Vetos presidenciais anteriores à Resolução do Congresso Nacional nº 1, de 2013: um problema de centenas de bilhões de reais

01/04/2024 às 15:55

Resumo:


  • O julgamento do Mandado de Segurança nº 31.816/DF pelo STF trouxe à tona o problema dos vetos não apreciados pelo Congresso Nacional.

  • Os vetos antigos não apreciados permanecem em um "limbo jurídico" e podem ser incluídos na pauta a qualquer momento, representando um estoque substancial de matérias não deliberadas.

  • Propõe-se a reanálise do impacto orçamentário dos vetos antigos e o arquivamento ao final da legislatura como medidas para lidar com a insegurança jurídica decorrente desse cenário.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

1. Introdução

O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Mandado de Segurança nº 31.816/DF1 trouxe à tona o problema dos vetos não apreciados pelo Congresso Nacional. À época (2013), computou-se um total de mais de três mil dispositivos vetados não apreciados, alguns dos quais com prazo vencido há mais de uma década, em evidente desrespeito ao texto constitucional.

Desde então, com a edição da Resolução nº 1, de 2013, o Congresso Nacional tem realizado esforços no sentido de apreciar os novos vetos presidenciais tempestivamente, obedecendo, com maior rigor, ao teor do art. 66, § 6º, da Constituição Federal2.

Todavia, um problema remanesce: o que deve ser feito com relação aos vetos antigos, não apreciados pelo Congresso até o ano de 2013?

Atualmente, prevalece o entendimento de que tais vetos não sobrestam a pauta das sessões do Congresso Nacional3. Todavia, permanecem em um “limbo jurídico”, pois não foram deliberados e podem ser incluídos em pauta a qualquer momento4.

Trata-se de estoque substancial5 de matérias não apreciadas pelo Poder Legislativo, tendo a Advocacia-Geral da União, à época (2013), estimado que a rejeição de alguns vetos poderia acarretar gasto adicional para o Tesouro Nacional de até R$ 1 trilhão6. Assim, em tese, atualmente, por conta do resultado de uma única sessão do Congresso Nacional (em que constem da pauta todos esses vetos), a despesa pública permanente pode ser acrescida, subitamente, de várias dezenas ou centenas de bilhões de reais.

A nosso ver, essa anomalia do “processo legislativo inconcluso” deveria merecer especial atenção e ter seu desenlace realizado pelo Parlamento, evitando que o problema se torne insolúvel com o passar do tempo7.

Neste artigo, abordaremos algumas possíveis formas de lidar com a insegurança jurídica advinda da existência de estoque de vetos não deliberados Congresso Nacional até 2013. Em nossa visão, esses dispositivos vetados não deveriam ser incluídos em pauta de sessão deliberativa do Congresso Nacional sem reestimativa de impacto orçamentário (em obediência ao art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Ademais, acreditamos que lhes é aplicável o instituto do arquivamento ao final da legislatura, seguindo a disciplina do art. 332 Regimento Interno do Senado Federal8, tal como ocorre com as demais proposições legislativas.

2. Do enquadramento dos vetos presidenciais na categoria “proposição legislativa”

Em primeiro lugar, para aprofundar nossos estudos, é preciso reafirmar o pertencimento dos vetos à categoria semântica das “proposições legislativas”9.

Nessa linha, muito embora o Regimento Comum do Congresso Nacional (Resolução do Congresso Nacional nº 1, de 1970) não conceitue “proposição”, é possível extrair o seu significado do art. 100 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (Resolução nº 17, de 1989), segundo o qual “proposição é toda matéria sujeita a deliberação” pela respectiva Casa Legislativa.

Ademais, em reforço a essa definição, o próprio texto constitucional (art. 66, § 6º) insere o veto na categoria das espécies pertencentes ao gênero “proposição”. Isso, porque ao afirmar que findo o prazo para deliberação dos vetos ficam sobrestadas “as demais proposições”, a Constituição Federal implicitamente (e de maneira sutil) inclui o veto no rol de proposições legislativas.

Assim, numa análise semântica, o vocábulo “demais” (presente no art. 66, § 6º, do texto constitucional) marca a inclusão do veto em um gênero (“proposições”) e também destaca que há uma diferença específica em relação aos demais integrantes desse gênero, tornando o veto uma espécie única (pois possui traços característicos que o contrapõem às “demais proposições”)10.

Desse modo, cumpriu bem o constituinte, em ilocução11, o objetivo de definir e classificar o veto presidencial, delimitando-lhe o gênero e a diferença em relação às demais espécies que compõem a mesma categoria.

Aliás, alinhado a essa ordem de ideias, registre-se que o veto, na prática cotidiana do Congresso Nacional, tem recebido o exato tratamento conferido às proposições legislativas (e, como tal, sujeito a “destaque”, “prejudicialidade” e “urgência”). Conforme preleciona Pereira, “assim como ocorreu quanto à prejudicialidade, a atração do instituto da urgência regimental para a tramitação do veto é consequência da interpretação do veto como proposição”12.

3. Da necessidade de reanálise do impacto orçamentário dos dispositivos vetados

Assente que os vetos são proposições legislativas, torna-se evidente que é necessário que cumpram o disposto no art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (aplicável a quaisquer espécies de proposições):

“Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.

Desse modo, é de se exigir que cada dispositivo vetado cumpra o requisito acima transcrito, isto é, tenha realizada estimativa de seu impacto financeiro e orçamentário, a fim de que possa ser deliberado pelo Congresso Nacional.

Todavia, no caso dos vetos anteriores à Resolução do Congresso Nacional nº 1, de 2013, considerando o longo tempo decorrido, é necessário, a nosso ver, que haja reestimativa do impacto orçamentário como requisito para que essas matérias possam prosseguir seu trâmite no Congresso. Tal medida é imprescindível porque tanto a inexistência de estimativa quanto sua defasagem implicam descumprimento à exigência art. 113 do ADCT.

Portanto, a reestimativa do impacto orçamentário dos dispositivos vetados anteriores à Resolução nº 1, de 2013, além de indispensável, é medida que conferiria maior segurança jurídica (e econômica) à sua apreciação.

4. Da possibilidade de arquivamento dos vetos presidenciais ao final da legislatura

Além da reanálise de impacto orçamentário, uma segunda medida que conferiria segurança jurídica à apreciação dos vetos seria a possibilidade de seu arquivamento ao final de cada legislatura. Nesse sentido, indagamos: é possível que os vetos presidenciais sejam arquivados nessas situações?

É importante salientar que os Regimentos Internos do Senado Federal (art. 332) e da Câmara dos Deputados (art. 105) preveem o arquivamento de proposições ao final da legislatura (com um limitado rol de exceções, nas quais o trâmite da matéria poderá prosseguir). Dessa forma, obedecem a um princípio geral do processo legislativo: o princípio da unidade de legislatura13.

Assim sendo, não se pode crer que a tramitação dos vetos no Congresso Nacional deva ser exceção única ao citado princípio (pois não deveriam existir proposições que tramitem ad aeternum). Isso, porque há necessidade de observância de certa simetria na atuação das Casas Legislativas (e do Congresso), pois a Constituição, apesar de não detalhar o processo legislativo14, traz em seu bojo certas diretrizes amplas, como garantia de uniformidade no trâmite das proposições. Ora, como se poderia explicar que Câmara e Senado arquivem proposições ao final da legislatura enquanto no Congresso os vetos presidenciais continuam a tramitar por prazo indeterminado? Naturalmente, não há sentido lógico algum nisso.

Logo, é fundamental definir um momento para encerramento do trâmite do veto presidencial, mesmo nas situações em que não haja deliberação em plenário.

5. Do arquivamento como incidente no processo legislativo

Portanto, é de se ressaltar que, além do encerramento da tramitação por deliberação do Congresso Nacional (art. 66, §§ 4º e 6º, da Constituição Federal), o veto está sujeito a diversos incidentes processuais15 durante o seu curso, os quais podem, a toda evidência, encerrar-lhe o trâmite perante o Congresso Nacional, sendo o arquivamento ao final da legislatura um deles (nos termos do art. 332 do Regimento Interno do Senado Federal).

Nessa trilha, registre-se que a Constituição Federal estabelece apenas a forma pela qual ocorrerá a rejeição do veto (art. 66, §§ 4º e 6º), não tendo detalhado todos os caminhos processuais pelos quais se pode dar sua manutenção.

Aclaremos a ideia com uma analogia: um processo judicial não terá necessariamente seu desfecho com uma sentença que resolva o mérito. Nessa lógica, há situações em que o objeto principal não é enfrentado pelo magistrado e será prolatada sentença sem resolução de mérito (se não estiverem presentes os pressupostos de desenvolvimento válido e regular do processo, por exemplo, nos termos do art. 485, IV, do Código de Processo Civil).

Da mesma forma, o veto pode ou não ser apreciado pelo plenário das Casas Legislativas em votação final. Essa última possibilidade (não votação) ocorrerá se houver algum incidente processual que o retire de sua trilha processual (iter) regular. A título de exemplo, podem faltar ao veto pressupostos processuais de validade ou de existência, reconhecidos em qualquer momento de seu trâmite (veto aposto por Ministro de Estado ou veto a parte de texto16). E, da mesma forma, podem faltar ao veto condições objetivas para que seja apreciado, devido ao elevado decurso de tempo (oportunizando-se o arquivamento ao final da legislatura) ou por estar prejudicada17 a apreciação da matéria (veto a matéria orçamentária de exercício findo18, entre outras hipóteses).

Certo é, portanto, que aos vetos pode ser aplicada a disciplina processual comum a todas as espécies de proposições, permitindo-lhes o arquivamento, como medida de segurança jurídica e economia processual.

6. Conclusão

Do exposto, resta clara a necessidade de encontrar-se solução para o problema dos vetos presidenciais anteriores à Resolução do Congresso Nacional nº 1, de 2013. Esse problema abrange estoque significativo de dispositivos que não foram apreciados pelo Congresso Nacional, apresentando impacto financeiro bilionário e gerando insegurança jurídica para o país.

Considerando que os vetos são proposições legislativas, é imperativo que cumpram os requisitos regimentais e constitucionais para que tramitem adequadamente.

Dessa forma, acreditamos que cada um dos vetos presidenciais anteriores à Resolução do Congresso Nacional nº 1, de 2013, deva passar por um duplo crivo: a) a reanálise de impacto orçamentário; e b) a sujeição à regra que impõe o arquivamento ao final da legislatura.

Assim, a fim de resolver essa anomalia do processo legislativo e evitar a perpetuação do problema (tramitação eterna de vetos sem respaldo constitucional), é fundamental que o Congresso Nacional estabeleça procedimentos claros e sólidos para lidar com os vetos antigos, a exemplo daqueles que propusemos. Somente dessa forma será possível garantir a eficiência e a transparência do processo legislativo, bem como resguardar a segurança jurídica e o equilíbrio orçamentário do país.

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  1. Vide, em especial, Agravo Regimental na Medida Cautelar no referido Mandado de Segurança. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3779575. Acesso em 28.03.2024.

  2. Vide trabalho de OLIVEIRA, Luciano Henrique da Silva. O veto após a resolução nº 1, de 2013, do Congresso Nacional. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/513276. Acesso em 25.03.2024

  3. Esse entendimento decorre da interpretação do art. 2º da Resolução nº 1, de 2013, do Congresso Nacional (cláusula de vigência), conforme o qual a nova disciplina se aplica “à apreciação dos vetos publicados a partir de 1º de julho de 2013”.

  4. Como leciona Miranda, o processo é “traduzido num ato jurídico complexo que congloba ou substitui os sucessivos atos parcelares precedentes”. Dessa forma, a decisão final (ou “resultado”, no dizer do eminente constitucionalista português) é elemento integrante da própria definição de processo. Dito de outra forma, não há processo legislativo sem que haja uma decisão ao seu final (aprovação, rejeição, arquivamento, entre outras). Daí decorre nossa conclusão acerca do quão anômala é a situação de “limbo” exposta neste texto. Vide MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Editora Forense: 2015, p. 179.

  5. Vide relação completa em “Vetos em tramitação antes da RCN 1/2013”. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/vetos/-/veto/anteriores/1. Acesso em 27.03.2024.

  6. Derrubada de vetos pendentes pode causar rombo de até R$ 1 trilhão ao governo. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/derrubada-de-vetos-pendentes-pode-causar-rombo-de-ate-1-trilhao-ao-governo-7583366.html. Acesso em 26.03.2024. É importante sublinhar que a estimativa de impacto orçamentário pela rejeição dos vetos teve seu valor reduzido, desde 2013, em razão de diversas declarações de prejudicialidade subsequentes.

  7. O art. 2º da Emenda Constitucional nº 32, de 2001, estabeleceu regra de transição aplicável às medidas provisórias. Entendemos que uma possível solução para os vetos presidenciais poderia vir na mesma direção, por exemplo, numa Emenda Constitucional que considerasse os vetos anteriores à Resolução nº 1, de 2013, todos mantidos.

  8. O dispositivo é aplicável ao caso em análise em razão do disposto no art. 151 do Regimento Comum do Congresso Nacional (Resolução do Congresso Nacional nº 1, de 1970). Nas demais menções aos Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal presentes neste ensaio, deve-se também entender que tais regramentos são aplicáveis subsidiariamente em razão do disposto no mencionado art. 151.

  9. Aqui defendemos que o veto é, claramente, proposição legislativa, apesar de omissão da doutrina a respeito do seu tratamento quanto a esse importante aspecto.

  10. A título de exemplo, se dizemos que “A”, “B”, “C” e as demais pessoas da sala são estudiosas do assunto “Z”, fica claro que “A”, “B” e “C” são pessoas da sala. O vocábulo “demais”, portanto, tem o papel de assinalar o pertencimento de “A”, “B” e “C” a uma categoria.

  11. Conforme assevera Ferraz Jr., “por meio de uma locução (asserção) constatamos ou asseveramos algo. Mas mediante uma asserção também realizamos uma ação que não chegamos a asseverar. Veja-se, por exemplo, o caso de sentenças em que a elocução (‘meu filho, está chovendo’) implica num determinado contexto, uma ilocução não expressa (‘leve o guarda-chuva’)”. Vide FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Argumentação Jurídica. Editora Manole: 2014, p. 52.

  12. PEREIRA, Marcos Aurélio. “Apreciação de vetos presidenciais pelo Congresso Nacional brasileiro: poder de agenda do legislativo, não decisão, e obsolescência do veto”. Disponível em: http://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/28640/apreciacao_vetos_pereira.pdf. Acesso em 22.03.2024.

  13. Conforme Silva, “o princípio da unidade de legislatura faz cessar, a partir de cada novo quadriênio, todos os assuntos iniciados no período imediatamente anterior, dissolvendo-se, desse modo, todos os vínculos com a legislatura precedente”. Vide SILVA, José Afonso da. Princípios do Processo de Formação das Leis no Direito Constitucional. Editora Revista dos Tribunais: 1964, p. 38-39, item n. 14.

  14. “Embora tão pródigo em regras sobre matérias de menor relevo, o texto constitucional, em se tratando do ritual da produção normativa, deixa quase tudo para ser regulado nas normas internas do Congresso Nacional e de cada uma das suas Casas”. LARA, José de Mesquita. “Do processo legislativo - Emenda à Constituição, Leis, Medida Provisória, Decreto Legislativo e Resolução”. Revista da Faculdade de Direito – Universidade Federal de Minas Gerais. N. 33, 1991. p. 483.

  15. Aqui, valemo-nos da expressão em seu sentido mais amplo.

  16. Nesses casos, haveria ofensa ao disposto no art. 66, §§ 1º e 2º da Constituição Federal.

  17. Conforme Pereira, “em 1989 já ocorre o primeiro caso de prejudicialidade de veto. Trata-se de instituto regimental destinado a evitar que se tome uma decisão inócua sobre uma matéria, ou por já ter sido deliberada pela mesma instância, ou por ter perdido a oportunidade, o que se supõe tratar de questão temporal. No curso da votação do veto da Mensagem n° 177 de 1989, depois da votação do parágrafo de um determinado artigo, o presidente anunciou a não votação do parágrafo seguinte, por “[...] se tratar de matéria correlata.” Vide PEREIRA, Marcos Aurélio. “Apreciação de vetos presidenciais pelo Congresso Nacional brasileiro: poder de agenda do legislativo, não decisão, e obsolescência do veto”. Disponível em: http://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/28640/apreciacao_vetos_pereira.pdf) Acesso em 30.03.2024.

  18. SANTOS, Luiz Claudio Alves dos; CARNEIRO, André Corrêa de Sá; NÓBREGA NETTO, Miguel Gerônimo da. Curso de regimento comum do Congresso Nacional. 4ª ed. Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara.

Sobre o autor
Marcus Paulo da Silva Cardoso

Graduado em Direito. Especialista em Direito Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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