O orçamento secreto como forma de degeneração e corrosão do Estado de Democrático de Direito

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Não há como negar a existência de uma relação íntima entre dinheiro e poder na política, especialmente no que diz respeito ao contexto das finanças públicas. Significa dizer que a disputa por recursos públicos é uma questão antiga e contínua, que muitas vezes envolve práticas não democráticas. Para evitar que isso aconteça, o sistema político brasileiro fez uso do ordenamento jurídico nacional para prever e garantir que houvesse equilíbrio entre poderes tano na elaboração quanto na execução do orçamento ainda que, na prática, essa dinâmica seja frequentemente permeada por tensões e conflitos. Nesse sentido, A Constituição de 1988 devolveu ao Poder Legislativo o poder de participar na elaboração da lei orçamentária, embora a iniciativa da proposição do orçamento ainda seja do Executivo, atribuindo àquele duas funções: alocar recursos em obras e políticas públicas escolhidas pelo Executivo e aprovar a proposta de lei orçamentária elaborada pelo Executivo1. Desta maneira o objetivo é garantir a aplicação do sistema de “freios e contrapesos” que caracteriza o Estado Democrático de Direito.

Ainda assim, a participação do Poder Legislativo na elaboração das leis orçamentárias, através de emendas ao projeto do Poder Executivo, e a execução dessas emendas têm sido historicamente problemáticas, ainda mais atualmente já que há significativo espaço para corrupção e falta de transparência. Isso porque as emendas parlamentares, incluindo as do relator, ainda permitem que os parlamentares operacionalizem gastos sem transparência adequada, em troca de apoio ao Poder Executivo na arena política, instituindo uma verdadeira negociata. Foi justamente assim que o chamado "orçamento secreto" (res)surgiu entre 2019 e 2020, quando o então governo reintroduziu na legislação orçamentária a modalidade de emenda do relator, através da qual o relator geral da lei orçamentária obteve autorização para alocar recursos em despesas já presentes na lei, sem limites de recursos ou quantidade de emendas. Essa alteração na Lei de Diretrizes Orçamentárias estabeleceu uma diferenciação entre as emendas parlamentares individuais, previstas no artigo 166-A da Constituição Federal de 1988, que identificam seus autores e beneficiários, permitindo o rastreamento dos recursos desde a origem até a aplicação, e as emendas de Relator-Geral, caracterizadas pela falta de transparência e manipulação de informações em todas as etapas do processo.

Considerando que com tal modificação o relator geral da Lei Orçamentária Anual ganhou o poder de alocar recursos em obras e em municípios específicos de forma ilimitada e sem necessidade de autorização prévia do Poder Executivo ou do Poder Legislativo2, ou seja, indiscriminadamente, tal prática passou a ser forma de angariar apoio no Congresso, transmutando o Poder Legislativo em um braço do Executivo – mediante o pagamento quantias nada módicas sob pretexto de alocação de recursos públicos, desarranjando assim o modelo de tripartição de poderes que caracteriza o Estado Democrático de Direito.

A problemática reside no fato de que essas emendas não requerem a identificação da destinação dos recursos – não há necessidade de identificar as localidades para alocação dos recursos e nem os parlamentares que serão beneficiados pela sua indicação; a única informação que é fornecida é a de que a emenda pertence à categoria RP9 (emenda do relator. Tal ausência de transparência na utilização dos recursos e as consequentes suspeitas de que essas emendas estejam sendo usadas como moeda de troca para obter apoio parlamentar em votações de interesse do governo encontram respaldo no fato de que em 2021, a Lei Orçamentária Anual reservou mais de 16,8 bilhões de reais para essas emendas, consistindo em um valor significativamente superior ao das emendas individuais, cuja previsão de gasto foi de 9,7 bilhões3. Sem a necessária divulgação sobre como esses recursos serão usados, sérias e importantes suspeitas surgem a respeito das questões éticas sobre a alocação de recursos públicos com pouca ou nenhuma supervisão e responsabilização.

Nesse escólio, a reintrodução das emendas de relator configura um retrocesso na transparência do processo orçamentário no Brasil, já que ao longo dos anos, medidas foram adotadas para tornar o processo de alocação de recursos mais transparente, tendo em vista que, no passado, já houve casos de corrupção como o conhecido "Anões do Orçamento", ocorrido durante um período em que o relator tinha prerrogativas similares àquelas que foram reintroduzidas no ordenamento jurídico em um passado recente. Por isso, o "orçamento secreto" funciona como um mecanismo de degeneração e corrosão do Estado Democrático de Direito. A implementação das emendas do relator, sem transparência e com o objetivo de desviar parte substancial do orçamento público com a colaboração do governo e do parlamento, em detrimento da transparência e da clareza que deveriam guiar a elaboração de normas governamentais, configuram uma verdadeira institucionalização da instrumentalização dos poderes estatais. Isso porque:

“O Estado Democrático de Direito tem como características principais a separação dos Poderes da República; a garantia dos direitos fundamentais ao cidadão; a realização de eleições livres e justas; e a submissão às leis por governados e governantes. Esses atributos dialogam com os objetivos fundamentais da República, inscritos no artigo 3º da Constituição Federal de 1988, destacando-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidaria. (...) Nesse contexto, as duas casas do Congresso Nacional estão formal e legalmente comprometidas com o desafio de formular leis (...) que respondam aos anseios da população; enfrentem os problemas do País; e contribuam para a consolidação da democracia no Brasil. Na elaboração das leis de cunho orçamentário os preceitos não podem ser diferentes, pois elas estabelecem, entre outros aspectos, as metas e prioridades do governo; as regras para elaboração e execução do orçamento da União, as diretrizes de tratamento da dívida pública federal e os valores destinados às ações orçamentárias os quais concretizam os programas e projetos governamentais e tendem a melhorar a qualidade de vida das pessoas.4

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Sem que haja a devida transparência e possibilidade de fiscalização da destinação de recursos orçamentários, nada impede que estes sejam “utilizados como barganha eleitoral”5 ao invés de serem aplicados para “efetivação das políticas públicas, pois o Estado, mesmo dispondo de capacidade técnica para formular e gerar políticas públicas eficientes, precisa de recursos para tirar os planos do papel e transformá-los em bens e serviços para a sociedade.” 6

Considerando que um Estado de Democrático de Direito tem como objetivo precípuo a proteção do regime democrático contra ataques autoritários e totalitários, bem como a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, é de suma importância que haja um sistema jurídico que proporcione previsibilidade, estabilidade, a imparcialidade, a transparência, a igualdade de tratamento e a integridade das instancias de aplicação da lei são indispensáveis7, permitindo o atingimento de seus objetivos. No caso do Estado brasileiro, são aqueles previstos no preâmbulo da Constituição Federal8 e, para tanto, as propostas normativas - quer se originem do Poder Executivo, quer do Poder Legislativo – devem, necessariamente se coadunar com o Estado Democrático de Direto.

É justamente nessa questão que o “orçamento secreto” funciona como mecanismo de degeneração do Direito, uma vez que não pretende atender os requisitos de uma estrutura normativa adequada a um Estado Democrático de Direito ou mesmo concretizar projetos e implementar políticas públicas que tenham significativa relevância para a sociedade; em verdade ele se presta a atuar como instrumento de troca de favores políticos: como barganha para obter apoio ou mesmo como agradecimento pelo apoio aos projetos relevantes do governo em verdade objetivamente as metas e prioridades do governo eleito e seus patrocinadores.

Visando coibir essa prática é que o Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADPF 854, decidiu por maioria (6 votos a 5) que o “orçamento secreto” ou as emendas do relator RP9, são inconstitucionais, posto que configuram gravíssimo déficit democrático em termos de accountability e não se adequam aos imperativos constitucionais de rastreabilidade, comparabilidade e publicidade devendo, portanto, serem retiradas do nosso ordenamento jurídico. Dentre aqueles que se manifestaram pela inconstitucionalidade estavam as Ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia, bem como os Ministros Edson Fachin, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski. Os outros – os Ministros André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes - votaram que as emendas de relator podem continuar sendo distribuídas, desde que com critérios mais transparentes.


  1. CONTI, José Maurício. As emendas parlamentares, o 'orçamento secreto', a cooptação e corrupção na política. Disponível em https://direito.usp.br/noticia/fa5e70e83422-as-emendas-parlamentares-o-orcamento-secreto-a-cooptacao-e-corrupcao-na-politica-. Acesso em 08/10/2023.

  2. LUZ, Joyce. Panorama das emendas orçamentárias no governo Bolsonaro. In.: Observatório do Legislativo Brasileiro. 21/08/2022. Disponível em https://olb.org.br/panorama-das-emendas-orcamentarias-no-governo-bolsonaro/. Acesso em 08/10/2023.

  3. LUZ, Joyce. Panorama das emendas orçamentárias no governo Bolsonaro. In.: Observatório do Legislativo Brasileiro. 21/08/2022. Disponível em https://olb.org.br/panorama-das-emendas-orcamentarias-no-governo-bolsonaro/. Acesso em 08/10/2023.

  4. NETO, Damásio Alves Linhares. As emendas parlamentares e o orçamento secreto: propósitos declarados e interesses (re) velados. In.: Revista Pesquisa & Debate. Vol. 35. Nº 1. 09/07/2023. Pág. 90. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/rpe/article/view/60829. Acesso em 09/10/2023.

  5. NETO, Damásio Alves Linhares. As emendas parlamentares e o orçamento secreto: propósitos declarados e interesses (re) velados. In.: Revista Pesquisa & Debate. Vol. 35. Nº 1. 09/07/2023. Pág. 90. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/rpe/article/view/60829. Acesso em 09/10/2023.

  6. NETO, Damásio Alves Linhares. As emendas parlamentares e o orçamento secreto: propósitos declarados e interesses (re) velados. In.: Revista Pesquisa & Debate. Vol. 35. Nº 1. 09/07/2023. Pág. 91. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/rpe/article/view/60829. Acesso em 09/10/2023.

  7. VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a Subversão do Estado de Direito. In.: Revista Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://old.scielo.br/pdf/sur/v4n6/a03v4n6.pdf. Acesso em 10/10/2023.

  8. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Preâmbulo - Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

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