo plano. O professor dizia ter ouvido que a patroa reclamava que esses menores que ficavam no dia a dia em casa passaram a ter os mesmos erros de português e o sotaque da empregada. Os relatos que nos eram apresentados abordavam toda aquela carga negativa. Os seus problemas, as mágoas, as frustrações em ser alguém mal-amado ou se sentir um zé ninguém, de não poder dar aos seus aquilo que presenciava cotidianamente, de não poder ser o que a patroa era e de não ter o marido que vislumbrava, criariam uma cobiça mental na empregada, e a sua imaginação e o seu subconsciente não absorveriam os fatos que ela achava intransponíveis, gerando do assim uma amargura mental.
A empregada despejaria por via reflexa todo esse possível acúmulo de potência negativa nos menores, os mais frágeis, que estavam o dia inteiro à sua volta. Os patrões o dia todo fora de casa, não tendo tempo de espelhar o reflexivo norte, como diz um velho ditado “O que engorda o gado é o olho do dono”. Meus ascendentes sabiamente diziam que a hora das refeições era sagrada, e que elas deveriam ser à mesa, com todos sentados, um ritual quase que espiritual, a figura messiânica do pai ou avô. Essa reunião efetivava a transmissão da educação, da moral e dos bons costumes aos filhos e netos. Seria nesse ato o reflexo da personalidade dos pais, um simples pegar nos talheres transmitiria um espelho contundente ou uma bússola da personalidade. Essa imagem, o tom de voz, a educação e a etiqueta social seriam transmitidos por osmose, refletindo os bons modos. O modelar praticado permearia a formação do caráter, pois se aprende pela observação e pelo exemplo.
Com o advento das tecnologias, as distâncias, a cultura workaholic, a necessidade de o casal trabalhar fora e de os filhos participarem de cursos, academias e de todas as modernas obrigações sociais, sem falar das separações e dos divórcios, fizeram com que as antigas reuniões familiares fossem relegadas, postergadas ou simplesmente deixassem de existir. Algo que no passado sempre funcionou, atualmente nem as brincadeiras externas, as quais motivavam as inter-relações sociais através da ludicidade, existem mais. Hoje, é só celular, Internet e séries. Produziu-se uma gama de doenças sociais, neuroses por tecnologia, ansiedades, dislexias e tantas outras despejadas sobre os jovens em todos os níveis.
Diante dessa problemática social e familiar, ouvíamos constantemente os relatos de histórias análogas nas Papudas da vida, onde esses jovens que tinham uma estrutura psicológica frágil, eram as presas fáceis e se contaminavam por influências de cargas neuróticas de terceiros, passando a ter a mesma personalidade fria e calculista, não tendo dó de seus familiares e colegas de escola — o ambiente os contaminara.
Se tivessem a predominância de possuírem uma característica acessória, quem sabe uma capacidade reduzida de empatia, uma dificuldade para compreender as emoções da mesma forma que os outros, não sendo diagnosticados com algum transtorno de personalidade antissocial, as influências externas e os aprendizados contribuiriam para a uniformização dos anseios maléficos e evoluiriam o seu grau de insanidade.
Mas não podíamos relativizar, generalizar e dizer que isso era muito comum, pois não tínhamos base científica quantificável. Não sabíamos se eram casos isolados de pessoas que possuíam uma capacidade mental influenciável pelo meio ambiente, ou se isso era normal.
Nosso professor nos contou o segundo caso concreto de um vizinho de porta, para observarmos: um casal de agricultores veio do sertão do Piauí para a Região centro oeste tentar a sorte e arrumaram emprego como faxineiros. Ele era analfabeto e conseguiu uma bolsa interna para alfabetização acelerada e conclusão dos estudos. Depois acabou passando no vestibular em Direito numa universidade federal e se tornou magistrado. A esposa não teve o mesmo destino e ficou com as tarefas domésticas e a criação dos filhos, permanecendo analfabeta. Simplória, não pôde acompanhar a evolução social do marido.
Ao receberem visitas em seu apartamento, por décadas ele escondia a esposa e os filhos, trancando-os na dependência dos empregados. Tinha vergonha deles e nunca os apresentava aos seus colegas e amigos. O mestre confidenciou que um dos filhos foi partícipe em um brutal e repercutido crime ocorrido na época. Em suas análises de criminologia forense, era evidente o desvio de personalidade ocorrido nesse caso, em que jovens que eram desprovidos de sentimentos não tinham dó nem piedade.
Atualmente, os jovens não são preparados psicologicamente para perderem, não admitem o seu fracasso, não querem sucumbir nunca e não desejam aprender com os erros. Exemplos atuais: ele é demitido, volta na empresa e atira no patrão; a namorada desmancha o namoro ou diz que não o ama mais, ele vai até ela e a mata; alguém reprova ou tira nota baixa e quer se vingar dos professores ou manda os pais entrarem na Justiça; uma pessoa não consegue alguma coisa e põe a culpa no mundo, na depressão ou no uso de drogas…
Após esses ensinamentos, passei a aprofundar-me com acuidade sobre a mente criminosa brilhante dos chamados gênios do crime, que se destacam por perseguirem a fama, por necessitarem de uma plateia. De que adiantaria ou para que serviria ser um expert em algo se ninguém soubesse dessa sua expertise? O reconhecimento é o combustível que alimenta o seu ego, e como qualquer artista ele quer o aplauso. Sempre deixará um rastro ou uma pista, pois quer que alguém saiba de suas geniais habilidades como mentor intelectual do mundo do crime ou da psicopatia. Sempre desejará ser o melhor, pois quer holofotes, alguém deverá ou terá de elogiar sua estratégia ou arquitetura organizacional de delitos — o incansável desejo humano de ser importante.
Das leituras de Sherlock Holmes
Nas folgas e nas minhas viagens, dava muita atenção às minhas leituras — e também aos filmes — de Sherlock Holmes, o célebre detetive, e de seu adjunto, o doutor Watson, cuja saga me entretinha por horas. Nos livros de Sir Arthur Conan Doyle, e nos filmes por eles inspirados, o detetive Sherlock Holmes sempre era agraciado nas entrelinhas com um brinde: o vilão, de graça, o premiava com alguma micropista ou com um deslize ocasional, por excesso de preciosismo ou pela clara necessidade de ser elogiado e reconhecido pela Scotland Yard, quando os investigadores afirmavam estar diante de um crime perfeito, de impossível de resolução.
Nesse universo literário, certifiquei-me e tive a constatação daquilo que os chavões e as máximas investigativas dizem: o delito não equilibra, a falsidade não vai longe e logo é descoberta, e o mascaramento da inverdade como verdade sempre possui uma imperfeição que acaba por revelá-lo. Não existe um crime perfeito, nem almoço grátis: a pista deixada nunca era exatamente de graça, pois os criminosos sempre queriam algo em troca.
Um paralelo pode ser feito com o filme brasileiro Cidade de Deus. Nele, o personagem Zé Pequeno ordena a Buscapé que o fotografe e ele assim o faz. Mas quando as fotos vão parar por um engano na primeira página do jornal, e Buscapé acha que iria morrer por causa disso, Zé Pequeno tem um orgasmo psicológico ao ver sua foto no tabloide — era a máxima realização de sua ascensão criminal.
O gênio do crime também sempre se vangloria de sua capacidade ardilosa ou da inteligente metodologia que emprega nos subterfúgios ao executar uma ação delituosa, mas na maioria das vezes esquece-se de elogiar ou dar crédito aos seus auxiliares, principalmente aos que estão em cargos menores na hierarquia criminosa.
Ao longo do tempo, esses esquecidos vão criando uma antipatia ou um ranço da chefia, notadamente na fase de repartição do objeto do crime, ou quando querem uma premiação por uma atuação relevante na execução de uma empreitada ardilosa.
Além do inconsciente hábito do chefe de deixar pistas de seus crimes, os subalternos insatisfeitos auxiliam-no com microsabotagens ao longo do caminho delituoso. Os auxiliares do gênio também necessitam de reconhecimento e querem ser elogiados, por isso passam a sonhar com e nutrir a vontade de galgar cargos ou derrubar o poder do chefe para substituí-lo na pirâmide organizacional do crime organizado.
Resumindo: um audacioso marginal sempre poderá se esquecer e deixar uma micropista na cena do crime, a qual saltará aos olhos na reta da veracidade. Sendo elementar — jargão dirigido ao doutor Watson —, bastará apenas usar os instrumentos da dedução, os indutores do desvendar, para conectar as pontas soltas da charada e pôr fim à rede lógica, desenrolando os emaranhados laços do crime.
No final de cada obra, eu ficava cheio de inquietações tentando entrar na mente do autor. Como eu, um mero leitor, entenderia tão complexa imaginação, e essa sua aventura inventiva? Qual seria o método construtivo que o levava a esses célebres enredos? Na minha singular ótica probabilística, seguindo o íntimo das minhas ilações (in)coerentes e buscando um norte aos avessos, ideava a ligação maléfica e, posteriormente, arquitetava as minúcias do delito, bolando aquilo que seria o rastro largado e esquecido no meio do caminho do ardiloso bandido.
Depois, apenas o narrar da historíola iniciada no imaginário do investigador, esse decifrador de charadas. Pasmem! Proferindo desse modo, denoto algo simplista, contudo, verifico que a dita empreitada ordena algo além de uma fantasia. Exige-se exames e prospecção, infindáveis ocasiões de apego, e tirocínio pregresso para difundir a confiabilidade do expectador interessado.
Esse leitor já vem com o seu íntimo polêmico, prevenido e atento, e também investigará linha por linha, parágrafo por parágrafo, doidinho para achar um deslize qualquer — por mais ínfimo que seja, será o bastante para desabar o descrito.
Em meu amadurecimento intelectual, abarquei a ideia de que os delitos primorosos não são aqueles feitos sem que o mentor intelectual do crime se descuide deixando rastros que possam apontar a sua autoria, contudo sim aqueles nos quais não se pode prender quem os ocasionou. Mesmo que convencidos fiquemos diante da autoria e do modus operandi do criminoso, nossas mãos estarão atadas e não poderemos enjaular o meliante para que ele veja o sol nascer quadrado, pois o ardiloso encontra, ou já tem, as formas de ludibriar os mecanismos do aparato estatal. Ou seja, ele possui uma engendrada engenharia para manipular os caminhos jurídicos, tem a expertise e se prevalece dos repugnantes e entrelaçados tentáculos do Leviatã de Thomas Hobbes: o maldito monstro burocrático do Estado.
O legislador os criou, sim!, com o fito de disciplinar os atos da vida em sociedade, mas, no fundo, os amarrou e “enosou” a sensatez e a lógica do sistema judiciário. Logo, penso que o aparato faz com que nos sintamos enganados, desprovidos de uma visão sistêmica. Ele nos fez de perfeitos idiotas, pacientes do estágio de inocência interna ao darmos crédito a esses mecanismos que têm falhas e são invadidos. Quem seria ágil, célere e eficaz em fazer a justeza da Justiça?
Por fim, ele joga todas as suas cartas na cristalina ao sair ileso, impune e cantando aos quatro ventos a sua conquista, o seu triunfo e as suas vitórias — salvo melhor juízo.
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Em todos os casos, o crime não compensa, não existe crime perfeito, o inimigo pode estar ao seu lado e sempre existirá uma ovelha sombria em alguma família.