Pedofilia intrafamiliar e omissão materna: impactos jurídicos e emocionais

31/03/2024 às 10:19
Leia nesta página:

Os impactos jurídicos e emocionais quando presente o vínculo biológico entre vítima e abusador frente a silente concordância maternal.

É notório que desde a implantação de um novo sistema de governança denominado patriarcado, a historiografia feminina sofreu abrupta interrupção, bem como máculas de violência em sua trajetória até os dias atuais.

O movimento de reconquista feminina está presente em todas as vertentes sociais e é diariamente trabalhado no emocional e profissional das mulheres, mediante o fortalecimento legislativo ao combate à violência de gênero e programas de incentivo ao empreendedorismo feminino.

Apesar de todos os esforços para reestruturar a posição feminina na sociedade, essa mesma violência, antes exteriorizada e perceptível ao mundo material, adentrou as camadas sombrias do subconsciente feminino, deixando-o semi-automatizado para a normatização de certos comportamentos masculinos naturalmente reprováveis e danosos tanto à vítima quanto à sociedade, como o abuso infantil em âmbito familiar.

A pedofilia, do ponto de vista psiquiátrico forense, é considerada uma parafilia ou transtorno de preferência sexual classificada pelo Código Internacional de Doenças (CID 10 — F654). A frequência da perversão sexual não é passível de verificação senão mediante o flagrante delituoso.

Destarte toda a particularidade descritiva da doença, estudos sobre o perfil psicológico desses agentes atestam estar a parafilia comumente acompanhada de outras formas de transtornos (personalidade, humor, etc…) além de pontuais sinais de raiva e hostilidade, níveis de inteligência abaixo da média e dificuldade em relacionar-se socialmente com pessoas da mesma faixa etária.

Para a efetiva constatação da doença, é necessária, além de testes psicológicos, a realização de exames ambulatoriais (dosagem hormonal, tomografia computadorizadas, entre outros).

Pedofilia intrafamiliar

Em âmbito jurídico, a pedofilia é considerada crime, previsto no artigo 217-A do Código Penal:

“Estupro de vulnerável                

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:               

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.”

Denomina-se pedofilia intrafamiliar quando há laços consanguíneos ou de afinidade entre autor e vítima (pais, padrastos, mãe, madrastas, avós, tios, primos, irmãos) prática esta passível de aumento de pena ante o grau de proximidade, bem como o rompimento do dever de amparo e proteção à criança e adolescente:

 “Aumento de pena

 Art. 226. A pena é aumentada:               

  …

 II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela;”

Considera-se em situação de vulnerabilidade certos segmentos populacionais que, devido a própria condição, historicidade ou posição econômica, estão mais suscetíveis à incidência de violência ou discriminação, entre eles crianças, adolescentes e meninas.

Para isso, possuem especial proteção jurídica:

“Estatuto da Criança e Adolescente

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.”

Apesar de toda a aparelhagem protetiva legislativa e programas sociais que visam tanto a conscientização como a contenção da problemática por intermédio de canais especializados de denúncia, levantamento realizado pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Disque 100) revelou que mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados em âmbito familiar.

São comumente noticiados, nos canais de telecomunicações, casos de abuso em que figuram o padrasto como autor. o que decerto é passível de recriminação; entretanto, trago o alerta da problemática quando o abusador possui vínculo biológico com a vítima, sendo seu próprio pai.

Excetuando-se os casos em que a mãe figura como agente incapaz de oferecer defesa, pois, concomitantemente à vítima, se encontra em situação de violência doméstica em suas variadas ramificações (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), bem como não é portadora de parafilia ou transtorno mental equivalente, tendo pleno domínio de suas faculdades intelectuais e escolhe, conscientemente se omitir frente a situação de abuso sexual de sua filha(o), também se entende como ação criminosa, conforme dispositivo legal:

Código Penal

 Art. 13, § 2º. A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

  1. a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; 

  2. b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; 

  3. c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Estatuto da Criança e Adolescente

Art. 5º. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Pedófilo abusador

Decerto, a emancipação feminina e seus benefícios ainda demandam muito desenvolvimento, sobretudo no emocional feminino. A aplicação indiscriminada do perdão e tolerância em nome da constância familiar, tarefa atribuída exclusivamente à condição feminina, além de vantajosa ao abusador, contribui para a permanência das práticas em detrimento da criança.

Minuciosa pesquisa científica intitulada Perfil Psicológico e Comportamental de Agressores Sexuais de Crianças (Serafim, et al. 2009) traça 11 perfis comportamentais de pedófilos, sendo o mais predominante em âmbito familiar o pedófilo abusador.

A característica primária desse perfil abusador, vencida a barreira da oportunidade de acesso à criança, é a capacidade de manipulação sentimental em confundir os sentimentos da menor com as sensações provocadas pelas carícias íntimas; a imaturidade decorrente da idade leva a criança a considerar natural as carícias íntimas como gesto de carinho e zelo próprios da figura paterna; a ausência de violência torna quase imperceptível a prática em âmbito escolar e familiar quanto a parentes mais ou menos distantes, podendo se perpetuar por períodos consideráveis.

A escolha por findar o relacionamento incestuoso, quando não interceptado por terceiro, cabe ao abusador,  preferenciando período pretérito ao amadurecimento emocional da criança. De certo, um dos perfis mais dantescos e reprováveis de toda categorização parafílica.

Invalidação da vítima

Natural a repulsa e repugnância de qualquer pessoa ao se deparar com semelhante situação em seu lar; sobretudo, sendo mulher e mãe ao constatar que a vítima é sua própria filha. Entretanto, há as optantes pelo silente consenso.

Todo apoio e proteção para a superação do trauma é transferido para o agressor, e a consciente distorção de percepção do abuso sexual passam a favorecer o abusador, que se entende como a real vítima da situação ante a incapacidade de conter seus impulsos doentios, e assim ele se apresenta e reforça diariamente sua condição diante da esposa, figura eleita para garantir a impunidade de seus crimes.

A vítima se encontra em situação de maior vulnerabilidade e risco e, ao ter seus sentimentos invalidados, seu processo de desenvolvimento é afetado pela situação traumática não tratada. Da mesma forma, a obrigatoriedade de convivência diária com o agressor e o abandono materno são agravantes para o eventual desenvolvimento de quadros depressivos e transtornos psicológicos.

Não raro, o processo de “problematização” da vítima persiste até a fase adulta, garantindo socialmente sua descredibilidade em caso de revelação do abuso.

Considerável e louvável é o trabalho dos estudiosos em listar as características e modus operandi dos portadores dessa parafilia. Entretanto, é consenso acadêmico que a personalidade do pedófilo é extremamente plástica e adaptável às situações, podendo ser tanto uma pessoa bem quista socialmente como antissocial, pois age conforme seu desejo e necessidade e camufla suas intenções, contando com o benefício da dúvida. Mais eficaz é conscientizar aqueles ao redor, sobretudo a figura materna.

Não se trata de sobrecarregar ainda mais a mulher, mas sim conscientizá-la de seu poder de ação, pois suas decisões possuem efeito modelador da sociedade interferindo diretamente no bem-estar social das futuras gerações. O silêncio materno ante uma situação de abuso e o esquecimento do fato pela criança são a garantia do abusador. O ato, por si só degradante, já o desqualifica como pai, ainda mais como homem.

Pior que o silêncio dos inocentes é o silêncio daqueles que, podendo agir, nada fizeram.

Sobre a autora
Camila Falkowski

Advogada. Graduada em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (2017). Pós Graduada em Direito Digital e Proteção de Dados pela Escola Brasileira de Direito - EBRADI (2023). Pós Graduada em Perícia Cível e Criminal pela Instituição Verbo Jurídico (2020). Pós Graduada em Direito e Processo Penal pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (2020). Membro Efetivo Regional da Comissão da Mulher Advogada - OAB/SP. Autora de artigos jurídicos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos